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Do Mediterrâneo Viemos: Carta ao Poeta Ataol Behramoglu

 

Caro amigo, imagino você, o mais célebre dos escritores turcos, poeta e dramaturgo, olhando para o Mediterrâneo, do alto, digamos, de um minarete, como o da antiga catedral de Santa Sofia. Penso no Império Otomano e na parte incerta dessas águas verdes e azuis que correm entre as ilhas gregas e a costa da Turquia. Admiro-lhe o esforço na construção de um diálogo mediterrâneo, mar que, em turco, se chama branco – Akdeniz, ao passo que os velhos gregos atribuíam-lhe o epíteto de vinoso. Pergunto-me, Ataol, quantas cores, línguas e palavras compõem o Mediterrâneo? Não se trata de um mar homogêneo, mas de algo incerto, flutuante e descontínuo. Laboratório espantoso. Geologia de camadas friáveis. Para o futuro, talvez, um mar republicano e cheio de perspectivas. Dependendo de onde e quando, o Mediterrâneo pode ser a extensão do deserto do Saara. Ou, quem sabe, um lago que acolhe a bordadura das montanhas.

Um mar sem passaportes e alfândegas, livre de naufrágios e de mortes. Mais que uma área de livre comércio, desejo sobretudo um fluxo intercultural permanente em busca de diálogo.         

Preocupo-me com o norte da África, frente a uma hesitante primavera democrática, que devemos apoiar de forma generosa e crítica. Se a Liga Árabe me parece perdida, os democratas de Israel e da Palestina dizem palavras de ordem, vazias, meramente retóricas. Indago-lhe, caro Ataol, se o ministro Erdogan domina a língua árabe. Não sei bem o que pretende com uma espécie de liderança pela qual um dia respondeu Nasser. As lágrimas da rebelião civil da Síria batem às portas da Turquia. Parece que as velhas civilizações do Mediterrâneo vivem fortemente as dores do crescimento. Você chegou, por acaso, a conhecer os poetas Adonis e Daruish, que falam de um litoral sem barreiras? 

Sua vizinha, a Grécia é vítima de um impasse de proporção épica e dolorosa. O que diria o poeta Yannis Ritsos se estivesse vivo, seu grande amigo, assistindo à barbárie econômica que se abate sobre as terras onde outrora se fundou a academia platônica?  A Grécia, como vítima de um capitalismo senil e devastador responde com a mesma delicadeza de Safo, ao contemplar as Plêiades à meia-noite.As sete estrelas valem a zona do Euro?
        
Caro Ataol, escrevo-lhe movido pela inquietação. Gostaria de ouvi-lo sobre a ideia de um mar helênico, com o qual contraímos empréstimo e cujas prestações estamos longe de quitar. Quem poderá perdoar em definitivo a nossa dívida? Haverá dívida? Perdão?

Vivemos absurdamente separados, esquecidos do traço de união entre Oriente e Ocidente, promovido pelo Mediterrâneo, porto de chegada e de partida. Dos filhos de Abraão. Ou de seus órfãos. De Ulisses e de Simbad. E já não importa saber, Ataol, quem ganhou ou perdeu a batalha de Lepanto, se a futura Sublime Porta ou Roma. Hoje estamos do mesmo lado. E seguimos as metáforas deste mar. Tudo cabe dentro dele. E sobra.  Leio seu poema “Desenho uma Istambul sobre o meu peito”. E sei que, ao desenhar sua própria cidade, você inclui a tradição de Roma e Atenas, sem o que não se entende a síntese da cultura otomana, no diálogo com a tradição árabe e persa. 

E hoje, Ataol, se a Espanha e Portugal vivem um período decisivo, o caso da Itália me abate. De lá veio a segunda academia, de Florença, com Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, conhecida como a Nova Atenas. E contudo o desastre do primeiro-ministro – cujo nome não declaro para não macular esta carta – só não é maior, porque o presidente Napolitano vem cumprindo rigorosamente seu papel constitucional.  A situação é grave e lembro de Dante ao dizer que a Itália era um navio sem capitão em meio a uma tempestade.   E dizia coisas piores: que a Itália não era uma senhora, mas um bordel ( non donna di province, ma bordello!). Os intelectuais daquele país leem essa passagem do Purgatório com especial agonia.

Meu caro poeta, o quadro me parece árduo. E, contudo, tenho comigo um resíduo de esperança. Eis por que lhe escrevo desta parte do mundo. Somos filhos do Mediterrâneo. Ao mesmo tempo avarentos e perdulários do que constitui nossa herança de escombros. 

Não se preocupe em apontar soluções.  Sei que você não aprova, tal como eu, uma espécie de cartomancia da sociedade atual ou uma filosofia da história, que possa tirar conclusões gerais, diante de uma crise de longa duração, em torno da qual é preciso responder com um maior fluxo de pensamento, bolsas de estudo, programas de arte e cultura. Longe da esfera do mínimo de tolerância, no coração irresistível de quanto se admira.

Caro amigo, aceite essas considerações de seu irmão  ultramarino, culturalmente semita, que respira uma parte de Ocidente.  Quero lembrar-lhe, como despedida, dois versos de um velho poeta alemão que soam assim: onde há perigo, cresce também o socorro.

Forte abraço, Ataol!  

O Globo, 25/09/2011