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Chuva negra

 

Estamos em Los Angeles em novembro de 2019. A poluição é tão forte que a luz do sol, que quase não aparece durante o dia, é sombria. Antecipando em três meses as previsões de Ridley Scott, o dia virou noite na segunda passada em São Paulo. Tal qual a Los Angeles de “Blade Runner”, ou Tóquio de “Chuva Negra”, obras-primas do diretor Ridley Scott, a poluição e as queimadas na Amazônia provocaram uma chuva literalmente negra, e não metafórica como no cinema. 

A atmosfera ameaçadora de “Blade Runner” anunciava um futuro dominado pela chuva ácida, causada pela presença de gases ricos em enxofre e azoto na atmosfera. A queima de combustíveis fósseis é um agravante. A chuva e a fumaça que dominam a atmosfera do filme, ainda não são permanentes nas grandes cidades, mas fenômenos como o que aconteceu em São Paulo são vistos em diversos locais do mundo, como em Beijing na China, cuja atmosfera volta e meia é dominada pela poluição.

Um hábito chinês, mais pessoas a cada dia usam máscaras nas ruas, assim como em “Chuva Negra”, os habitantes de Tóquio andam permanentemente de guarda-chuvas. As queimadas da Amazônia vêm alimentando protestos pelo mundo, e ontem a situação chegou a um ponto crítico quando o presidente francês Emanuel Macron pediu uma reunião dos países mais desenvolvidos do mundo, o G7, para tratar do que chamou uma “calamidade para Humanidade”.  

A reação imediata do governo brasileiro foi afirmar que a reunião do G7, “sem a participação dos países da região, evoca mentalidade colonialista descabida no século 21”. Está certo, mas, ao sacar a carta do patriotismo, Bolsonaro está estimulando uma teoria da conspiração que alimenta a paranóia de muitos. A de que os “estrangeiros” estão querendo nossas riquezas amazônicas.

 Na ordem do dia pelo 25 de agosto, Dia do Soldado, o comandante do Exército, Edson Leal Pujol, afirmou, nessa linha, que incautos insistem em tutelar a Amazônia: “Não se enganem. Os Soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para defender e repelir qualquer tipo de ameaça.”

Seria mais produtivo que a reação brasileira fosse menos emocional, e mais científica. Poderiam informar que, para a NASA,  a atividade total de incêndios na bacia amazônica neste ano “esteve próxima da média em comparação com os últimos 15 anos”. Os técnicos salientam que, embora nos estados do Amazonas e Rondônia os incêndios tenham aumentado, estão abaixo da média em Mato Grosso e Pará, segundo estimativas do Global Fire Emissions Database.

Se o governo brasileiro não se mostrasse oficialmente tão avesso à proteção ambiental, na retórica muito mais do que na prática até o momento, e tão adversário das ONGs que atuam na Amazônia, a ponto de o presidente Bolsonaro acusá-las de estarem colocando fogo nas florestas de propósito, para prejudicar a imagem do Brasil no exterior e continuar ganhando verbas que foram cortadas, seria mais fácil lidar com esse problema.

A situação ambiental é tão delicada e grave que, quando Bolsonaro tentou juntar os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, todos consideraram um escândalo, sinal de que o Meio-Ambiente seria relegado a segundo plano. Hoje, se ele voltar ao tema, anunciando que a ministra Teresa Cristina acumulará as pastas, todos vão achar ótimo. Só tirar o elefante da sala já desanuviaria o ambiente.

A ministra da Agricultura tem se mostrado sensata e cuidadosa no trato da questão ambiental, que passou a ser uma preocupação dos agricultores que dependem da imagem do país no exterior para conquistar mercados para a exportação, ou no mínimo mantê-los.

A crise ambiental em que o país está metido pode ser letal para o agronegócio, que já entendeu isso. Bolsonaro disse que, se nossas exportações para a Europa forem prejudicadas pela crise ambiental, a culpa terá sido da imprensa, que fez sensacionalismo sobre suas acusações de participação das ONGs nos incêndios.

Diz-se que elogio em boca própria é vitupério. No caso, vitupério de Bolsonaro é elogio.  

O Globo, 23/08/2019