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A casa comum

 

O futuro da pós- metrópole dependerá de um projeto global e solidário, centrado na consolidação da paz e da justiça social. E o modo pelo qual lidamos com os resíduos será, sob múltiplos aspectos, parte decisiva do processo. Lembro Zygmunt Bauman: "os lixeiros são os heróis anônimos da modernidade”, quando não, mártires, como os dalits, na Índia, obrigados ao inominável, como testemunhei com meus próprios olhos na duríssima periferia de Nova Déhli.

A encíclica "Laudato Si”, do Papa Francisco, traz a desigualdade social para o centro do debate ecológico, e chama a atenção justamente para os vulneráveis, que são as "pessoas descartadas”, a descoberto dos direitos fundamentais. Esse doloroso círculo vicioso, e refiro- me à degradação do homem e da natureza, de modo inseparável, tornou- se dramaticamente claro com as chuvas de 2010, que causaram o deslizamento de terra no Morro do Bumba, em Niterói, erguido sobre um antigo lixão, quando se perderam 267 vidas.

Não apenas o futuro da pós- metrópole dependerá de uma nova relação com o meio ambiente, mas o futuro da própria humanidade, como lembra o filósofo Emilio Eigenheer desde os anos de 1980, quando iniciou o primeiro projeto de coleta seletiva no Brasil. Quase um profeta urbano, ao tratar com ousadia todo um conjunto de questões que pareciam antes inabordáveis, antecipando a problemática dos resíduos. Sob uma visão holística, de tudo que os atravessa e constitui, como interessante representação, forma de ser e de estar no mundo. É o que fazemos ao lidar com o lixo, que se torna ambiguamente sagrado, ao mesmo tempo bendito e maldito, puro e impuro, parcela de Deus e do diabo, um rito de passagem que se renova a cada dia.

Emílio prepara uma nova mostra sobre coleta seletiva. Resíduos que tecem uma fascinante biografia urbana, marcada pela globalidade de seus variados e incontáveis fragmentos. Pequenas galáxias, regidas pela força gravitacional da memória, efêmera, estrelas natimortas e paradoxalmente redivivas, entre a luz e a sombra dos resíduos.

O que me agrada no que vi é a contemplação de fundo filosófico da futura mostra, com sutileza interdisciplinar, que não perde a assimetria social, tatuada no corpo da cidade, eviscerada, em torno de seus múltiplos escombros: livros preciosos, retratos antigos, selos e postais, que emergem de uma estranha era paleolítica, dos dias que correm, como garrafas lançadas ao oceano do nada.

Se já não podemos esperar pelo anjo da história contra um modelo social perigoso, em meio aos fragmentos da modernidade tardia, é chegado o momento da proposição de políticas públicas contundentes, que levem a pósmetrópole ao protagonismo da mudança não apenas das fontes de energia, mas de um velho e perigoso paradigma que precisa ser, de uma vez por todas, superado, em benefício de nossa casa comum.

O Globo, 07/10/2015