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Cartola e Pasolini

 

Fiz uma visita emocionada ao Morro dos Macacos, de mãos dadas com um verso de Pier Paolo Pasolini: “a favela fatalmente nos esperava”. Essa imagem revelou-se mais nítida e grávida de futuro, dentro da creche  que abrigou num fim de tarde a Flupp. Não poderia haver sinal, outro e melhor, que o da creche, radicado numa cidade que espera crescer no seio de uma cultura de paz e igualdade.
    
Pasolini considerou o Rio de Janeiro como se fosse uma “Divina comédia”. E, se a obra de Dante requer um Virgílio, posso dizer que fui ao morro com três:  Élcio Salles, Julio Ludemir e Camila Leal. Eles me impressionaram com a inteligência do processo, a sensibilidade para dialogar, com uma linguagem franca e aberta, com respeito e entusiasmo. Um pequeno sarau abre os trabalhos, na leitura de poemas de diversas comunidades, com um lirismo áspero e duro, em que não falta uma pequena quota de esperança e delicadeza.
     
Muito aplaudido, Íbis Silva Pereira prega uma defesa contundente das potências do afeto, em todos os quadrantes, na vida e na leitura, dentro e fora das páginas de Cervantes ou Dostoiévski. Tece o elogio inequívoco da literatura, como gesto político e poético, como fundamento da cidadania. Para quem não sabe, Íbis é coronel da polícia militar, e fala com tamanho entusiasmo sobre os livros, como é raro de se ver nas faculdades de letras. Ouvi algo parecido na voz de um presidiário, para quem a literatura é a irmã gêmea da liberdade, mergulhando sempre nas páginas de romances de envergadura. 
  
Deu-se depois a palavra aos escritores convidados, dentre os quais Ricardo Aleixo, que abordou com empatia as razões de seu laboratório criativo, entre gesto e palavra, em torno de um Brasil de tradição pluralista.
    
Haveria outro norte para a ocupação dos morros, que não se baseasse no processo de paz? A mesma paz que há de libertar toda a cidade, de modo que desapareça em definitivo a fronteira ilusória entre morro e asfalto, polícia e bandido, “eles” e “nós”. E assim nos salvamos mutuamente, num humanismo pleno, para que se evite a letra acertada e altamente dramática de Mc Smith: “Nossa vida é bandida/ e o nosso jogo é bruto. / hoje somos festa,/amanhã seremos luto”.
    
Hoje podemos dizer adeus ao inferno e pensar o paraíso, ainda distante, em construção, com muitos parceiros, plural, ainda sem Beatriz, visto no surdo purgatório de nosso tempo, em que não falta a dimensão da esperança, do inacabado, das coisas grávidas e futuras.
    
Deixo com renovado vigor o Morro dos Macacos. “Puro e disposto a descer”. E de voltar a subir, onde me esperam alguns amigos, com a promessa de um novo encontro. Desço e evoco a presença de Cartola e Mc Smith. Desço fortemente emocionado, tomado da mesma ambiguidade de Pasolini, que disse, numa favela dos anos de 1970: “Ó Brasil, minha desgraçada pátria/ votada sem escolha à felicidade”.

O Globo, 19/06/2013