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A cidade dos vivos

 

Enquanto a presidente Dilma Rousseff anunciava em Brasília a mais que esperada Comissão da Verdade, um velho sobrado, na rua do Lavradio, desabava de modo irreversível. Segundo as estimativas do Crea,  uma centena de prédios antigos corre o mesmo risco de naufragar nas ondas do descaso. Não se sabe como podem resistir até hoje, esses obstinados edifícios. Uma caminhada no entorno da praça Tiradentes mostra as rugas das fachadas e o desgaste da volumetria. Fachadas e estruturas que um conjunto precário de normas obrigaria, em tese, a preservar. O que mais aborrece é ter perdido  solares e palacetes de refinada beleza, como o da baronesa de Sorocaba,  ou do Marquês de Inhambupe, a casa Martinelli e, em outra escala de valor, a casa de Machado de Assis.

Já segundo o grupo Tortura Nunca Mais, o número de mortos e desaparecidos, no período da ditadura militar, chega ao número impressivo de trezentos e cinquenta e oito. Corpos e famílias em estado de espera, que exigem o resgate imediato de um nome, rosto e destino. Sem o que não se pode falar de uma democracia plena. As biografias quebradas ou interrompidas são uma afronta ao estado de direito. Para a Presidente é como se morressem todos os dias para as famílias. Algo da Grécia antiga. Dos mortos que imploram sepultura.

Assim, a defesa do corpo da cidade e dos  desaparecidos constitui gesto de reação diante da amnésia da história e das diversas práticas de ignomínia. Casas e corpos que reclamam um horizonte ético no modelo de intervenção urbana. Para o saudoso arquiteto Carlos Nelson dos Santos, a cidade devia ser vista como um jogo de cartas, no domínio das regras, na formação de parcerias, do público e do privado, de todos os agentes envolvidos na cena urbana. Para Carlos Nelson, “cada lugar em uma cidade está carregado do que aí aconteceu antes; é um símbolo do próprio passado. Mas é também um molde do que poderá acontecer daí para a frente”.

Donde se conclui que a preservação da identidade refere-se  menos a um museu de escombros e mais à memória futura, a um redesenho que se refaz a cada instante.
 
Se o rosto da cidade mudava mais rapidamente que o coração de seus habitantes, como disse o poeta, o descaso com as cidades brasileiras adquire um ritmo tão desenfreado, a ponto de tornar corriqueiro o crime de  identicídio ou de lesa-memória. E isso porque o jogo resulta de uma parceria fraca ou questionável por parte do poder público. O coringa é a carta predileta dos que auferem lucros descabidos na ocupação do solo urbano, mediante uma espécie de pensamento único nas cidades, sem respeitar os círculos dominantes de uma vocação polifônica. O desenho único. A fachada única. A sensaboria única. Dentre as cidades do Estado do Rio, Niterói seria uma cidade modelo na prática de lesa-memória. Mas infelizmente não está só nessa postura kamikaze.
 
Nas páginas de A cidade antiga, de Fustel de Coulanges, pode-se observar como as cidades gregas e romanas foram edificadas a partir da guarda e evocação de seus mortos. Antes de Atenas ou Minerva, contavam os ancestrais da família, os deuses lares. A transmissão dos nomes dos falecidos era determinante para a respectiva sobrevida. Cada casa era um templo, onde se veneravam os despojos, o fogo sagrado e as libações, de que o patriarca era sacerdote. Para Fustel, essa foi uma das razões pelas quais as pequenas cidades gregas teriam vencido o formidável exército persa: estava em jogo a memória da cidade, dos vivos e dos mortos, do passado e do futuro, profundamente ligados.

Não se pode perder a chance de resgatar as bases democráticas no redesenho do espaço urbano, ampliando parcerias, redefinindo as regras do jogo, impondo limites éticos e punindo severamente o abuso do espaço urbano, responsabilizando as administrações públicas omissas ou comprometidas.  Não podemos deixar que os persas mudem o endereço de nossas casas, de nossos mortos e de nosso futuro.

O Globo, 23/05/2012