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Ganhar perdendo

 

Uma guerra que se ganha perdendo parece ser o destino da Rússia de Vladimir Putin na escalada militar contra a Ucrânia. O discurso do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, diante do Congresso americano, muito assertivo, fez uma análise geopolítica sobre a guerra interessante, que parece ser consensual: Putin está saindo enfraquecido dessa guerra, e seu desejo de menos Otan em seu entorno parece estar proporcionando o ambiente político internacional para que mais países queiram se proteger na aliança militar ocidental.

A provável derrota militar de Volodymyr Zelensky poderá se transformar numa derrota política de consequências inimagináveis para a ambição de Putin de recriar a Grande Rússia. Se não for morto na guerra, Zelensky, que era o alvo número um do aparato militar russo, será o líder da resistência à dominação, com grande capacidade de comunicação e uma rede de apoio político que poucos líderes têm.

Digo que Zelensky era o alvo, e não é, porque, a esta altura, um assassinato dele poderá ser o estopim de uma reação internacional com reflexos internos, que podem levar à deposição de Putin. Os interesses financeiros dos oligarcas que literalmente o sustentam estão fortemente abalados pelas sanções impostas pelo Ocidente.

Havia muito tempo não se viam países ocidentais reagindo em conjunto, não restando dúvida de que a Rússia pagará caro pelo ataque. Constatar que, além de EUA e Europa, estão juntos contra a invasão países como o Japão e a Austrália, e agora até mesmo a China vai cautelosamente mudando de posição, colocando-se como possível mediadora do conflito, mostra que o mundo não está mais disposto a aceitar invasões como a Rússia vinha fazendo na Crimeia, na Geórgia.

Os três países que votaram contra a moção da Assembleia Geral da ONU contra a invasão da Ucrânia, além da própria Rússia e de seu satélite Bielorrússia, são ditaduras: Coreia do Norte, Eritreia e Síria. Ter mais ou menos Otan em volta da Rússia significa hoje não mais uma ação opressora como quer Putin, mas uma reação a favor da democracia. As forças democráticas ocidentais de um lado, e um governo autocrático, dirigido por um protoditador, de outro.

A Rússia tem uma democracia formal, não real, tanto que quem está protestando nas ruas é preso violentamente. E Putin monta sempre manobras para ficar no poder. A Rússia é dessas democracias aparentes, como Venezuela e Nicarágua. Tem eleição, Suprema Corte, Congresso funcionando. É como na nossa época da ditadura militar, uma democracia formal, todas as instituições funcionando, mas o governo tinha poderes excessivos para reprimir a oposição. É o que acontece na Ucrânia. O mundo ocidental já entendeu que está em jogo ser ou não democrático. O fortalecimento da democracia é um sinal do enfraquecimento de Putin.

A Finlândia, que nunca anunciou que gostaria de entrar na Otan, e era uma preocupação de Putin, agora já quer entrar; a Ucrânia está pedindo para entrar na União Europeia em caráter emergencial. A Otan, uma força que poderia ser vista como intervenção americana na Europa, passou a ser uma força de defesa da democracia no mundo, ganhou outra dimensão, e isso Putin não imaginava.

Se continuar avançando, a Rússia de Putin acabará dominando a Ucrânia, mas uma Ucrânia arrasada, falida, assim como seu algoz, uma Rússia falida, sem capacidade de se reorganizar, e uma resistência cidadã que já se demonstra heroica. Com guerrilhas, emboscadas, se transformará num inferno aquela região, e um inferno a dominação da Rússia sobre a Ucrânia.

Putin não imaginava que poderia acontecer uma resistência tão forte, que está adiando a vitória dele, que parece inevitável. Mas será daquelas derrotas, para a Ucrânia, que se transformam em vitória moral e reforçam o sentimento de pertencimento de uma população.

O Globo, 03/03/2022