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Feitiço contra feiticeiro

 

A campanha presidencial de Bolsonaro em 2018, que a princípio parecia um exotismo sem maiores consequências, fazia parte de uma estratégia de militares da ativa e da reserva para a retomada do poder pelo voto.

Bolsonaro convenceu esse grupo, que tinha no General Villas Boas, então comandante do Exército, o articulador principal. O núcleo militar reunia-se em um escritório em Brasília, e dava apoio técnico e estratégico à campanha, sob a articulação do General Augusto Heleno. Esse núcleo militar considerava que Bolsonaro era o único capaz de derrotar o PT, aproveitando que o então ex-presidente Lula estava na prisão.

Os encontros de Bolsonaro com seus seguidores, em todos os aeroportos em que chegava nas viagens de campanha, viralizaram pouco a pouco na internet, e de ações orquestradas com o recrutamento de militares de escalões inferiores transformaram-se em eventos espontâneos. Na aparência a estratégia deu certo, pois Bolsonaro foi eleito, e colocou militares em postos chave.

Ao agradecer de público ao General Villas Boas, dizendo, com a sutileza que o caracteriza, que jamais revelaria o que conversaram, Bolsonaro deixou explícita a ajuda que recebera do militar, um ícone entre os seus. “Ele é incontrolável”, disse-me certa vez o próprio General Villas Boas, entre risos, justificando certos comportamentos de Bolsonaro ainda na campanha.

Mas os setores militares que pensavam em controlar o presidente, um capitão de passado questionável, acabaram controlados por ele. Os que não aceitaram esse cabresto do baixo clero, foram sendo demitidos ao longo do tempo. O vice, General Hamilton Mourão, foi perdendo tração durante o governo, mas tinha mandato pelo voto e acabou tornando-se senador. Outros militares permaneceram ao lado do presidente: o ministro da Defesa Paulo Sergio Nogueira, o ministro da Secretaria-geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno, e ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, Walter Braga Netto, candidato a vice na chapa à reeleição de Bolsonaro.

Outros militares foram sendo desligados desse núcleo duro do governo, por discordarem de decisões do presidente: General Santos Cruz, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, o General Joaquim da Silva Luna, presidente da Petrobras, o General Rego Barros, assessor de Comunicação, entre outros. Episódios como esse das joias de Bolsonaro, no qual até um general de Exército na reserva, pai do tenente-coronel Mauro Cid, está envolvido, vão piorando a imagem das Forças Armadas, e até o momento as reações oficiais são tíbias, equilibram-se entre o corporativismo e a cautela necessária.

Quando se noticiou que o hacker estelionatário Walter Delgatti participou da comissão militar do ministério da Defesa que teoricamente auxiliava o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a mando de Bolsonaro, uma nota alegou que os fatos passaram-se “no governo anterior” e estavam sendo analisados.

É terrível imaginar que um presidente da República estivesse metido em esquemas vulgares de venda de presentes oficiais que recebeu. E nem sabemos o que ainda pode ser descoberto. Políticos ligados a ele também não conseguem tomar uma posição. Uma coisa é ter ideologia, ser de direita, ter ideias conservadoras. Outra, muito diferente, é ser um réles trambiqueiro. É o mesmo que aconteceu com as acusações contra Lula durante seus dois primeiros governos. O PT até hoje tenta dizer que mensalão e petrolão não aconteceram, foi tudo invenção e injustiça. Não se trata de ideologia, e sim de comportamento, de ética e de entender a liturgia do cargo que ocupa.

É inacreditável que se possa continuar apoiando um político quando fica provado que esteve envolvido em vários trambiques, sejam de milhões ou de milhares de reais, dólares, euros. No caso atual, trata-se de salvar a honra das Forças Armadas.

O Globo, 13/08/2023