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Autonomia da Escola

 

Levamos séculos para descobrir que a infância não é uma doença que ataca os seres humanos quando nascem, tão dependentes e incompletos se mostram. A criança não passaria de um adulto imperfeito, para o qual se devem ministrar remédios, que consistem em apressar-lhe o crescimento, mediante atribuição de tarefas e compromissos, que dissolvam a profunda poesia em que se move.  Um crime de lesa-humanidade que se prolonga, infelizmente, sob diversas modalidades.
     
Leio o programa de uma escola que oferece, a meninos e meninas de seis até onze anos, aulas de economia e administração. E acrescenta uma gloriosa possibilidade de que se tornem milionários, dentro de vinte anos, ou quem sabe antes, através de “sólido projeto de educação financeira”. Não deixa de ser uma forma de considerar as crianças. Como se fossem um bônus do tesouro, um bom investimento a médio e longo prazo.
    
Existem, obviamente, propostas mais elaboradas com fins sociais e educativas, que merecem análise e discussão. Mas o problema é outro, no risco de uma escola que se transforma em agência de segunda classe, que já elabora seu projeto filosófico, toda de joelhos para o mercado, sem um programa de cooperação e liberdade, dissolvendo o território frágil da infância. Uma escola que, de modo geral, não propõe um livro de literatura, que não conhece atividades artísticas, além das acessórias para substituir uma eventual falta de aula, com alunos em permanente estado de competição, como se vivessem dentro da bolsa de valores, de olho no índice Bovespa, sem uma sombra de cortesia, sem o fóssil de um gesto solidário. Eis uma escola pronta a atender o projeto de meia-humanidade, em que desabam as dimensões lúdicas e afetivas, sem a urgente e necessária defesa dos sonhos. 
    
Em certa escola pública assistimos a imposições de secretarias despreparadas, movidas pelo fetiche das estatísticas, dos índices  trazidos por improvisados pedagogos, que empreendem uma guerra santa contra os “verdadeiros inimigos” da escola, que seriam justamente alunos e professores, que não colaboram no alcance das metas, como se a educação dependesse apenas do milagre da multiplicação dos peixes e dos formulários da burocracia, em detrimento da dignidade dos que trabalham nessa mesma escola, superando ásperos desafios, que os tecnocratas não poderão jamais avaliar, por absoluta incompetência. 
    
Trata-se da defesa de uma escola autônoma, com um projeto amadurecido, robusto, sem favores e concessões, diante de vontades que apressem as crianças para fins não generosos, como se fossem bens flutuantes ou cifras eleitorais, que se podem usar sem grandes problemas. 
    
Precisamos de uma escola de valores democráticos fundamentais, de uma escola corajosa, que ande, quando preciso, na contramão e favoreça o território de uma viva subjetividade.        

O Globo, 14/04/2013