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Discurso de posse

Minhas senhoras,
meus senhores,
meus amigos,
senhores acadêmicos,
   
ao longo de 60 anos de convívio com Austregésilo de Athayde, ao analisarmos os problemas e inquietações que vinham desaguar na redação em que cada um exercia o ofício

que nos identificava, jamais nos separamos, após um franco debate de ideias, sem um acordo de julgamento.
 
A única vez em que o velho e querido companheiro não admitiu contestação foi quando, ao receber a carta em que alinhei os motivos que me induziam a resignar à generosa indicação do meu nome para a Academia, decidiu não apreciá-la.
 
Surpreso, mas empenhado em preservar uma amizade e uma admiração de toda a vida, assumi o desafio de superar os meus méritos para vir ocupar uma Cadeira ao vosso lado.

A sua ausência, neste momento, traz-me a convicção de que Austregésilo pressentiu que era aquele o nosso último encontro e portanto não dispunha de tempo para discutir o que se lhe afigurava menos uma homenagem à minha pessoa, do que a convocação para o cumprimento de um dever.

Na verdade, como Presidente desta Casa, Austregésilo imprimiu-lhe uma orientação pela qual, ampliando e aperfeiçoando o cultivo das Letras e das mais diversas atividades artísticas, insistiu em conciliá-las com a sua maior difusão por todos os segmentos da sociedade brasileira.

O País não lhe parecia necessitado apenas de uma distribuição mais justa da renda econômica, como também de uma participação mais abrangente na formação do nosso patrimônio cultural.

Nesse sentido, quando se referia à importância da Cultura de Massa propiciada pela expansão da Mídia Eletrônica, estimulava as minhas atividades de homem de comunicação, reconhecendo-me o cuidado primordial de procurar servir à massa, sem desservir à Cultura. Por essa razão, considerou imprescindível mobilizar os meus recursos pessoais e institucionais para dar continuidade a essa tarefa no plano acadêmico.

Permiti-me assim que as minhas primeiras palavras nesta tribuna, repassadas de saudade, sejam voltadas para a sua memória, respondendo à sua chamada: “Presente, companheiro”.
   
Senhores acadêmicos,
   
o mestre que iniciou a minha formação de jornalista foi Irineu Marinho, meu pai. Por seu intermédio, desde a adolescência, tomei conhecimento das questões que agitavam o ambiente de trabalho não só na Gazeta de Notícias, da qual foi secretário, mas na atmosfera comum dos grandes órgãos da época.

Guardo a lembrança de que entre as matérias de maior interesse dos leitores, além das questões políticas, ressaltavam-se os debates literários, as atividades dos escritores, não apenas no lançamento de suas obras, como nos seus encontros e conferências, mantendo-se assim uma tradição de apreço aos valores espirituais que remontava aos últimos anos do século passado.
 
Vale recordar que a geração boêmia de grandes poetas e romancistas da década inicial deste século tinha suas crônicas ou folhetins estampados na primeira página de nossos jornais, caracterizando o Rio de Janeiro como a capital cultural do País.
 
E no momento em que, incentivados pelas propostas pioneiras de Medeiros e Albuquerque e Lúcio de Mendonça, empolgaram-se pela ideia da fundação desta Casa, concretizada por força da autoridade de Machado de Assis, a sua primeira reunião preparatória ocorreu na redação da Revista Brasileira, então dirigida por José Veríssimo, instaurando-se afinal solenemente naquelas mesmas salas em 1897.
 
Não há exagero em se dizer que a história da Academia pode ser pesquisada nos registros dados pela Imprensa aos seus eventos marcantes. Assim aconteceu quando, em 1906, o ministro Seabra encaminhou projeto de lei cedendo instalações no Silogeu para sede da Instituição.
 
Naquele mesmo ano, a controvérsia sobre a eleição de Mário de Alencar refletiu-se em acirrada polêmica envolvendo a A Notícia e O País. Também os incidentes verificados na posse de Euclides da Cunha, atingindo o Presidente Afonso Pena, foram debatidos em todos os jornais.

As colaborações de Bilac, Laet, Coelho Neto e outros eminentes acadêmicos elevavam o estilo redacional de vários órgãos, destacando-se no Correio da Manhã uma coluna de crítica cuja autoridade se manteve de José Veríssimo a Álvaro Lins. Dessa maneira, os encontros semanais na Academia prolongavam-se na arena das colunas diárias. Essa integração da Literatura com o Jornalismo trazia à memória a previsão de Afrânio Peixoto de que o jornal tendia a substituir o livro.

Não é de admirar que quando Irineu Marinho fundou A Noite, assinalando uma nova época na Imprensa Brasileira, tenha desde logo aberto suas colunas a escritores da altura de Felinto de Almeida.

E em julho de 1925, com o surgimento de O Globo, meu pai reiterou a sua vívida consciência de que, na alma nacional, interligam-se os objetivos concretos de natureza política e econômica, com os anseios espirituais de ordem artística, cívica e religiosa. Com isso, assegurou ao novo órgão – embora abalado nos seus primeiros dias pela perda de seu fundador – uma identificação com a opinião pública que, acredito, constitui o segredo de sua atuante presença em todas as fases da História Republicana em mais de seis décadas.
 
Nos anos 1920, acompanhamos os movimentos políticos e militares que exigiam uma prática mais autêntica da democracia que iriam implantar-se com a Revolução de 1930. Simultaneamente, preocupamo-nos em registrar que aquele anseio de renovação estendia-se ao plano cultural, fermentando a partir da exposição de Anita Malfatti e chegando afinal ao desafio da Semana de Arte Moderna.
 
Não escapou porém à nossa observação que o processo só atingiu a sua culminância na sessão da Academia em que se enfrentaram Graça Aranha e Coelho Neto.
 
Essa circunstância deixou bem claro que esta Casa tem sido o centro fundamental de ressonância da evolução do País no plano cultural. Machado de Assis já lhe atribuía, nos primeiros dias da República, o papel de resguardar a unidade nacional no âmbito literário, em confronto com o caráter divisório da federação política.

Na própria seleção dos patronos e dos membros fundadores, refletiu-se esse senso de responsabilidade, inspirado na convicção de que o artista só atinge o ideal de universalidade, quando se alicerça no compromisso com a sua nacionalidade.

É o que constato ao me voltar para as grandes figuras que me antecederam na Cadeira que hoje passo a ocupar.
   
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Varnhagen, historiador e diplomata, soube ir às fontes para documentar o nosso passado. Agiu como os repórteres na busca dos fatos, antes de se atrever a interpretá-los. Graças ao seu espírito de pesquisa, muitas informações refluíram dos arquivos, as quais, enriquecidas pelas notas eruditas de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, redundaram nos cinco tomos fundamentais da História Geral do Brasil, obra maior do meu patrono nesta Casa.
   
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É oportuno acentuar aqui o ponto de encontro entre o jornalista que capta a verdade do presente e o historiador que procura captá-la no passado. A verdade factual é, assim, para ambos, a substância mesma do testemunho escrito. Uns e outros estão a serviço da mesma causa. E isso explica por que Oliveira Lima, Fundador da Cadeira em que me emposso, conciliou as duas vocações, sem deixar de ser diplomata a seu modo, sem transigência e concessões.
   
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O sucessor de Oliveira Lima, Alberto de Faria, veio de jornal, como colaborador do Jornal do Commercio, para abrigar-se sob as glórias da Academia, graças ao livro magistral em que soube trazer à luz o caminho de lutas de Mauá em favor do progresso do País.
   
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Dois historiadores, Rocha Pombo em 1933 e Rodolfo Garcia em 1934, vieram depois. O primeiro foi também poeta, romancista e contista, além de servidor da narrativa histórica, mais didática que reflexiva. O segundo, companheiro de Capistrano, soube ser, nos seus relatos do nosso passado, um modelar escritor, na limpidez, na sobriedade e até no bom humor de seus textos.
   
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Se esses dois antecessores pertencem ao meu mundo, porque os vi e com eles cruzei os meus caminhos, aquele que se seguiu acha-se incorporado às minhas saudades. Refiro-me a Elmano Cardim, que sempre soube ser um modelo de amigo e companheiro, desses que nascem para deixar de si a recordação a que se associa a mais pura emoção. Seu estilo de jornalista constituiu para mim uma lição inesquecível.
   
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Eis-me aqui, agora, diante de Otto Lara Resende, meu antecessor imediato nesta Academia e companheiro de tantos anos. Singular como escritor e como figura humana.
 
Foi sempre o jornalista que, embora voltado para o momento que passa, orientou-se por valores perduráveis. Nunca renunciou à liberdade a serviço da verdade.
 
Liberdade de denunciar o erro, o embuste, a corrupção, enfim, a falsificação. Como também a de aplaudir, a de reconhecer eventuais equívocos, a de lutar permanentemente por uma sociedade mais justa.

Repartindo-se entre as Letras e o Jornal, soube repetir a lição de Alencar e Machado. O que lhes saiu da pena, mesmo quando a inspiração adveio do fato essencialmente jornalístico, ganha foro de perdurabilidade, a exemplo do que fez o mestre de Dom Casmurro quando nos falou do sineiro da glória. Ou ao recordar o velho Senado, numa página de antologia.

Otto constituiu um exemplo da boa formação humanística que sempre nos veio das montanhas de Minas Gerais. Ali se familiarizou com os clássicos. Aprendeu a dar à palavra o aprimoramento da obra de Arte, empregando-a no sentido exato, no ritmo do período, numa elegância de estilo sem excessos nem derramamentos.
 
Quem conheceu Otto Lara Resende, por seus livros, artigos e reportagens, não apreendeu completamente a sua personalidade, visto que era sobretudo o companheiro do bom convívio com a Arte e o gosto de conversar manifestado na frase de espírito, na reminiscência feliz, na murmuração jovial em que se destacava pela espontânea vivacidade de seus reparos inesquecíveis.

Essa arte de conversar ele a trouxe para o Rio, juntamente com a roda de amigos de Belo Horizonte – Carlos Castello Branco, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino.

Isso explica por que Otto, o grande conversador do grupo, nos deixou como escritor uma bibliografia pequena, embora de grande dimensão literária. Alinham-se nela, um romance, O Braço Direito e cinco volumes de novelas e contos: O Lado Humano, 1952; Boca do Inferno, 1962; O Retrato na Gaveta, 1962; A Cilada, 1965; e As Pompas do Mundo, 1975.
 
Colaborador dominical de O Globo, sabia ser o comentarista agilíssimo da vida corrente. E quando passou a atuar no Jornalismo diário, em sua coluna na Folha de S. Paulo nos últimos anos, mantendo o tom coloquial que lhe era próprio, deixou indelevelmente registrada a vivacidade do seu espírito para todos aqueles que não tiveram com ele a oportunidade e o privilégio de um diálogo pessoal.

Senhores acadêmicos,
   
agradeço ao meu dileto e fraternal amigo Josué Montello ter aceito a incumbência de me transmitir nesta solenidade os votos de boas-vindas desta Casa, além de me haver orientado com sua grandeza de inteligência e coração, nos primeiros passos que me conduziram à vossa presença.

Esse estado de espírito deixou-me à vontade para vos fazer uma confidência.

No momento em que me foi entregue em casa o fardão acadêmico, com chapéu bordado e espada, acudiu-me a constrangedora ideia de estar aderindo a uma formalidade anacrônica. Mas logo a impressão se dissipou.

Compreendi que se trata de uma veste que transcende o tempo em que foi criada. Análoga à toga do magistrado, à farda do soldado, ao hábito do sacerdote.
 
Simboliza a adoção de um compromisso de vida. E justamente esse caráter marca a sua fundamental diferença da fantasia que se usa em datas de festa em portanto, de descompromisso.

Conscientizei-me de estar me comprometendo a partilhar convosco a defesa da dignidade da palavra. Como certa vez observei, a comunicação não é privilégio do homem. Aquilo que nos distingue é a compreensão. Com isso, queremos dizer que não adianta distribuir informações se não estivermos dispostos a discuti-las. Utilizando-se a força dos meios de comunicação, pode-se talvez vencer, mas não convencer. O convencimento exige diálogo, em que nos arriscamos à troca de palavras.
 
Quando o jornalista atreve-se a imprimir editoriais e comentários, aventurando-se a refletir o pensamento do homem comum, corre o risco atinente à sua profissão.
 
Quando o cientista, firmado em raciocínios e experiências, formula leis essenciais da Natureza ou da Sociedade, corre o risco de transmitir a sua concepção do mundo para os homens de seu tempo.

Quando o artista se dispõe a elaborar em Prosa ou Verso experiências humanas que reflitam ou transbordem as de sua época, corre o risco da criação.
 
Nessas diversas modalidades, fica-se sujeito à rejeição ou à consagração. Joga-se assim o destino das vocações na força comunicativa das palavras.
 
Essa circunstância acrescenta a esta Casa, além da atividade criadora de seus membros, a responsabilidade específica do cuidado com a Linguagem.
 
Não para circunscrevê-la a rígidas normas gramaticais, excluindo-a da comunicabilidade com a fala coloquial. Nem tampouco para jogar levianamente com o vocabulário, a exemplo de alguns dos primeiros exercícios do Modernismo que só iriam atingir o ponto definitivo de equilíbrio na obra admirável de Guimarães Rosa.

Por outro lado, abre-se nos dias atuais uma nova frente de ameaça às palavras em virtude da sua crescente substituição por imagens eletrônicas ou informes de computadores.

As imagens, sejam diretas ou transmitidas por irradiações, são sinais que nos chegam do mundo, marcando a sua presença em nosso espírito. As palavras são sinais pelos quais impomos e atribuímos ao mundo um sentido espiritual.

Não nos é lícito renunciar a essa primazia.
   
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Cabe ainda observar que o computador aumenta a velocidade do pensamento, mas não a sua profundidade. O que é mais grave: a máquina não erra. Enquanto o homem tem a faculdade e o direito de errar.

É um ser essencialmente errante que viaja para o futuro, sem receio de incidir em equívocos no que afirma, pois lhe é sempre possível corrigi-los.
 
É a esse bom combate, no sentido de colaborar para que não se degrade a nossa Língua, reduzindo as nossas fronteiras espirituais, que me disponho, na medida de meus préstimos, a ficar ao vosso lado.
   
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Chesterton dizia que, em certas horas de crise, as palavras perdem sentido. Ficam loucas. Na atual perturbação do Brasil, não estão enlouquecendo apenas as palavras, mas todos os símbolos nacionais a partir da moeda, estendendo-se ao sistema de segurança pública, à vida urbana, às instituições jurídicas e políticas, à própria Constituição.
 
Que minha primeira sugestão, como vosso confrade, seja a de que orientemos o nosso esforço em prol do País, pregando que sem tardança restabeleçam-se o senso e a dignidade de duas palavras: ORDEM e PROGRESSO.

19/10/1993