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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Graça Aranha

RESPOSTA DO SR. GRAÇA ARANHA

Sr. Sousa Bandeira,

A vossa filosofia tão sagaz vos revelou que a sede do louvor é um sinal de divindade. Parece certo que o finalismo oculto da criação é glorificar o criador... E por isso, à entrada para a nossa companhia, destes-nos o que os homens dão de melhor aos imortais, palavras que cantam como hinos... E sem notar que estáveis a nos comprometer – foi este o vosso último desfalecimento humano – atribuístes vossa escolha a uma razão de coerência e de continuidade, à intenção de vos acolher apenas como o discípulo de uma escola e representante de uma geração intelectual a que também pertenceu Martins Júnior... A Academia tem horror aos princípios – seja esta a vossa primeira iniciação, – principalmente àqueles que a privem da liberdade. Ela não atendeu para a vossa eleição a nenhum motivo lógico desses que lhe atribuís. Atendeu à sua própria lógica. Elegendo-vos, elegemos a cultura na sua manifestação mais ampla e mais elegante. Não houve de modo algum um caso de sucessão forçada, que seria a restrição do vosso merecimento. Demais, cada um de nós é sempre a continuação de outros.

Há um patrimônio coletivo que é a matéria geradora, o substratum comum dos espíritos de uma civilização. No romancista e historiador Taunay, no professor e médico Francisco de Castro, no poeta e político Martins Júnior, havia a mesma vocação de escritor, o sentimento literário, e esse conjunto indefinido e misterioso de qualidades que é a essência do homem representativo e que o instinto da Academia descobre e de que se apodera para o rejuvenescimento contínuo da nossa vida. Por força dessas renovações infinitas escaparemos da morte pelo frio e estaremos sempre em plena atualidade... E talvez a virtude do nosso número, exagerado para muitos, consista em abrir espaço aos que vierem surgindo para a vida da inteligência... E não há receio de longa espera. Seguramente há mais pressa de morrer que de nascer.

A cadeira que viestes ocupar é de quantas aqui a mais habitada de sombras. É a cadeira privilegiada da morte e hoje da saudade, e que se tornou inatingível aos vossos últimos antecessores, e para a qual trazeis, como desforra, a frescura da mocidade. Lembremo-nos também que sobre ela paira a magia encantadora da lenda. É a cadeira de Otaviano, o feliz escritor que vós ignorais como eu, e cuja realidade todos amanhã esquecerão para vê-lo por entre brumas, transportado para o futuro pela milagrosa ilusão da fábula. Que foi ele exatamente, pouco importa. Para que a verdade na glória? Viverá a fama da transparência e da espontaneidade de seu espírito dúctil e alado, como de um grego. O vosso lugar é deliciosamente à sombra desse fugitivo inspirador da nossa instituição, amado e venerado pela lenda, cuja mentira é mais potente e mais verdadeira que a história... Assentai-vos de manso nesse nicho de um deus. Não lhe perturbeis o segredo; deixai que fique intangível e glorioso o nume antigo, sem inscrições que o revelem, sem o livro que o documente e talvez o demolisse... e aí reste, mito do estilo e da graça, sob a risonha guarda da vossa veneração.

Não acredito, e o lamento, que a lenda seja a vossa história. A transfiguração do vosso espírito, o toque iniciador de vossa verdadeira consciência, teve o seu momento de precisão cronométrica, e foi por um admirável favor do destino em uma das grandes crises do pensamento brasileiro. Até esse instante nós ocupávamos um terreno de difícil acesso, mesmo à preamar das idéias universais. Éramos o que se chama uma nação atrasada, e que se movia em uma lentidão secular. Longe de nós havia a outra civilização, cuja força avassaladora tende para a unidade, para a coesão, buscando envolver o mundo neste sistema de maravilhosa eletricidade intelectual, em que tudo vibra nos mesmos profundos desejos e nas mesmas divinas alucinações. Para este esforço de quebrar a separação do espírito brasileiro, tornando-se o revelador da atualidade européia, o transmissor entre os dois pólos da cultura, um homem, como sempre acontece nos milagres da história, foi predestinado.

Em 1882 Tobias Barreto, que os seus condiscípulos não compreenderam e de cuja imensa reputação ainda se espantam e sorriem, abalava como um ciclone a sonolenta Academia do Recife. Ele invade a sociedade espiritual de seu tempo como um verdadeiro homem da sua raça. E o segredo da sua força está na absoluta e constante fidelidade a esse temperamento, em cuja formidável composição entram doses gigantescas de calor, de luz e de todas aquelas ondas da vida que o sol transfunde regiamente ao sangue mestiço...

Tinha a exuberância, a seiva, a negligência que o fazia estranho a todo o cálculo, mesmo o da sua reputação de além-túmulo, o prodigioso dom de fantasiar, o fabuliren dos criadores, e mais a impaciência e a temível explosão da revolta que permanecerá como o traço vivaz do seu caráter. Não houve vaso que o amoldasse; não conheceu senão os limites inabordáveis da liberdade e os da extrema irresponsabilidade. Pôde, como um sertanejo, viver com o povo, foi descuidado, miserável e infeliz. Cresceu músico e poeta. E mais tarde, quando lhe chegar a cultura, ela virá na barca fantástica da poesia. E foi pelo impulso dessa volátil essência do seu temperamento que Tobias Barreto passou da arte para a Filosofia.

O pensador nele é uma modelação do vate. Transportará para a Metafísica, para as ciências biológicas, para o Direito, a magia da adivinhação, o improviso milagroso, a necessidade de idealizar e de imaginar, que é a poesia. Quase toda a sua ciência, quando não vem da legislação ou da língua, é feita principalmente de intuição e os seus vastos descortinamentos, os clarões que abre, a vida que dá às idéias apenas imprevistas no prisma da sua visão, é mais a criação do poeta que a lógica do sábio. E nisto foi um homem do seu tempo e da nossa raça. É preciso que o sangue corra longamente, durante séculos, numa infinita descendência, para que o precipitado das forças originais do nosso espírito seja a idealização científica. O máximo, a que por enquanto podemos atingir, foi o que nos deu Tobias Barreto, a filosofia através das cores solares da poesia.

Não é um sinal de incapacidade; é uma segurança de que estamos no princípio, pois na realidade a inspiração dominante da nossa vida será sempre a preocupação intelectual e neste sentido o Brasil será gloriosamente uma nação de metafísicos. Pelas nossas origens, pela multiplicidade das nossas raças, pela variedade de deuses que povoam as almas geradoras deste país, pela imensidade territorial que exalta a imaginação e engrandece o espírito, nós, como os povos da Índia, sentimos uma atração imperiosa, que nos arrebata para o sonho, para o vôo místico, onde achamos o consolo da tremenda realidade. Seria o momento da religião...

A cultura científica apenas iniciada não permite a complexa expansão do espírito religioso, e o substituiu pela metafísica da Matemática, a principal manifestação das tendências abstratas do nosso gênio. Nós desenvolvemos admiravelmente a faculdade de calcular como a mais importante ginástica do cérebro e nos absorvemos nela, como se fosse a poesia da ciência. Não há país onde o cálculo tenha mais devotos, sectários, templos e mesmo poetas, e, como todas as religiões, essa também terá as suas incompatibilidades e desdéns.
Eu creio que a Academia, onde a Geometria não impera, onde ninguém cuida de reduzir a um frio teorema nem a Filosofia, nem a arte, deve ser a zombaria desse espírito matemático o mais zombeteiro dos espíritos... A Academia vinga-se opondo serenamente a essa metafísica de Euclides a metafísica do estilo... de Machado de Assis.

Tobias Barreto não teria tido aquele imenso e decisivo triunfo se não correspondesse à exigência íntima da nossa formação nativa, se não introduzisse uma abstração metafísica, que ainda era uma novidade. Trouxe-nos o monismo... E, filosofia contra filosofia, a obra de demolição começou pelo conceito do Direito para depois se espraiar por todos os recantos da cultura. Mas o resultado principal do aparecimento desse pensador na vida brasileira, talvez o que maior vastidão de Infinito pôde descortinar, é a fascinação que exerceu sobre os jovens espíritos, como o vosso, que não seríeis quem sois, se não tivésseis recebido do seu gênio a centelha criadora. Não conheço maior elogio àquele que foi o vosso inspirador, e não o vosso mestre, dando-vos a liberdade do inspirado, e. não a servidão do discípulo. Porque Tobias Barreto combateu, destruiu, arquitetou idéias por conta própria, sem querer fundar escolas, nem reconhecer adeptos. Para mim eu o vejo só – a unidade completa e desejada do pensamento e da ação. E toda a sua grandeza sobressai no isolamento em que se manteve, e em que o devemos conservar. Se dele se procurasse originar uma escola, ela não poderia deixar de lhe ser inferior.

O Sol não cria outro sol... Se a força singular desse homem estava na genialidade poética por onde lhe veio a intuição científica e filosófica, seria exatamente essa genialidade, essa imaginação que faltaria aos seus discípulos, porque ela era uma expressão puramente individual e que se não repete. Extrairiam dos livros e das frases do mestre apenas as fórmulas audazes, confundiriam a sátira com a seriedade do pensamento, tomariam os vagos delineamentos por conclusões definitivas e espalhariam numa língua bárbara e dogmática doutrinas para as quais não teriam nem a ciência, nem a adivinhação profética.

Em vosso espírito, porém, a inspiração se fez de outro modo Tudo o que recolhestes, transfundistes ao vosso sangue, ilusões e fórmulas a que destes o cunho próprio.
E foi principalmente desse riso colossal de Tobias Barreto que, por uma luminosa. transformação, proveio a qualidade brilhante do vosso espírito, o humorismo... No fundo da alma de todo o irônico há um sonhador incompleto. A beleza do sonho está na abstração exclusiva e absoluta; sonhar sem ver jamais a realidade, sonhar cavalgando a fantasia e galopar pelo infinito; criar num espasmo estético novos mundos, novas formas, no deslumbramento da cor e do som... ou mesmo sonhar num vôo de bondade, ou no êxtase da religião... Mas quando o poder do sonho não é tão assombroso que dê o arrebatamento perpétuo e por entre as franjas da fantasia aparece o raciocínio insidioso, nesse instante o sonhador desfalece, disfarça a sua alma irreal; as sombras descem e o humorista se ergue como uma flor da noite, espalhando mistérios e venenos...

A província por algum tempo e a burocracia, sempre, foram os excitantes do vosso riso... O exame imediato da produção literária abriu novos e inextinguíveis mananciais à vossa crítica jovial. Creio que é vossa a descoberta de que a literatura é neste país uma doença grotesca de muitos espíritos; uma espécie de dança cerebral de que são apoderados, ao simples contato da pena que alucina, destrói o equilíbrio e faz irromper o disparate... Estes escritores ou oradores – a observação deve ser vossa – invadem os jornais, dominam os parlamentos e os institutos e são o sintoma da nossa retórica coletiva. É a literatura dos possessos... como um outro grande humorista definiu. Mas essa possessão não está em quase todos nós? Onde a linha, a simetria, o gosto, senão em raros, muito raros? E quantos desses possessos não atingiram ao gênio pelo próprio e descomunal exagero dessa qualidade, dessa alucinação racial? Oh! Haveria eternamente do que zombar... Mas valerá a pena?

Talvez algum dia próximo a vossa alma secreta vos pedira tréguas a tanto riso e buscareis então o repouso na contemplação estética. Será o momento de vossa segunda emigração à Europa. A primeira vez que peregrinastes por aquelas terras santas da arte e da história, creio que era ainda a curiosidade indecisa que vos conduzia... O artista não se tinha revelado em vosso espírito, o pensador começava a apontar. Percorri avidamente os vossos escritos para descobrir neles a impressão européia e não achei senão um vago traço... político. A Itália é numa das vossas belas páginas o país de Cavour e Garibaldi...

Espero-vos à volta da futura viagem. A Itália vos terá revelado o sentimento do sensualismo que lhe inspirou a arte e a vida... Ali tereis a compreensão meridional na transparência do ar, no fulgor das cores, na melodia das vozes, que parecem tudo arrebatar numa dança e num vôo... Ali assistireis à animalidade do amor, que de tão profundo é inocente, sentireis a febre que agita a existência e tudo enlaça, tudo aspira incorporar no universo, na tragédia dos sentidos, na posse final, louca e confusa dos seres... Pasmareis diante do riso das mulheres, que abre os lábios e a alma; ouvireis o relincho perpétuo dos faunos, a gargalhada gostosa das bacantes, e esse misterioso e elétrico frenesi que estremece o céu, a cor e os homens...

Não receeis que a transplantação provisória seja para vós a morte do sentimento brasileiro. Contai com a saudade criadora e benéfica... A produção literária ou artística certamente obedece ao temperamento individual. Mas o fato de estar em contato direto com os assuntos é muitas vezes motivo de inibição para se produzir a obra da arte. A aproximação dá o aspecto confuso aos objetos, tudo se apresenta como uma massa indistinta, compacta e sem representação possível. Esses artistas e escritores precisam de perspectiva, que a presença no país não lhes pode dar. E nessa indispensável necessidade da distância, temos a razão de tantos e inexplicáveis exílios, a que muitos de nós se sacrificam pelas exigências fatais e sagradas da produção espiritual.

Longe de mim o pensamento de vos incitar ao exílio; este virá, naturalmente, sem pressa, à hora em que se pede abrigo à eterna consoladora... Ficai o mais tempo possível conosco e continuai a glosar as nossas pequeñeces... Desta forma nós seremos menos tristes, vendo a esplêndida expansão desse diletantismo saboroso, que é a feição da vossa extrema cultura... Adivinhamos a voluptuosidade da crônica que descobre as mil faces das coisas, que divaga, desliza pelos fatos, sutil e ágil, como um pássaro no ar, e sabemos todo o encanto que vem da agudeza do faro em sentir o interesse, que excita instantaneamente as multidões e essa tenaz porfia em ser o primeiro a desfolhar o assunto... Quantos assuntos pode esse curioso tocar em cada dia!... O vosso sultanato de cronista é delicioso como será o outro, e nós damos testemunho de que o exerceis discretamente, sabiamente, sem sofreguidão, com a prudência de um sóbrio e casto estilo de professor.

Seguramente nessas crônicas, como nos ensaios e lições, todo o vosso trabalho intelectual exprime uma aspiração de síntese filosófica, que, além de um traço de raça, é imposta ao sangue com um pendor de família... A filosofia foi a fada que sorriu ao vosso nascimento... Tendes necessidade imprescindível de inquirir das origens secretas das coisas; o desejo ardente de explicar o inexplicável e subordinar tudo a um só conceito, um só princípio, uma só verdade... Não sabemos qual seja esta síntese absoluta... Estamos, porém, certos de que a possuís; as vossas últimas palavras cheias de entusiasmo nos ameaçaram com o próximo reinado da Verdade.

A Academia é o eterno Pilatos que duvida de qualquer verdade. E, ainda que jovem, ela é experiente e encanecida. Não tem escrúpulos em se comparar por instantes às mulheres que, por mais inocentes que sejam, são sempre antigas, porque são as mães... E no processo de criação do pensamento e da forma, a Academia têm aquela singular e privilegiada função maternal, que é o início remotíssimo da vida, e que infunde a sabedoria... Para ela a verdade somos todos nós, a incoerência da sua própria existência, o desencanto das nossas ilusões individuais, a divergência das nessas idéias, o absoluto de cada um formando o relativo de todos. A verdade são quarenta bocas que se contradizem.

No fundo tais opiniões talvez não tenham essa infalibilidade traída por vossas palavras. A peregrinação que fizestes pelos vários sistemas filosóficos vos deu sem dúvida o desencanto critico e o ceticismo amplo e benfazejo. Não há muito tempo destes o balanço do vosso espírito e vos arregimentastes no criticismo... Não sei até onde Kant vos tomaria como um discípulo, desde que pelo impulso eclético do temperamento mergulhastes no monismo filosófico, que é o flumen para o panteísmo e para o idealismo transcendental. Mas, querendo conciliar os inconciliáveis, fostes o verdadeiro filósofo do vosso espírito.

O pensador, que vos inspirou, aconselhava com admirável profundeza que cada um seguisse sempre a filosofia do seu temperamento... Este conselho teria sido inscrito pela sabedoria antiga, em letras de ouro, nas academias da Hélade. O grande vôo e o delicioso encanto dos jogos da Filosofia só podem vir da liberdade e por isso a escola é contraditória, legislando infalivelmente, esquecendo as múltiplas e indefinidas contingências que fazem de cada homem um centro diferente da vibração universal. Concordais que, pelo fato de serem possíveis tantas filosofias quantos são os homens da terra, não se deve condenar a Filosofia e muito menos a eliminar.

Seria a absurda mutilação coletiva da mais essencial função do espírito humano. Aqueles que esperam tranqüilos que a ciência, e somente ela, explique os enigmas do universo, são provavelmente incapazes da síntese filosófica, mas não têm força para extingui-la dos outros espíritos, como não eliminam da vida a religião e a arte... Falando a um filósofo pode-se dizer sem extravagância que as posições da ciência e da filosofia diante dos fenômenos complexos do Ser são bem diversas. A ciência decompõe o universo; conhece-o, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestações parciais. Só há ciência do que se pode fragmentar.

Ela pode analisar, explicar cada ordem de fenômenos que a sensação perceba, ela é essencialmente divisível e analítica. Não dará jamais a explicação sintética do Todo, a essência da causalidade. Ficará estranha ao fato supremo do espírito humano, que é o sentimento da unidade infinita do Universo. E a consciência de tal sentimento só nos pode ser revelada pela trindade: religião, filosofia e arte. A mística da religião é o sentimento do Infinito, realizado na unidade Deus. A mística da Filosofia é o sentimento do Universo explicando-se por si mesmo numa unidade absoluta, abstrata e transcendental. A essência da arte, segundo um celta lusitano da tonalidade genial do judeu português Spinoza, Jaime Batalha Reis, está “nos sentimentos vagos que derivados dos contatos sensíveis – das formas, das cores, dos sabores e dos tatos – conduzem à indeterminação, à fusão dos seres no supremo sentimento do Infinito”.

Diante deste conceito da emoção estética e da essência da arte, o problema da poesia científica que acabastes de examinar, e foi o esforço característico do vosso predecessor na literatura brasileira, não fica resolvido? E também não devem cessar por ociosas todas as restrições de assuntos estéticos? Não há que proclamar somente como artísticas as formas simbólicas, místicas ou psicológicas, ou a arte inspirada em motivos de ordem social como a verdadeira e exclusiva arte. Tão profundamente estéticos são os poemas cíclicos, religiosos e humanos, a epopéia de Dante, o D. Quixote, a Tentação de Santo Antônio, os romances de Dickens e Balzac, como os poemas panteístas de Shelley, as alucinações de Poe, o Peer Gynt, os poemas de Verlaine e as notações de Mallarmé.

Não é a sociedade, não são as questões humanas, nem tampouco as enfermidades nem ainda as palavras ou o próprio Universo, que por uma impressão positiva dão a impressão da Arte... Esta pode resultar desses mesmos assuntos, se o artista extrair deles, e comunicar aqueles sentimentos vagos, indefinidos, que constituem a essência da estética, e nos dão a emoção do Infinito, que está em cada homem. Tudo pode ser objeto da poesia. Martins Júnior, comovendo-se com a lei da seleção natural, com o binômio de Newton, ou com um texto das Pandectas, será um grande poeta, se ele nos deu o vago da poesia íntima, que por acaso sentiu em tais assuntos.

Aquela preocupação científica, ou melhor, social do vosso predecessor não era um sinal de seu temperamento de sonhador político? A política de Martins Júnior era um entusiasmo poético, como a sua poesia foi um sonho político... Em ambos os aspectos ele não se definiu precisamente e, o que é singular, as idéias positivas, científicas, ficaram na poesia, as idéias vagas, abstratas, constituíram a síntese social. Parecia haver entre esses compartimentos de um mesmo espírito um obstáculo invencível, insuperável, criando de cada lado um mundo diferente do outro.

Se Martins Júnior tivesse trazido para a política a ciência da sua poesia, teria compreendido de outro modo o processo da nossa história. O seu determinismo talvez explicasse por uma idéia central cada grupo de fatos da história política do Brasil. O primeiro reinado seria a explosão do espírito de nacionalidade; o segundo reinado seria o princípio da unidade nacional e o sentimento da liberdade espiritual; a república se definiria como e espírito particularista, provincial, mantido pela organização militar.

O vosso predecessor teria visto que, exceto no primeiro reinado, houve nos outros períodos uma transposição de valores extemporâneos, determinando a irrupção de sentimentos, de instintos que falsearam as idéias. A unidade nacional foi feita violentamente, antes da completa expansão do espírito provincial; a liberdade espiritual degenerou em desordem moral; o Império teve a sorte de destruir os princípios conservadores da sua própria estabilidade. Na República o provincialismo revive apoiando-se no espírito militar, cuja preponderância se apresenta como uma reação contra o sentimento burguês do Império... O vosso predecessor viu de outra forma esses fatos. E nós ouvimos as palavras piedosas com que nos descrevestes a desilusão em que se findou aquela meiga natureza humana.

Não sei se ainda é tempo de vos manterdes restritamente na arte e na filosofia. Temo que haja uma grande convergência de vossas energias espirituais para a outra margem... Seria decidir pelo relativo contra o absoluto. Que valem as guerras, as combinações de nacionalidades, a partilha do mundo à vista da singela descoberta do radium? Onde está a eternidade do Império Romano diante da doce fragilidade da Eneida? Que resta da Grécia, que não seja arte, ciência e Filosofia? Essas é que são as forças vivas da humanidade, porque são as necessidades capitais do espírito.

Mas se sentistes o contato do sofrimento, se a piedade vos move e inspira, haveis de conhecer a pungente crise, que é a serena passagem da emoção humana e social para aquele estado do predomínio exclusivo da inteligência... É a deliciosa e cobiçada fuga do ciclo do sentimento para o da Filosofia e da estética. A arte é a libertação, e pelo seu livre e magnífico surto, o homem se torna um companheiro das estrelas... O sonho é o da vasta, múltipla e eterna transformação: tudo passa, tudo se dissolve, tudo vive, e quem sabe? tudo recomeçará outra vez a lúgubre marcha de forçados... São os brincos fantásticos dos átomos inconscientes.

E toda a forma, seja do Sol, seja da Terra, seja da flor, seja da mulher, é a expressão do fieri perpetuo, a contínua vibração do Universo, a vertigem assombrosa das congelações instantâneas do fluido... Então, diante deste perpétuo e fugitivo renascer, na consciência do filósofo cresce a suprema indiferença pelos simples fenômenos, a irremediável resignação à fatalidade cósmica, ou a revolta inútil e amarga das decepções. Agora não é mais possível voltar ao ciclo humilde e bonançoso de onde partiu; há a infrangível subordinação ao império da filosofia e da estética absoluta, que não permite mais reviva aquela alma passada, cheia de ternura, de piedade e de ilusão humana. Pensar; compreender... É tudo? Mas por que, mesmo no Nirvana, o amor e a com¬paixão?... É o mistério profundo da nossa complexidade tenebrosa...