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Fome de Justiça

 

Um descalabro as prisões do dia quinze de novembro, determinadas com a azáfama típica das mudanças de cenário na comédia musical ou de uma tenda de acrobacias. Medidas que ferem o estado de direito e as garantias individuais. Assistimos a um produto do “reality” do Supremo, consequência da transmissão ao vivo, onde se alternam debates de valor, é bem verdade, margeados por apartes e discussões desrespeitosas, pareceres-show e dispositivos que não se coadunam com a dignidade da Suprema Corte, cuja transparência não precisa de um aval televisivo, que abre espaço a conflitos de interesse e legítimas suspeições. A justiça não cabe nas páginas de um folhetim, em que se move um herói vingador, aquele que poderia salvar o país do dragão da maldade. Uma justiça madura e eficaz, como processo de rotina, e não como a final de Copa do Mundo. 
   
Naquela mesma semana fui ao presídio feminino Nelson Hungria, convidado para dar uma pequena palestra sobre o livro e a liberdade. Uma biblioteca breve e bem escolhida foi a primeira surpresa, além das cores com que as alunas pintaram a escola da unidade. Depois, todos aqueles olhos, atravessados por uma fome de mudança, rostos variados, tantos, boa parte dos quais cheios de comoção. Olhos em que brilha a obstinada luz do “ainda-não”, que as faz seguir em frente, com a geografia particular de seus afetos. Chamam-se Marisa, Teresa, Maria. Mas que importam os nomes? Não quiseram saber de meu passado e eu tampouco me interessei pelo passado daquelas senhoras. Como disse Agostinho, o passado deixou de ser e o futuro não veio. Portanto, só há presente. E estávamos ali convocados pela duríssima beleza do agora.

Lembrei a todas que sonhamos de olhos abertos, sobretudo de olhos abertos, como disse Ernst Bloch, e que o presente só faz sentido através da construção que se faça da matéria viscosa dos sonhos, do tempo que virá por antecipação. Disse-lhes que eram noivas de um belo e atraente senhor, a quem deveriam fazer a corte e conquistar com arrebatada decisão: o futuro. E tentamos avançar nessa direção.

As perguntas nos aproximaram, quebrando um mundo aparentemente dividido, nas malhas processuais ou nas franjas do código penal. Somos a mesma porção de humanidade, regidos pela poética do encontro e da boa vontade. Eu  indagava silencioso se a justiça terá olhos suficientes para alcançar essas moças e senhoras, que ainda me emocionam de tal modo que até o momento não sei definir o que vivi. Mas será mesmo preciso definir o que quer que fosse nessa esfera?
    
Fui almoçar depois com a diretora e as agentes penitenciárias. As cozinheiras são “moradoras” que preparam os pratos com suas próprias mãos. A fome silenciosa de justiça, no silêncio e no trabalho. Penso nas minhas mãos e nas suas, leitor. Penso nas mãos dos juízes e nas de nossas mães. Porque sem compaixão não há justiça.   

O Globo, 27/11/2013