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Deveres e direitos

 

A Constituição cidadã de Ulysses Guimarães, promulgada em 1988, que completou ontem 28 anos, não o levou à presidência da República no ano seguinte, mas ampliou e consolidou os direitos do cidadão de tal maneira que, na opinião de muitos, tornou o país ingovernável, como previu o então presidente José Sarney.

Na leitura do sociólogo José Pastore, um dos maiores especialistas em legislação trabalhista, essa inviabilidade traduz-se na seguinte conta: a Constituição fala 76 vezes em direitos, e apenas 6 vezes em deveres. Ulysses tinha razão ao atribuir à Constituição um papel decisivo em sua campanha pela presidência da República, só que o que ela garantia de direitos ainda não era do entendimento comum, enquanto a retórica populista dos primeiros colocados – Collor, Lula e Brizola – vendia sonhos que já estavam lá “no livrinho”, sem que o eleitorado entendesse.

Estive com ele nessa campanha algumas vezes, levado por meu amigo Jorge Bastos Moreno, que o assessorava. Uma, em especial, nunca me saiu da cabeça. Na casa de Renato Archer no Rio, Ulysses dizia que quando a máquina do PMDB começasse a trabalhar, ele venceria a eleição. Terminou em quinto lugar, com pouco mais de 4% dos votos, abandonado pelo partido que comandara a vida inteira, ao qual dera integridade e prestígio político.

A resposta veio anos depois, e serviu também agora para o impeachment de Dilma. Aos olhos de Ulysses Guimarães falando sobre Collor, a reprovação das ruas vale mais que uma eleição, pois desse plebiscito saiu o repúdio da praça pública àquele que, embora eleito, perdeu a legitimidade.

A tese de Ulysses foi lembrada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que pediu um gesto de grandeza como a renúncia à presidente Dilma, ou ao menos um ato de contrição. Pois Ulysses também falou da renúncia no caso do Collor, em uma entrevista ao Jô Soares, lembrando os casos de Getúlio e Jânio Quadros.

Ulysses chegou a afirmar que a dimensão da praça pública “é maior do que na urna”. Collor morrera civicamente, decretou Ulysses, “morreu no respeito da nação e não acredita que morreu. É um fantasma”.  Não é mais presidente, pontificou.

Ulysses Guimarães, o grande símbolo do partido, continuou abandonado politicamente até pouco antes de morrer, a ponto de ter sido humilhado mais uma vez pelo PMDB, que não apoiou sua candidatura à presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.

Era um político de outra estirpe, ele próprio o exemplo clássico de uma de suas célebres frases: “Acha o atual Congresso ruim? Aguarde o próximo”. Essa deterioração da qualidade política brasileira era prevista por ele com a tranquilidade de quem conhecia o chão em que pisava. Era pragmático, até certo grau, pois não se furtou a enfrentar os cães da ditadura militar quando considerou inevitável.

Mas, no caso de Tancredo Neves, que baixou hospital na véspera da posse, seu pragmatismo prevaleceu, já que quem deveria ter assumido o governo era ele, como presidente da Câmara, mas assumiu o vice-presidente José Sarney. Questionado por Pedro Simon sobre as razões que o fizeram aceitar a decisão tão discutível, Ulysses foi irônico: “Se o maior jurisconsulto do país disse que era o Sarney, quem sou eu para contestar?”.

Ulysses referia-se não ao ministro Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil, mas ao ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, que foi quem interpretou a Constituição a favor de Sarney, que além do mais era seu amigo.

Ulysses, no entanto, foi o presidente “de fato” em diversas ocasiões, vetando indicações de ministros, como no caso de Tasso Jereissatti, convidado por Sarney para o ministério da Fazenda. Foi abatido em pleno voo, quando vinha de jatinho do Ceará para Brasília para assumir o posto.

Sarney, outra velha raposa, não guardou mágoas. Em uma conversa anos depois comigo, disse que se fosse Ulysses faria a mesma coisa. E fez, tornou-se o Ulysses dos governos petistas, depois de ter salvado Lula do impeachment na crise do mensalão. A ponto de Lula ter dito certa vez que ele não poderia ser tratado “como uma pessoa comum”.

Mais difícil que matar um monstro é remover seus escombros, disse Ulysses certa vez, a respeito da ditadura militar, que teve nele o maior líder civil da resistência. O “Senhor Diretas” levou o Brasil às ruas pelas volta das eleições diretas, mas foi superado por Tancredo Neves, que se elegeu presidente de forma indireta.
 

O Globo, 06/10/2016