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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. RODOLFO GARCIA

SENHORES:

Manda o ritual que tendes adotado, e a cuja observância o recipiendário se não esquivaria sem desprimor, que as suas primeiras palavras sejam de graças à alta distinção que lhe conferis, chamando-o à vossa ilustre Companhia. Essa obrigação, de minha parte, não desejo seja apenas convencional: cumpro-a com profunda emoção, com perfeita sinceridade, pelo muito que me exalta o prêmio grande com que a vossa indulgência me galardoou.

De há muito sois vós credores de minha gratidão. Faz tempo, um dos vossos, senhor e dono de minha admiração e de minha amizade, apontou-me graciosamente (consta das atas de vossas sessões) um lugar já fora, nessa vasta poltrona quarenta e um, onde se acomodam, com mais ou menos impaciência, os que esperam um dia ocupar, aqui dentro, qualquer outra de número mais baixo...

Permiti recordar-vos que são antigas as nossas relações amistosas, e que mais de uma vez vos visitei cordialmente. Uma delas foi quando aqui se cuidou, na memorável quanto brilhante presidência de Afrânio Peixoto, da criação da Biblioteca de Cultura Brasileira, que hoje traz seu nome glorioso. Para organizar o programa das publicações históricas, Afrânio Peixoto lembrou-se de apelar para o saber incomparável de Capistrano de Abreu. Andava o mestre por esse tempo afundado em seus estudos de lingüística bacairi; mas, encantado com a iniciativa do amigo, a quem não sabia dizer não, depois de ter indicado as grandes obras de informação brasileira, que deviam fazer parte da coletânea, designou a Eugênio de Castro e a quem vos fala para substituí-lo na tarefa de comentá-las e anotá-las, segundo o plano que delineara. Logo a seguir “o vento soprou de um quadrante contrário à direção da Academia e varreu-a”. Ao pampeiro escapou tão-somente a História de Gandavo; o Diário da Navegação de Pero Lopes, de que Eugênio de Castro se incumbira, e os Tratados de Fernão Cardim, que eu preparara, tomaram rumo fora das publicações acadêmicas, que mais tarde vieram a recolher os Diálogos das Grandezas do Brasil, as Cartas de Manuel da Nóbrega, e outras mais.

Tenho, Senhores, em altíssima conta esses episódios, que assinalam a minha aproximação da Academia, com a fortuna de colaborar em seus trabalhos, e maior ainda de tornar-me um pouco vosso conhecido. A eles quero ligar a razão de ser de vossos dignificantes sufrágios. O vizinho do lado, nas relações domésticas, é sempre melhor do que o morador do outro bairro, a quem mal conhecemos.

*  *  *

Manuel de Oliveira Lima foi o primeiro ocupante da Cadeira que me concedestes em vosso cenáculo. Ao seu elogio acadêmico, brilhantemente traçado por seu digno sucessor, nada há que acrescentar.

Foi uma exemplar figura de erudito e de historiador, com quem de perto tratei no acolhedor solar de Parnamirim, quando os vagares da carreira diplomática lhe permitiam rever a terra natal. Dele recebi lições e estímulos, e de quanto o prezei basta consignar que a ele dediquei o meu primeiro livro. Criando esta Cadeira, em boa hora elegeu Oliveira Lima por padroeiro dela, para usar a linguagem tradicional de que se serviu, a Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Em seu formoso discurso de recepção, celebrando a vida do patrono, como um dos fundadores de nosso patrimônio intelectual, justificou sua escolha, que vós de antemão tínheis homologado.

Varnhagen, por disposição testamentária, quis que à sua memória se erigisse um monumento no próprio lugar em que nascera: homenagem maior foi esta que lhe prestastes vós, perpetuando seu nome neste luminoso recinto. Historiador do Brasil, “o mestre, o guia, o senhor”, ele o foi, e continua a ser, enquanto não tiver adimplemento a condição imposta há mais de meio século, cumprida a qual, quando o fosse, ele deveria descer de seu pedestal. O único de seus contemporâneos, que lhe poderia fazer sombra, que com ele competiria pela vastidão de seu saber, por sua profunda erudição, em assuntos brasileiros – João Francisco Lisboa, proclamou-o em uma das suas cartas, antes da polêmica lamentável que os separou para sempre, “o pai da nossa História”. Para o Timon maranhense, com a História Geral do Brasil “renovaram-se e purificaram-se as fontes, dilataram-se os horizontes”, mercê de “uma investigação imensa, laboriosa e conscienciosa”. Fazer mais ou melhor do que ele fizera, Lisboa reconhecia que era coisa que provavelmente se não havia de ver em seus dias: “porquanto, além do talento, consciência, dedicação e saber vasto e variado, para consegui-lo seria também necessário haver madrugado no intento e alcançar uma posição independente e azada para o pôr por obra durante a melhor e mais vigorosa quadra de uma existência igual e tranqüila”. E concluía: “Nem a todos os mortais se apraz o destino a sortear com esse raro conjunto de felizes circunstâncias.”

Por isso, em seu tempo, Varnhagen ficou só no campo dos estudos históricos, superior a todos. Pereira da Silva é o monografista superficial e infidedigno de um período relativamente moderno, porquanto os seus Quadros de História Colonial do Brasil são artigos de jornais sobre alguns fatos históricos, que não guardam entre si relação de continuidade; Abreu e Lima é o compilador arguto, mas afastado dos arquivos, que não vai além de Southey e seu plagiário Beauchamp; Melo Morais é o prestante colecionador de documentos, que publicou atabalhoadamente: nenhum deles havia de fazer frente a Varnhagen, que vasculhara os arquivos europeus e trouxera à história nacional uma contribuição formidável, tão valiosa que, passados tantos anos, em muito pouco tem sido sobrepujada; por isso mesmo, dos que vieram depois dele, nenhum lhe pretendeu disputar o primado das letras históricas, nem Capistrano de Abreu, nem Rio Branco, nem Eduardo Prado, nem Oliveira Lima, nem João Ribeiro, nem Rocha Pombo.

Confesso-vos, Senhores, que meu entusiasmo por Varnhagen vem de velha data, desde quando iniciei meus estudos sobre história do Brasil, ainda na província. Foi Alfredo de Carvalho, modelar erudito pernambucano, meu saudoso amigo da mocidade, quem me chamou a atenção para a História Geral. Li-a, e a impressão resultante foi que era diferente das outras histórias: mais fatos, mais pormenores, mais crítica, mais lúcida interpretação, mais ciência, mais história, em suma.

Nesse tempo, na província, como no Brasil em geral, fazia-se questão absoluta, para que um escrito, um livro pudesse ser lido, que tivesse estilo, e por estilo entendia-se a superlativação à maneira de Eça de Queirós, em que o substantivo tinha que vir sempre escorado por dois adjetivos e às vezes mais, o adjetivo por um ou dois advérbios em mente, o que, na opinião abalizada dos estilistas, servia para dar ou aumentar a intensidade, o colorido, o pitoresco da frase; havia ainda o emprego compulsório das comparações, destinadas a animar o escrito de imagens evocativas: período sem uma comparação, ao menos, estava demitido de período. A arte de escrever era então complicada e difícil. Mas, apesar de também participar eu da influência derramada pela Correspondência de Fradique Mendes e pela Cidade e as Serras, li, como vos disse, e reli por meu prazer, o grande livro de Varnhagen, que os meus companheiros do cenáculo da Livraria Silveira, no Recife, em princípios do século corrente, incluíam em seu Index librorum prohibitorum, por pesadão, massudo, sem estilo... Vem daí o entusiasmo, a admiração, de que vos falei, pela obra do historiador do Brasil, acrescida sempre, no curso dos tempos, à medida que melhor a conhecia através de sua avultada bibliografia.

Mais tarde, quando os bons fados, pela mão amiga desse velhinho boníssimo que foi Vieira Fazenda, no salão de leitura do Instituto Histórico, permitiram que me acercasse de Capistrano de Abreu, das primeiras indagações que me fez, foi a propósito de Varnhagen. Parece que me saí menos mal desse exame de suficiência, porque o mestre, esquivo como costumava ser para os desconhecidos, conversou largamente comigo e terminou por convidar-me a visitá-lo em seu tugúrio (assim chamava sua residência) que demorava então nas grimpas da Rua Dona Luiza. Lá fui eu muitas vezes, e nunca desci aquelas ladeiras sem trazer uma dúvida resolvida, uma noção mais clara, uma indicação mais precisa sobre matéria em que o consultasse. E como me dava às vezes a incumbência de fazer verificações de alguns fatos que estudava, assim me obrigava a estudar também. Em certa ocasião preocupava-o uma provisão ou alvará que nos começos do século seiscentista concedia aos jesuítas da Bahia determinados favores, acoimados por Varnhagen de exorbitantes e escandalosos:

– Você procura isto na coleção Justino, – disse-me.
Eu conhecia um tanto os repertórios da velha legislação portuguesa; desse, porém, não possuía a menor notícia. Tive vergonha de confessar-lhe a minha ignorância, e perdi talvez uma semana a buscar a decifração da charada até que, afinal e creio que por acaso, consegui acertar; a coleção Justino era, nada mais, nada menos, do que a Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa, por J. J. (José Justino) de Andrade e Silva. Quando lhe contei a minha atrapalhação, ele achou graça e explicou que a culpa não era propriamente sua, mas do Senador Cândido Mendes, que por amor à brevidade citava assim aquele repertório.

Depois o tugúrio passou para o porão da Travessa Honorina, em Botafogo, “sub Gigante de Pedra”, de seu endereço aos amigos.

Éramos vizinhos de bairro, e mais amiudada, quase diária, tornou-se então nossa convivência. Ultimamente, revíamos juntos a terceira edição da História Geral. Quando o primeiro volume ficou concluído, Capistrano morreu, na aziaga madrugada de 13 de agosto de 1927.

*  *  *

Naquele mesmo salão de leitura do benemérito Instituto Histórico, diante de latas e pastas de documentos, vi pela primeira vez e travei conhecimento com Alberto de Faria. A lembrança desse encontro guardo fielmente em minha memória. Causou-me estranheza, confesso, que alguém de sua situação social, de seus afazeres profissionais, freqüentasse salas de leitura, e principalmente se ocupasse em consultar papéis velhos, em copiá-los e anotá-los; mas tive logo, e por ele próprio, a explicação de sua presença ali e do objetivo de suas pesquisas. Andava a colher elementos para compor o belo livro, que escreveu sobre Irineu Evangelista de Sousa, primeiro Barão e Visconde de Mauá.

Alberto de Faria pertencera à esplêndida geração que fez a campanha abolicionista e a propaganda republicana. Logo que deixou a Faculdade de São Paulo, formado em Direito, foi exercer a profissão em Campos, sua cidade natal. Ali, naquele centro de grande atividade intelectual, como era então a antiga sede da capitania dos Assecas, com um foro movimentado e culto, Alberto de Faria alcançou rápida clientela, pelo talento, pelo zelo e pelo denodo com que defendia as causas que lhe eram entregues. Veio depois para o Rio de Janeiro, e foi como franco-atirador da imprensa, em longas e famosas polêmicas sobre diversas questões de interesse público, que o seu nome se tornou notável, firmando artigos em que além do saber do jurisperito, transpareciam as qualidades essenciais do escritor apurado e elegante, que se lê com prazer.

Quando se dedicou a estudar a vida de Mauá, esse grande homem era página virada na memória das gerações modernas: os documentos sobre ele eram escassos e esparsos; enorme havia de ser o esforço do pesquisador para reuni-los. Na devida escala, era a mesma situação em que se encontrou o biógrafo de Tito Lívio para escrever o livro de sua vida: uma data de Eusébio, alguns pormenores em Sêneca e Quintiliano, duas palavras lançadas ao acaso nas Décadas... Como o historiador de Roma, também Mauá não tinha história.

Para reconstruir-lhe a vida, Alberto de Faria levou anos de árduo labor e dela nos deu afinal o livro magnífico, a respeito do qual Capistrano de Abreu pôde confidenciar a seu amigo João Lúcio de Azevedo, em carta guardada na Biblioteca Nacional: “O livro sobre Mauá tem muitas novidades e é contribuição preciosa para a história do Segundo Reinado.”

O plano desse livro, para ser compreendido, como que requer o engenho do arquiteto presente ao monumento ainda em construção. Batidos os alicerces, alteadas as paredes fundamentais, três vigas mestras irão garantir a majestade e a segurança do edifício: D. Pedro II, Caxias e Mauá – a ciência política, a ciência militar, a ciência econômica, em um momento histórico da unidade nacional.
São três símbolos essas três vidas igualadas na provação de um nobre ideal ao serviço e ao amor do Brasil, e que a própria morte nivelou em ocasos tocados de melancolia. Vede D. Pedro II, expirando no exílio, decaído e magnânimo; vede Caxias, na humildade cristã de seu retiro e na desilusão de suas glórias militares, pedindo lhe trocassem, na hora da morte, a farda de duque ou de guerreiro pelas vestes do cidadão; vede Mauá, honrado, pobre e esquecido, transmudando o dia fatal da “queda de um herói” no dia da compassiva “morte de um monge”.

A imortalidade obriga-se a esses tributos, que a humanidade recolhe como sabedoria, lição ou conselho.
A biografia concebida no gabinete de estudo não guardaria, entretanto, em sua progressiva realização, as linhas harmoniosas de um primitivo plano arquitetural, que as primeiras páginas denunciam. Conter o surto de fogoso entusiasmo ante a vida dinâmica, múltipla e sugestiva do biografado, à proporção que se alterna o pesquisar com o redigir, não seria fácil tarefa a um temperamento mais de artista que de historiador, mais de jornalista que de biógrafo, como o de Alberto de Faria.

Buscando nos arquivos a massa de documentos desconhecidos de tantos brasileiros, talvez em princípio quisesse o autor criar sua “obra longe do bulício dos homens” para compor em traços mais precisos e puros a imagem que, a cada instante, a viveza das tintas de sua paleta anima e a luz de sua inteligência exalta; mas o vagar, a paciência, que o desenho e a execução das linhas clássicas requerem, não serão de seu feitio de homem e de escritor, mormente ante a fatalidade de ser retardada a grande festa da gratidão brasileira, de que se fez epígono.

O livro começará então, atentos o labor onímodo e a cultura revelada de quem o molda, como que a fluir entre o tumulto da opinião, ávida de conhecê-lo, e o silêncio do gabinete de estudo, valorizado com o material recolhido na peregrinação por bibliotecas e arquivos, em fontes particulares ou confidenciais, em manancial proveitoso da história do Segundo Reinado ainda por escrever. E assim, fácil será de notar-se quanto o espírito ágil do autor, – de vocação tão acentuada para a advocacia, para as questões financeiras, para a polêmica jornalística – o moveria a certa ausência de método nos assuntos que, ao correr da pena, vai tratando, ou na ordenação de detalhes primordiais, que os completam. Entretanto, o que os capítulos haveriam de perder em metodização de moldes clássicos, ganhariam em espontaneidade, vivacidade e imprevisto encantamento, ao tomar o livro a forma desses modernos estudos das grandes vidas, tão em voga na literatura contemporânea.

À maneira de Joaquim Nabuco, mas não dispondo dos protocolos traçados pela mão paterna, que o filho ilustre animou com seu estilo privilegiado, – Alberto de Faria conduzirá o leitor através da peregrinação comovida ao passado, sem esquecer o presente; e qual predestinado apóstolo que a meio da jornada da fé cria legiões, prosseguirá com elas, guiando-as, para lançar os alicerces do templo consagrado ao seu padroeiro, sobre a suave colina de onde se admira o passado glorioso da nacionalidade. E, como ao deslocar dessa multidão, que dia a dia se avoluma, não é só o culto que a leva em arrebatado entusiasmo, o apóstolo não se esquecerá de, a cada instante, volver-se aos discípulos que o seguem, ou aos estudiosos que o escutam, para louvar-lhes o fervor com que caminham, ou a atenção com que param, para profligar com veemência os apóstatas que desertaram, e sutilmente falar aos indiferentes ou invejosos avessos ao entusiasmo e à gratidão. Se, vestindo a roupeta humilde e tendo a pobreza por brasão dos mais altos, o missionário, ao propagar sua doutrina nas selvas, enobrece sua vida e santifica-a tantas vezes na própria morte, alguma beleza romântica dessa missão terá quem, no século que passa e embora trajado ao figurino do tempo, levar com justiça sua palavra edificante ao seio das academias, institutos, salões da sociedade culta e oficinas de trabalho, para erguer do pessimismo em que se afundam os que vão descrendo da nossa raça e da memória dos nossos varões ilustres.

*  *  *

A Irineu Evangelista de Sousa filia Alberto de Faria na doutrina saint-simoniana, corrente um tanto mística, um tanto industrial que, após a morte de Saint-Simon, buscaria realizar tudo quanto o mestre pregava, e constituía o objeto das preocupações do século, segundo Faguet, ou que, na definição de G. Weill, pretendia “passar o poder espiritual dos padres para os mais notáveis entre os industriais, os sábios e os artistas”.

Em essência, nada mais era do que uma corrente subversiva, que visava a civilização material, simbolizada no século da máquina em face dos séculos de Deus.

A doutrina de Saint-Simon e de sua seita, devendo estar para aquele tempo como Marx e o comunismo para os dias de hoje, – imaginai a influência que exerceria sobre a inteligência vivaz e curiosa desse moço rio-grandense do Sul, que aos onze anos de idade era caixeiro de uma casa comercial na capital do Império, a labutar das “sete da manhã às dez da noite”, para seis anos depois passar a empregado de um estabelecimento progressista do alto-comércio, chefiado por um súdito inglês, o senhor Ricardo Carruthers. Imaginai como esse espírito jovem ainda, familiarizado tão cedo com a rudeza da vida, iria receber uma doutrina como essa, criada nos domínios da dúvida, mas com lampejos de novas claridades. Ricardo Carruthers, “um dos melhores espíritos da humanidade, que se distinguia pela velha escola da moralidade positiva”, – segundo dizia mais tarde o próprio Mauá; Ricardo Carruthers, “um santo”, como lhe chamaria agradecido na presença da Sra. Viscondessa de Cavalcanti, – talvez nos dias que correm, consideradas as decisões ultraliberais que adotava, tivesse sua ficha com reservas na polícia de costumes... Entretanto, esse súdito britânico que a Mauá lecionou contabilidade e gramática inglesa, deu livros ingleses a ler; que o moldou um perfeito negociante inglês com absoluto senso de responsabilidade; que deu asas à ave implume que aspirava a largo vôo; que ensinou a Mauá, como disse Alberto de Faria, – “a lisura da palavra, o culto do crédito, e essa nobreza de processos com que, nos três últimos quartos do século XIX, o comércio fez das Ilhas Britânicas o maior dos Impérios” – esse belo exemplar de criatura humana é hoje credor do nosso reconhecimento, pela visão que teve em passar a um brasileiro de gênio, que contava apenas vinte anos de idade, a chefia da casa comercial e o zelo do próprio nome.

O Parlamento do Segundo Reinado foi, salvo para os valores reais da inteligência brasileira, em grande parte cópia de cenas, leis, processos decorativos e oratórios do Parlamento inglês; não assim o nosso comércio atrasado de antanho, que surpreso via surgir na figura britânica de Irineu Evangelista de Sousa um renovador da mentalidade mercantil e industrial em nosso país.

Vitorioso nesse campo de trabalho, em breve voltava Mauá sua visão privilegiada para a resolução dos grandes problemas econômicos, urbanos, nacionais ou internacionais, – que, esperavam para solucioná-los uma larga política liberal e progressista do Império.

Seu primeiro cuidado será para esta cidade com prerrogativas de Corte, mas que desmentia tão pomposo título, na falta de higiene de suas mal calçadas ruas, vielas ou praças, iluminadas à noite a azeite de peixe, de dia batidas de sol ardente, sem defesa de arborização urbana, por onde transitavam seges, cadeiras de arruar, mercadores cavalgando bestas, fidalgos ostentando árdegos ginetes, padres e frades, procissões e congadas, tropas e boiadas vindas do interior, escravos seminus sob o chicote do capataz insolente, na faina dura e braçal.

Diariamente acordada pelo bater de sinos das igrejas e adormecida ao intimativo toque do Aragão, que regulou sua moralidade noturna de provinciana por quase um século, a velha cidade colonial, quando não a favorecia o luar, destacando-lhe magnificamente as soberbas montanhas e a esplêndida baía, era soturna, deserta, apavorante.

No vice-reinado de Luís de Vasconcelos, entre 1779 e 1790, somente as luzes dos candeeiros acesos nos nichos pela piedade dos fiéis, em número de setenta e três lampadários – “22 na freguesia da Sé, 27 na da Candelária, 12 na de São José, e 12 na de Santa Rita” – espancavam timidamente a escuridão de pequenos trechos ou esquinas de ruas e becos. O caminhante noturno, para precaver-se das trevas e dos salteadores, se era homem de posses, haveria de fazer-se acompanhar de capangas e mandar um negro escravo à sua frente com o archote a iluminar o caminho. Já no vice-reinado do Conde de Resende se aponta como grande serviço seu ao Rio de Janeiro “a introdução dos lampiões de azeite, subsidiados pelos cofres públicos”. Mas, ainda em 1840, cem lampiões colocados entre si a razoável distância, cuidados por negros cativos, eram quantos balizavam a iluminação da cidade. Tempos depois bastaram dois homens, Eusébio de Queirós, na pasta da Justiça, e Mauá, no seu benemérito ministério de bem servir ao Brasil, para dar à terra carioca um espetáculo considerado maravilhoso pela gente de seu tempo: a iluminação a gás.

Resolvia o problema esse processo de iluminação, ainda em 1834 combatido por um desembargador, talvez ilustre, que ao informar sobre a provisão de um privilégio nesse sentido, declarava “que o pretendente era um impostor, porque não podia haver luz sem torcida...”.

Completaria, em parte, o bonde, ou a Companhia Fluminense de Transportes Urbanos e a Jardim Botânico, o que a luz do gás iniciara; viria a seguir a engenharia sanitária, abrindo o Canal do Mangue; o novo Matadouro, abastecendo de carne verde a cidade; o Estabelecimento da Ponta da Areia, meritório pelas obras iniciais de siderurgia e de construção naval, fabricando os encanamentos para o abastecimento de água à Corte: – melhoramentos todos esses criados pela iniciativa do grande cidadão, a quem a nossa moderna capital ergueu uma estátua, por lembrança de Paulo de Frontin e do acadêmico Lauro Müller, que nesta Casa sucedeu ao Barão do Rio Branco.

Dando solução aos principais problemas urbanos, não se deixando abater ante a expressão de colosso geográfico que é o Brasil, Mauá ainda hoje pode desmentir os negadores da nossa raça e da nossa inteligência, com o haver estendido os primeiros trilhos sobre a terra brasileira, com haver feito silvar a primeira locomotiva no continente sul-americano. Trinta e cinco dias após a iluminação a gás da capital do Império, do fundo da baía, do porto depois chamado Mauá, a locomotiva Baronesa, que ainda ostenta seus oito decênios de vida com a graça e ligeireza de sua mocidade, “ganhava em vinte e três minutos os primeiros quinze quilômetros de trilhos do Brasil”. Galgar a Serra dos Órgãos, que se lhe alteava indomável, e chegar a Petrópolis, seria ainda outra vitória de Mauá, vinte e oito anos depois, apesar da guerra de concorrência aberta pela estrada de rodagem União e Indústria, tão de justiça ligada ao nome laureado de Mariano Procópio.

Cumprira Mauá a palavra dada ao Brasil, na presença do Imperador, a 25 de março de 1854: “Não podemos parar.” E assim, não só nesse setor geográfico, o pendão auriverde será levado pela primeira vez na frente das locomotivas, como também em outros setores havemos de lobrigá-lo, vencendo vales e serras, túneis e pontes, contornando encostas e beirando rios. O bandeirante de aço, que rasga o sertão esquecido, com sua pluma branca de fumaça, badalando o sino à chegada e à partida, será sempre o mensageiro bem-vindo, a voz sonora da esperança, que o sertanejo acolheu talvez rezando, como um milagre dos santos. E esse milagre – a vitória do caminho de ferro – em breve recambiará riquezas das cidades, vilas, sertões e portos de mar, seja pela Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco, a segunda inaugurada no Brasil; seja em 1858, pela Estrada de Ferro D. Pedro II, criando a artéria central do nosso progresso; seja, dois anos depois, pela ligação da costa da Bahia com o grande rio brasileiro, e, em 1867, pela Santos–Jundiaí, que também será portadora do sentimento do litoral ao planalto de Piratininga, para rememorar ao paulista não só o primitivo caminho do Padre José, como ainda o mar, que ele esquecia ou esqueceu.

Mas, como todo progresso para ser realidade precisa do seu desembargador de 1834, esse também o teve na pessoa de um estadista notável, que, por previdência excessiva, manifestara o seu “medo de que no segundo dia de cada mês os trens parassem por estarem esgotadas as cargas do interior”. Esse conceito ficou olvidado nos nossos livros de história, mas o que convém que o tempo não apague na memória dos homens é que a todas as realizações de viação férrea nacional, ou a quase todas dessa época, direta ou indiretamente, está ligado o nome de Mauá, ou o seu prestígio financeiro, verdadeiramente extraordinário. E se, para as estradas de ferro das Alagoas, do Rio Grande, da Paraíba e de alguma outra província não foi solicitado o seu concurso, não será demais relembrar que até às nações do Pacífico ele pensou em levar os trilhos brasileiros; e que a Minas e Rio, anteriormente Estrada de Ferro Rio Verde, cujo itinerário recorda um dos caminhos mais batidos por bandeirantes que perlustraram o sertão das Minas, marcará “seu último serviço à viação férrea do Brasil”.

Vencida a terra sertaneja, ligada parte da zona rural do trabalho agrícola aos portos de mar, era preciso também dominar os rios, e desses o maior do mundo, o mediterrâneo portentoso da América Meridional, para o qual os olhos cúpidos se voltavam e se voltam fascinados pelas maravilhas que a natureza aí prodigamente revela ou sabiamente entesoura.

O nosso patriotismo, segregando o Amazonas às nações conquistadoras pelas armas ou pelos capitais, não se melindraria, então, com o fato de Tavares Bastos e Gonçalves Dias aplaudirem o livro do Tenente Maury contra a clausura do rio-mar, mormente pelo fruto que se colhia, – a resolução do grande problema por um estadista brasileiro e pelo monarca mais liberal e democrata do universo. E se o título de estadista é patrimônio honroso de um Visconde de Uruguai, que em 1853 traçou a política avançada de abrir o Amazonas ao intercâmbio mundial, não menor patrimônio o seria de Mauá, que, tomando sobre si a aventura da empresa, faria, em breve, sulcar suas águas pelo navio de vapor, para despertar do secular isolamento os caboclos das barracas e dos paranamirins, o índio das igarités e das ubás, ao mesmo tempo em que na sua esteira indicaria o caminho aos aventureiros dos gaiolas e aos regatões das montarias.

O feito de Orelana, descendo o rio empolgado pela miragem das Amazonas, e o de Pedro Teixeira, subindo-o para a posse de suas terras e águas, não serão maiores pelas conseqüências que trouxeram ao comércio, à ciência e principalmente à unidade brasileira, do que o primeiro navio de vapor que Mauá armou para navegá-lo, das colônias de açorianos e algarvios que fundou às suas margens, do espírito nacional que semeou por essas regiões longínquas e olvidadas.

Depois de a locomotiva acordar e vencer o deserto das terras, o navio de vapor acordar e vencer o deserto das águas, ia o cabo submarino completar em 1874 a obra gigantesca da benemerência de Mauá, estabelecendo pela primeira vez a comunicação constante e rápida deste continente sul-americano com o mundo.

Da parte de finanças que se relaciona com o sistema bancário que Mauá criou, animou e difundiu, e foi qual sementeira benéfica para a vida econômica, agrícola e industrial não só do país, mas ainda do Rio da Prata, – Alberto de Faria nos dá esmerado estudo de especialista, em largos capítulos de seu livro. Sobre a atuação de Mauá nas finanças platinas, da sabedoria de seus conselhos de homem experimentado, com profundo conhecimento do povo amigo da Banda Oriental, fala-nos ainda em tantos outros, em que surgem aspectos políticos inéditos, providências e soluções desconhecidas, que estão a pedir a revisão da história brasileira do Rio da Prata.

Nos seguintes capítulos oferece Alberto de Faria por cenário o Parlamento do Segundo Reinado, quando ali tinha Mauá a investidura de deputado pelo Rio Grande do Sul, e na velha Câmara ainda soavam, feriam ou reboavam as vozes dos oradores célebres da época. Aspectos parlamentares interessantes são pelo autor revividos nesse ambiente, tendo por figura central o biografado, em lances memoráveis, como sejam o atrito político com o conselheiro Nabuco de Araújo, a guerra constante que lhe movia Zacarias de Góis, o repto que Silveira Martins lhe lançara; sua renúncia, por duas vezes, do mandato legislativo e as moções da Câmara em apelo para que permanecesse em sua cadeira, a fim de “vigiar pelos grandes interesses nacionais”. Por fim, como parte mais empolgante de um romance histórico vivido por uma grande vida a encerrar-se na noite do esquecimento, da pobreza e da dor, Alberto de Faria traça as que deveriam ser as últimas páginas de seu livro, nas quais o advogado vem à barra do tribunal na defesa do constituinte ilustre, animando seu discurso com a comovida eloqüência que o momento augusto requer.

Os sonhos daquele a quem o autor filiara à corrente saint-simoniana, tinham agora refúgio na provação, no estoicismo, na bondade cristã, com que passava à vista da turba pelas estações do sofrimento, carregando a pesada cruz do descrédito com que a adversidade o flagelava, – a moratória e por último a falência, assinalada pelo Visconde do Rio Branco como “um grande infortúnio nacional”.

A doença e a senectude quebrantavam as últimas forças do lutador para encerrar a vida exemplar, que Alberto de Faria salvou do esquecimento nas páginas memoráveis de seu livro.

*  *  *

Disse-vos da obra principal de Alberto de Faria, que lhe abriu as largas portas desta Casa, com uma bela maioria de sufrágios, em pleito disputado e memorável; dir-vos-ei a seguir, em breves palavras, de sua atuação de acadêmico durante o curto período de tempo em que o tivestes entre vós.

Desejo recordar-vos, dessa atuação, sua conferência lida neste recinto, em 31 de julho de 1930, sobre o Barão do Rio Branco, para vos significar convictamente que não conheço em nossa história política dos últimos tempos depoimento mais completo e mais interessante prestado por quem, vivendo ao lado dos acontecimentos, pôde observá-los com perfeita visão e absoluta fidelidade.

Rio Branco alcançava o terceiro quatriênio de sua gestão inolvidável na pasta das Relações Exteriores. O país atravessava na sazão a crise das deposições dos governadores estaduais maquinadas ou consentidas pelo poder central. O caso da Bahia, o inominável bombardeamento de uma cidade aberta, preocupava ao extremo o Barão, pela responsabilidade que tinha o governo de que fazia parte, e mais ainda pela selvageria do golpe que feria tão fundamente os nossos foros de povo civilizado. O Barão era o Brasil; sofria pelo Brasil.

Alberto de Faria, privando com ele, dá-nos o testemunho de suas torturas naquele momento histórico. Em Petrópolis, onde ambos se encontravam, teve o vosso companheiro ocasião de receber as confidências do grande chanceler e de influir em uma sua decisão suprema.

O caso baiano chegaria ao Tribunal Superior por meio de habeas corpus, que fora concedido para repor o governador espoliado, medida que o governo não faria cumprir, como tudo estava a indicar. Naquele dia, aguardando na estação a chegada do trem das 6 horas, à busca de notícias do Rio, os dois se avistaram, e Rio Branco foi logo indagando das novidades:

– É o que aqui me traz, Sr. Barão; receio que elas sejam de alguma gravidade.
O chanceler mostrou-se surpreso, porque nada lhe constava: o outro esclareceu um pouco o motivo de suas apreensões:

– É possível que no Supremo Tribunal se tenha preparado hoje um foco de incêndio.
Passageiro do trem esperado, Leopoldo de Bulhões, interrogado quanto às ocorrências, respondeu com otimismo, naturalmente para poupar desgostos ao Barão, – que tudo ia na santa paz do Senhor; apenas, no Supremo voltara o caso da Bahia, com uns telegramas, em vista dos quais o Ministro Murtinho declarara que o Tribunal não podia confiar na palavra do governo; discutia-se à última hora, mas nada mais grave que nas sessões anteriores.

Apesar disso Rio Branco não disfarçava a sua preocupação e queria inteirar-se de mais alguma coisa de que desconfiava fosse Alberto de Faria sabedor. Este, afinal, não se conteve e disse:
– Penso que a situação é de causar sustos. A atmosfera do Catete é irrespirável de paixão e de irresponsabilidade. Se V. Ex.a permite, dir-lhe-ei que é tempo de fazer valer sua força, evitando atentados que estão planejados em desprestígio ao Poder Judiciário.

Discutiram. O barão fazia ver que era ministro do Exterior e não podia entrar por seara alheia; a pasta política tinha ministro, a da Guerra também, e estávamos no regime presidencial. Alberto de Faria argumentava que ele não era ministro como os outros, porque era uma espécie de presidente de conselho, a força moral de que vivia o governo na opinião pública. Rio Branco explicava a situação e fazia revelações sobre o que se passava no Catete; queixava-se da doença e do abatimento em que estava, que nem podia vir à cidade. Ainda esperaram o trem de 7:30 para colher notícias, mas estas não foram melhores do que as primeiras.

No outro dia Gastão da Cunha procurava Alberto de Faria para dizer-lhe:

– Você fez uma verdadeira revolução ontem. Acaba de dizer-me o barão que passou a noite em claro, redigindo uma carta que a esta hora (seria meio-dia) desce em trem especial por mão do Enéas; é um pedido de demissão.

Sabe-se o que se seguiu. O barão ainda ficou no governo até morrer, três semanas depois. Quando se escrever a história desse período, o depoimento de Alberto de Faria terá de ser ouvido, porque exprime a verdade que engrandece a figura de Rio Branco, desde que a verdade oficial por ele próprio rubricada... “não é a verdade”.

De mais dois episódios relacionados com o Barão do Rio Branco, Graça Aranha e Gastão da Cunha, vos falou Alberto de Faria; não os resumirei, como fiz com o primeiro, que era o principal, porque vós os conheceis, porquanto de alguma sorte eles respeitam à vida da Academia.

Ao fazer-vos as revelações que ouvistes então, o memorista lúcido e probo vos prometeu que, se o tempo e a saúde lhe permitissem, havia de dá-las a público, conjuntamente com outras. Desgraçadamente, o mal que o minava, abreviando-lhe a vida, não consentiu a realização dessa promessa, privando-nos do grande livro dessas Reminiscências, escritas à plena luz da verdade, que é a força da consciência e a regra da história.

*  *  *

A Alberto de Faria sucedeu nesta Cadeira José Francisco da Rocha Pombo.
À vossa escolha presidiu um critério superior de justiça; foi ela como que o prêmio bem merecido a esse preclaro homem de letras, operoso como poucos, tão mal recompensado em seus esforços. Tendes, realmente, em Rocha Pombo o exemplo de um indefesso trabalhador, em atividade intelectual constante, que foi toda a sua existência.

Sua contribuição para as letras nacionais, por isso mesmo, foi das maiores que se conhecem, versou diferentes gêneros, para avolumar-se extraordinariamente na historiografia, sua feição mais característica.

Vem de longe, dos fundos de sua província natal, o belo Paraná, sua iniciação literária. Aos vinte anos, em 1877, escreveu o seu primeiro estudo sobre instrução pública, divulgado na revista fluminense A Escola, de José Serafim Alves, que mereceu transcrição honrosa na Revista del Plata, de Buenos Aires. Por esse tempo militando na imprensa paranaense, dedicava-se à propaganda republicana, no semanário O Povo, de Morretes, dez anos antes de ser proclamada a República. Depois, em Curitiba, escreveu romances, A Honra do Barão e Dadá, a Boa Filha, publicados respectivamente em 1881 e 1882, e Petrucelo, em 1888; seguiram-se ainda estudos sobre educação, A Supremacia do Ideal e Religião do Belo, aquele em 1882, este em 1883; e mais Guaíra, poemeto, 1886; Nova Crença, 1887; Visões, 1888; Marieta, 1896; História da América, 1889; O Paraná no Cinqüentenário e Grande Problema, em 1900; No Hospício, romance de questão social; Dicionário de Sinônimos da Língua Portuguesa, em 1914; Nossa Pátria, livro para crianças, que tem mais de sessenta edições; Notas de Viagem ao Norte do Brasil, 1918; a série de histórias estaduais, que compreende os estados de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Norte, e ainda outros trabalhos menores, que me permitireis omitir nesta relação.

Desde 1897, Rocha Pombo deixara a terra natal. Conta um biógrafo que sua mudança para o Rio de Janeiro fora um gesto de desespero e de coragem. Estava reduzido aos magros proventos de um escritório de despachos no pequeno porto de Paranaguá, atividade que divergia absolutamente das aspirações de sua inteligência, e da qual mal tirava o necessário para viver. Reuniu, então, quanto foi suficiente para a viagem e abalou de Paranaguá, com os seus, para tentar a vida aqui, onde esperava encontrar ambiente mais propício ao desenvolvimento de suas aptidões para as letras e para o ensino.
Não vos direi, Senhores, de sua tragédia, que foi também a minha e a de tantos outros brasileiros, que tangidos pela necessidade de ganhar a vida são forçados a abandonar os estados por este grande centro, que é o Rio de Janeiro.

Aqui Rocha Pombo lutou como um bravo, com a fortaleza de ânimo, com o estoicismo de que seus íntimos dão testemunho; suas horas de aula multiplicavam-se, sua colaboração nos jornais era das mais assíduas, seus livros se acumulavam com sucesso: tornou-se conhecido, foi autor citadíssimo. Entretanto, à justa fama adquirida, a verdade desoladora é que não correspondeu o necessário proveito. Viveu sempre pobre, sem poder passar do subúrbio para a cidade.

Chegado ao Rio em plena maturidade de seu espírito, daqui a melhor parte da sua produção literária, os trabalhos históricos já referidos, e sobretudo a sua grande História do Brasil, em cuja composição consumiu doze anos, de abril de 1905 a junho de 1917, quando saiu o décimo e último volume.
É essa obra, no gênero, a mais vasta, a mais considerável da nossa literatura, pela superfície imensa que cobriu, das origens do Brasil aos dias presentes.

Mais de quatro séculos de História, na complexidade imensa dos acontecimentos humanos, constituem empresa digna de admiração, pelo esforço e pelo apresto que exige; tentá-la e realizá-la com acerto e perfeição, se não é das coisas impossíveis, dado o “raro conjunto de felizes circunstâncias”, que João Francisco Lisboa insinuou em relação a Varnhagen, haveis de concordar que será pelo menos das mais difíceis.

Rocha Pombo fez o que foi possível fazer.
O conceito de Buckle, sobre os materiais acumulados para a formação da História, mais se aplica às velhas civilizações ocidentais que aos países da idade moderna, nascidos na época dos grandes descobrimentos, o Brasil inclusive. Outros são os materiais de que nos havemos de utilizar para escrever a nossa história, depositados, como sabeis, nos arquivos dos descobridores ou colonizadores, portugueses ou espanhóis, ou nos daqueles que em nossa vida se intrometeram, franceses, flamengos e ingleses. Esses depósitos têm sido explorados por pesquisadores da ordem de Varnhagen, João Francisco Lisboa, Antônio Gonçalves Dias, Joaquim Caetano da Silva, José Higino Duarte Pereira, Barão do Rio Branco, Oliveira Lima, Domício da Gama e outros; e os resultados dessas pesquisas opulentam grandemente o nosso acervo documental, muito embora não dispensem a consulta às fontes originárias.

Rocha Pombo, por impossibilidade de recorrer aos arquivos da Europa, e por escassez de tempo confessada para freqüentar os arquivos nacionais, ficou reduzido na elaboração de sua História do Brasil à contingência de aproveitar o que outros prepararam, conforme honestamente declarou.
Há um tanto ou quanto de verdadeiro no que disse um escritor inglês, citado pelo Conde de Ficalho, que o tempo da história passou, e estamos em tempo de documentos, cuja leitura é mil vezes mais interessante e mais instrutiva que a de todas as histórias. Descontado algum exagero dessa afirmação, o certo é que a consulta às fontes conduziria por força o vosso companheiro à apuração de fatos que aparecem deturpados nos autores em quem fiou; uns tantos pormenores teriam de ser avivados em seu debuxo primitivo, um panorama mais exato do passado brasileiro desdobrar-se-ia aos nossos olhos. Poder-se-ia ainda criticar seu livro pela ausência de síntese, de que resultou sua grande extensão; haveria que dizer de seu método no expor dos acontecimentos, com a adição de notas que, em geral, constituem reiteração mais larga dos mesmos acontecimentos narrados por outros; exigir-se-ia, por último, menos dissertação e mais seleção.

Entretanto não há como desconhecer o extraordinário mérito da obra de Rocha Pombo, sua utilidade provada, os serviços prestados aos estudiosos, que a estimam sobre todas as congêneres. Se conferirdes a estatística das bibliotecas, verificareis que sua História do Brasil é, nessa classe, o livro mais consultado, o mais lido de todos, o que significa popularidade e vale pela mais legítima das consagrações.

Robert Southey, o historiador poeta, ao encerrar sua História, manifestava a absoluta confiança que tinha na aprovação dos homens para quem a escrevia, e da posteridade, a que a transmitia como um legado opimo. – “Daqui a séculos – dizia mais tarde a seu amigo Townshend – meu livro se encontrará entre aqueles que não estão destinados a perecer, e será para os brasileiros o que a obra de Heródoto é para os europeus.”

Jamais ouviríeis a Rocha Pombo tal expressão de orgulho, que a serenidade de sua inteligência não admitiria, que não conceberia a modéstia de seu caráter; ouvireis, todavia, o juízo dos contemporâneos, em que há de decalcar-se o juízo dos vindouros, e este não será diferente daquele com que Southey contava para coroar sua obra.