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Sousa Caldas

AO HOMEM SELVAGEM

Ó homem, que fizeste? tudo brada:
Tua antiga grandeza
De todos se eclipsou; a paz doirada,
A liberdade com ferros se vê presa,
E a pálida tristeza
Eu teu rosto esparzida desfigura
De Deus, que te criou, a imagem pura.

Na cítara, que empunho, as mãos grosseiras
Não pôs cantor profano;
Emprestou-ma a verdade, que as primeiras
Canções nela entoara; e o vil engano,
O erro desumano,
Sua face escondeu espavorido,
Cuidando ser do mundo em fim banido. 

Dos céus desce brilhando
A altiva independência, a cujo lado
Ergue a razão o cetro sublimado,
Eu a ouço ditando
Versos jamais ouvidos: reis da terra,
Tremei à vista do que ali se encerra. 

Que montão de cadeias vejo alçadas
Com o nome brilhante
De leis, ao bem dos homens consagradas.
A natureza simples e constante,
Com pena de diamante,
Em breves regras escreveu no peito
Dos humanos as leis, que lhes tem feito. 

O teu firme alicerce eu não pretendo,
Sociedade santa,
Indiscreto abalar; sobre o tremendo
Altar do calvo tempo, se levanta
Uma voz que me espanta,
E aponta o denso véu da antiguidade,
Que à luz esconde a tua longa idade. 

Da dor o austero braço
Sinto no aflito peito carregar-me,
E as trêmulas entranhas apertar-me.
Ó céus! Que imenso espaço
Nos separa daqueles doces anos
Da vida primitiva dos humanos! 

Salve dia feliz, que o loiro Apolo
Risonho alumiava,
Quando da natureza sobre o colo
Sem temor a inocência repousava,
E os ombros não curvava
Do déspota ao aceno enfurecido,
Que inda a terra não tinha conhecido. 

Dos férvidos Etontes debruçado
Nos ares se sustinha,
E contra o tempo de furor armado,
Este dia alongar por glória tinha;
Quando nuvem mesquinha
De desordens seus raios eclipsando,
A noite foi do averno a fronte alçando. 

Saiu do centro escuro
Da terra a desgrenhada enfermidade,
E os braços com que, unida à crueldade,
Se aperta em laço duro,
Estendendo, as campinas vai talando,
E os míseros humanos lacerando. 

Que augusta imagem de esplendor subido
Ante mim se figura!
Nu; mas de graça e de valor vestido
O homem natural não teme a dura
Feia mão da ventura:
No rosto a liberdade traz pintada
De seus sérios prazeres rodeada. 

Desponta cego amor, as setas tuas:
O pálido ciúme,
Filho da ira, com as vozes suas
Num peito livre não acende o lume.
Em vão bramindo espume,
Que ele indo apôs a doce natureza
Da fantasia os erros nada preza. 

Severo volteando 
As asas denegridas, não lhe pinta
O nublado futuro em negra tinta
De males mil o bando,
Que, de espectros cingindo a vil figura,
Do sábio tornam a morada dura. 

Eu vejo o mole sono sussurrando
Dos olhos pendurar-se
Do frouxo caraíba que, encostando
Os membros sobre a relva, sem turbar-se,
O sol vê levantar-se,
E nas ondas, de Tétis entre os braços,
Entregar-se de amor aos doces laços. 

Ó razão, onde habitas?... na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do vício; ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro!... Dize... onde?
Eu te chamo, ó filósofo! Responde. 

Qual o astro do dia,
Que nas altas montanhas se demora,
Depois que a luz brilhante e criadora,
Nos vales já sombria,
Apenas aparece; assim me prende
O homem natural; e o estro acende. 

De tresdobrado bronze tinha o peito
Aquele ímpio tirano,
Que primeiro, enrugando o trovo aspeito,
Do meu e teu o grito desumano
Fez soar em seu dano:
Tremeu a sossegada natureza,
Ao ver deste mortal a louca empresa. 

Negros vapores pelo ar se viram
Longo tempo cruzando,
Té que bramando mil trovões se ouviram
As nuvens entre raios decepando
Do seu seio lançando
Os cruéis erros, e a torrente ímpia
Dos vícios, que combatem, noite e dia. 

Cobriram-se as virtudes
Com as vestes da noite; e o lindo canto
Das musas se trocou em triste pranto.
E desde então só rudes
Engenhos cantam o feliz malvado,
Que nos roubou o primitivo estado. 

 

A CRIAÇÃO

Já do tempo voraz se divisava
A férrea, curva foice reluzindo;
Desapiedado, umas vezes meneava,
Outras vezes ao longe desferindo,
Em torno de si mesmo a agitava;
Quando o Númen potente
A cujo aceno o tempo audaz nascera,
Fez retumbar a voz, que tudo impera;
Os abismos do nada estremeceram
E ao Deus grande e clemente
Os possíveis tremendo obedeceram:
Atônito levanta a escura frente
O caos rodeado
De confusão e horror: inda a beleza
Com pincel variado
Não ornava a recente natureza.

Tranquilas jazendo,
As ondas dormiam
Que a face cobriam
Do caos horrendo.

Ao leve soprar
De um zéfiro brando
Vida vai cobrando
O lânguido mar:

Do vasto Oceano
No seio se encerra;
E a mádida terra
Deixa respirar.

A luz resplandeceu, e o firmamento
Que em denegridas sombras se envolvia,
Mostrou formoso o seu soberbo assento:
De graças e esplendor se revestia
O majestoso dia;
Quando cheio de pompa e luzimento,
O sol rompeu nos ares, dardejando
De animante calor celestes raios.
Enternecido, triste sentimento
Mágoa o rosto lindo
Da noite descontente,
Que a ausência de Febo luminoso
Assim terna anuncia:
Entanto desferindo
Escassa luz em trono tenebroso,
Sobre nuvens o cetro reclinando,
A luz dos céus e terras alumia.

Fulgentes estrelas
Nos céus resplandecem;
Na terra verdecem
Mil árvores belas.

Os montes erguidos
Os vales retumbam
Ao som dos rugidos,
Dos feros leões.

Nas asas sustidas,
As aves revoam:
Nos ares entoam
Sonoras canções.

Ó terra! Ó céus! Ó muda natureza!
Transbordai de alegria: triunfante
Das entranhas do nada surge o homem:
Eis aparece; e a cândida beleza
O sisudo semblante lhe enobrece.

Seu majestoso porte.
Soberano do mundo o patenteia.
Gravada mostra n’alma a augusta imagem
Do Senhor adorável
Que o imenso universo senhoreia:
De sua pura carne se teceram
As meigas graças, que no rosto amável,
Da mulher carinhosa,
Com suave doçura resplandecem.

Apenas o divisa transportado,
Tu és o meu prazer, que novo encanto
Eu vejo lhe dizia: e arrebatado
Em delírio amoroso,
Mil vezes em seus braços a apertava,
E todo o extenso mundo,
Por ela só, deixar pouco julgava

Qual rosa engraçada
Que zéfiro adora,
Terna e delicada,
Enredo de Flora:
Assim é mimosa
E linda a mulher
E o homem se goza
Em se lhe render.

Qual grita entre as feras
Leão rugidor,
Derramando em torno
Gélido terror:

Tal se mostra o homem
Sobre toda a terra;
Tudo rende e aterra
Em arte e valor.

O mundo era criado, e transluzia
Em toda parte o braço onipotente,
Que fizera raiar a noite e o dia.
Da frígida semente
Outra vez novo ser se produzia,
Animada ao calor do sol ardente:
Tudo em vida fervendo parecia.
Virtude de crescer, multiplicar-se,
O animal que à fera
Ímpia morte soubera sujeitar-se.

Então o Criador arrebatado
Em divino prazer, almo, infinito,
Olhou dos céus o livro sublimado
Que com as suas mãos havia escrito,
E assim falou: ouvi cheios de susto,
Mortais, a voz do Deus imenso e justo.
Os céus entoam
Minha grandeza,
Os seres todos
Juntos pregoam,
Por vários modos,
Do eterno ser
O incomparável,
Grande, inefável,
Alto poder.

A minha glória,
Homem, respeita;
Rendido, aceita
Meu mandamento:
Traze à memória
Que o firmamento
Por ti criei;
Que o mar e a terra,
E o que ela encerra
Tudo te dei.

Sem me adorares
Com vivo amor,
E me ofertares
Santo temor;
Por mim o juro,
Minha presença
Ao peito puro
Eu mostrarei,
Em recompensa
Tua serei.

Mas se quebrares
O meu preceito,
E sem respeito,
O profanares,
Da morte fera
A mão severa
Tu sentirás.
E em vão gemendo,
No averno horrendo,
Me chamarás.

 

SONETO

Oito anos apenas eu contava,
Quando à fúria do mar, abandonando
A vida, em frágil lenho e demandando
Novos climas, da pátria me ausentava.

Desde então à tristeza começava
O tenro peito a ir acostumando;
E mais tirana sorte adivinhando
Em lágrimas o pai e a mãe deixava.

Entre ferros, pobreza, enfermidade
Eu vejo, ó céus! que dor! que iníqua sorte!
O começo da mais risonha idade.

A velhice cruel, (ó dura morte!)
Que faz tremer tão triste mocidade,
Para poupar-me descarrega o corte.

 

A IMORTALIDADE DA ALMA

Sim, eu sou imortal. Bramindo espume
A maldade cruel; e desgrenhada
Morda-se embora, pois não pode irada
Extinguir da razão o vivo lume.

Crede, caros amigos, não consume
Do tempo estragador a foice ervada
Esta viva faísca, que abrasada
Caiu do sopro do Supremo Nume.

O justo sobre a terra, aos céus erguendo
Os algemados braços, e o tirano
Vício do trono com o pé batendo,

Fazem fugir o refalsado engano
Que em vão forceja, para ver gemendo
Da verdade o sisudo desengano.

 

NA PRESENÇA DE UMA GRANDE TROVOADA

Tremei, humanos: toda a natureza.
Do seu Deus ao aceno convocada,
Sobre negros trovões surge sentada,
Em cruel fúria contra nós acesa.

Do rosto seu escondem a beleza,
Medonha escuridade acompanhada
De abrasadores raios, e pesada
Saraiva que no ar estava presa.

Agora perde a cor de medo cheio,
O monarca feliz e poderoso,
Que o vil orgulho abriga no seu seio.

Tu descoras também, ateu vaidoso,
E menos cego sem achar esteio,
A mão, que negas, beijas duvidoso.