Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Ribeiro Couto > Ribeiro Couto

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Laudelino Freire

RESPOSTA DO SR. LAUDELINO FREIRE

SR. RIBEIRO Couto:

Quando, para aqui virdes pronunciar o vosso discurso de recepção, envergastes o fardão acadêmico, não vos esquecestes de sobraçar, para exibir-nos, a vossa certidão de idade.

Não o fizestes, estou certo, para zelos incitardes àquele dos nossos que, diante dela, deixa de ser o mais jovem da Companhia, senão para revelardes modéstia e, diplomata, que o sois, usardes para conosco de um gesto de polidez e elegância.

– “Como vos dignastes”, dizeis-nos, “abrir as portas a alguém que uma certidão de registro civil insinua ser o mais moço, parece que largo tempo terei, vivendo convosco, de convosco aprender... meu ambicioso contentamento se mistura de um pouco de aflição...”

NÃO E NÃO

Não e não, meu ilustre confrade: nem vireis conosco aprender, nem motivos tendes para deixar dominar-vos de sentimento outro que não seja o que deve dar-vos a convicção de que é aqui o vosso lugar.

Legitimamente conquistastes esta Cadeira, e sabereis honrá-la como a honrou o vosso antecessor.
Dilatando-se vos naturalmente a vida a longes mais afastados, o que aqui vindes fazer, e certamente o fareis, será enriquecer de outros frutos excelentes da vossa inteligência o patrimônio das letras acadêmicas.

Não sois dos que possam ter o ânimo reprimido ou assaltado de qualquer aparência indistinta.
No primeiro dos contos que se compaginam em Baianinha e Outras Mulheres, ressalta esta expressão vossa – Tenha medo não – de tanta eloqüência revestida, e tão pertinente nesta hora em que vos recebo, que me não subtraio ao impulso de fazê-la minha para dizer-vos: – Tende medo não!
Entrai, Sr. Ribeiro Couto, e sede bem-vindo, que aqui todos vos receberemos com as homenagens devidas aos múltiplos predicados do escritor vigoroso e admirável.

Apenas nessa admiração que se vos tributa, sentimos o embaraço de apontar no conjunto da vossa obra, no livro e no jornal, a feição mais relevante: se a do romancista na Cabocla, se a do poeta no Jardim das Confidências, se a do novelista no Clube das Esposas Enganadas, ou se porventura o contista da Baianinha sobre excede o romancista, o poeta, o ensaísta e o cronista.
Poderá deixar vencer-se do enleio de aflição o candidato que conquistou o triunfo que alcançastes competindo com eruditos e sábios ilustres e celebrados?

Dir-se-á que a Academia, tendo de escolher um entre os três, preferiu aquele que é mais propriamente literato, embora nem sempre tenha observado a rigor esse critério.

CANDIDATOS E ELEIÇÕES

A ninguém será fácil conhecer os mistérios e surpresas de uma eleição acadêmica, quase sempre resultantes da necessidade em que se vê o candidato de levar ao conhecimento dos que têm de escolhê-lo as credenciais com que se julga no direito de aspirar à imortalidade.
Parece, e assim devera ser, que o que quer o candidato é que, se lhe faça justiça, firmada no conhecimento e exame de méritos, obras e serviços às letras.

Não raro entram nesse exame circunstâncias insólitas.
Será sem dúvida de imitar o que neste momento está a fazer notável crítico que, candidatando-se a uma das nossas vagas, resolveu, num curso de conferências públicas, estudar a vida e obra do acadêmico, a quem deseja aqui suceder.

Mas em eleições em que os sufrágios se fecham em sigilo cruciante, o que há curioso é a amnésia que em regra acomete os eleitos, que não querem que os candidatos de hoje façam o mesmo que fizeram eles como candidatos de ontem. Chegaram, e não mais se lhes importam os que vêm chegando... Para logo se tornam guardas vigilantes.

E fica esta singular metamorfose a oferecer aspectos interessantes.
Toda eleição é disputa, e quem disputa forceja por vencer. O que, em luta empenhado, os braços cruza, é que realmente nela se não empenhou, ou nela entrou sem querer disputar.
A escolha do vosso nome para ocupar a Cadeira em cujo espaldar brilha o nome de Laurindo Rabelo, traduz a vitória da inteligência com todo o viço da mocidade.

É que a Academia, Sr. Ribeiro Couto, pela ação de forças inelutáveis, está a sentir, e sente bem, que tem de apelar para os moços.

MOCIDADE E VELHICE

A velhice entre nós está em crise, e a que nos aflige é dolorosa: da morte já nos assalta o pavor. Tristemente vão os velhos aqui tombando, como se cada um tivesse mãos postas sobre ombros de outro, para que a fatalidade mais facilmente os mergulhe na noite eterna.

Só a mocidade resistirá ao trágico desse encadeamento de coisas cruéis que o destino regula.
Assim plantado à nossa porta tão medonho fantasma, com o desígnio implacável de uma escala à vista, para espaçar a dor adiando o luto, não há senão que buscar a vida onde ela, sorrindo em flor, é menos fugitiva, duvidosa e instável, opondo-se contra a fúria de Átropos a mocidade, que é saúde, resistência, esperança e força.

E a par com essa finalidade sem dúvida ilusória e falível, reclama a Academia, para os seus graves e sérios trabalhos, moços do vosso porte e valor.

OBRAS DA ACADEMIA

Acabastes de afirmar uma verdade de que, parece, andamos despercebidos: “Não só nas metrópoles intelectuais, como em remotos pontos do Brasil, milhões de olhos estão fitos nas vossas obras.”
Dizei-me, prezado colega: que devemos entender por obras da nossa Academia senão precisamente as mesmas que realizam todas as Academias congêneres?

Acaso em Crusca ou Paris, Madri ou Lisboa, será lícito apontar-lhes missão outra que não seja fundamental e permanentemente a cultura da língua e das letras?

Justo não seria que se nos desconhecesse o tento que temos posto no desenvolvimento da literatura, estimulando-lhe mediante prêmios, a produção, e estudando dessa tribuna, que abrilhantastes, os seus mais representativos e máximos vultos.

A esta louvável atuação falta apenas o estudo de teses literárias, que semanalmente deverá ser feito, segundo prescreve o Regimento.

Não vejo que se possa cultivar, defender e preservar o idioma senão acumulando-lhe a riqueza e expansão vocabular num grande dicionário, que para cada povo é o seu primeiro livro: revivendo-lhe as tradições na reprodução de livros modelares; e, ainda, organizando-lhe a gramática, que nos dê uma tecnologia precisa e uniforme, simplifique a análise e comentários dos textos, evitando fantasias inovadoras, e fixe em formas definitivas os fatos lingüísticos mais comuns, que correm controvertidos.
Não há palavras que resumam as vantagens que a toda gente traria um compêndio elaborado nestes moldes simples e essenciais. O ensino da língua deixaria de ser a tortura, que é, sob a direção desvairada de professores que o ministram a seu alvedrio.

Não se julgaram diminuídas em fazer as suas gramáticas as academias de França e Espanha, enquanto aqui da nossa só cogita Afonso Celso, nome que pronuncio com veneração e inalterável estima.
A essa obra acadêmica dedicava também extremoso carinho João Ribeiro, que tanta falta nos faz, e de quem tanta saudade sinto.

A revivescência da cultura clássica tem sido feita na primorosa coleção – “Publicações da Academia”, que se deve ao esforço de um só, que custe o que custar há de mantê-la. E aqui o nome de Afrânio Peixoto aparece aplaudido e louvado.

O dicionário, pode dizer-se, perdeu o seu alento com o desaparecimento de Laet e João Ribeiro, e receio que se não salve, apesar do carinho do Sr. de Ramiz e dos esforços pertinazes e perseverantes de Cláudio de Sousa.

Antes de referir-me ao que de bom às letras tem dado a vossa pena, permitireis a liberdade deste apelo:
Vinde animar a fileira, aberta já de muitos claros, dos que convencidos estão de que entre as mais antigas e doutas academias do mundo, nenhuma há que deixasse de considerar como o mais útil dos seus fins a composição de um léxico.

E seria contra-senso o divorciarmo-nos desta verdade: a obra de um dicionário é a razão de ser fundamental de uma academia.

O CULTO DO IDIOMA

Não é sem coerência que vos dirijo esta exortação.
Sois dos que amam o idioma e lhe zelam as tradições.

Não quereríamos certamente, os do grupo anacrônico, que os escritores de hoje meneassem a pena com o rigor e requintes de purismo, com que no período áureo o fizeram os Sousas, os Vieiras e os Bernardes, mas desejaríamos que escrevessem de modo que não devorassem em vida a própria obra.
Obra mal escrita é obra que não vive. Só as que se vazam em linguagem correta e com esmero na expressão, não têm época: atravessam os tempos e nelas é que se transmite, de geração a geração, a língua polida e culta.

Assiste-se em Portugal, do século passado para cá, ao desmoronamento da língua, observa o douto Sr. Leite de Vasconcelos, e aponta por causas: a nenhuma leitura dos livros clássicos, o desconhecimento cada vez maior do latim, a influência da literatura francesa e a falta de sentimento patriótico.
Fato idêntico entre nós ocorre, agravado pelo jornalismo, pela oratória parlamentar e estilo oficial, escalrachos insanáveis, ou, na opinião de Rui, os mais poderosos corrutores da língua e do bom gosto.
Não seria erro afirmar que o senso da vernaculidade se nos vem delindo desde o vicejar da segunda geração romântica até chegar a esse português mestiço, a “essa miscelânea amorfa, emburilhada e rude”.

O exagero do espírito nacionalista, entretanto, forceja por defender esse português bastardo, abrigando-o sob o rótulo de língua brasileira, como se nos fosse dado romper a unidade de um idioma, que é comum, para considerá-lo outro e diverso, apenas com o crismá-lo nacional.

Sem dúvida que, passando de pequeno ninho de um jardim da Europa ao estendal imenso de uma terra maravilhosa, teria ele de enramar-se, expandir-se e enflorar-se com a seiva da exaltação tropical.
Mas sem embargo do aumento considerável do léxico, das naturais alterações fonéticas e morfológicas, de certa modalidade da frase, e de todas as modificações, em suma, que se hão nele verificado através dos quatrocentos anos decorridos, continuarei convencido do que alhures já afirmei: subsistirá entre Portugal e Brasil uma fala inauferível, que será sempre a que se traduzir no gênio da língua, no seu quid substancial, na legitimidade dos étimos e no frasear admitido pelo consenso dos que a formaram.
O que há comum no patrimônio que nos herdaram portugueses não importa privar-nos de uma língua nacional, que nenhum povo deixará de ter a sua, mas não será certo tomarmos por mimese, senão respeito à ascendência de onde procede ao falar que nos partilhou o destino, o seguir a tradição escrita e o obedecer a ela.

A língua erudita, pois, que recebemos dos nossos maiores há de ser sempre, aquém e além-mar, esta mesma filha do Lácio, aqui independente e livre em seus movimentos.
Irritem-se embora os melindres do nacionalismo chauvinista, a verdade é a que, na sessão inaugural deste cenáculo, proferiu Nabuco: a língua há de ficar perpetuamente pró-indiviso entre portugueses e brasileiros.

Nada me leva a supor que desta verdade se não compenetre o escritor que no meneio da pena, genuíno e natural, sabe manter a nobreza da escrita e conceituar a literatura de onde ela tira as suas raízes.
Dedicais culto carinhoso à raça heróica e mãe, de quem dizeis de todo o coração:

Raça que abriu oceanos, e abriu continentes,
Que soube (que sabe) construir e cantar.

O POETA

E é natural num poeta esse culto.
A poesia será sempre um desvendar de emoções, que só o artista sabe exprimir.
Daí a elevação da sua linguagem, linguagem quase divina, em que a eloqüência é a própria revelação da aristocracia d’alma.

A vossa obra poética, Sr. Ribeiro Couto, inspira-se na tendência de penetrardes uma realidade, que idealizais, através da própria realidade sensível.

Não se vos importa a natureza na sedução maravilhosa das suas formas, quadros, paisagens e aspectos, senão o que ela tem de real nos seus mistérios e de sugestivo na sua harmonia e placidez. Não vos fala diretamente à sensibilidade o belo visível de um jardim florido, senão o que, nesse ambiente em flor, nos seus canteiros e rosais, nas suas açucenas e magnólias, nos seus lírios e cravos, espinhos e perfumes, despertando-vos a emoção, vos possa levar a ouvir um soluço, evocar uma imagem, sentir uma dor, ou chorar uma saudade.

São estas e não outras, as forças sugestivas do Jardim das Confidências, onde tudo é qualidade nativa, distinção original, sonho, meditação, vida interior, com a íris de uma realidade subjetiva, que é a nota mais característica e viva da vossa musa.

E por assim conservardes em meia-tinta e velada essa realidade, é que a vossa poesia, entre nós, é singular, toda vossa, e matizada de resplendores de que só uma inteligência de eleição a poderia banhar.

Sois acima de tudo lírico sentimental. Os motivos ou aspectos, diante dos quais parece enlevar-se o vosso estro, são simples e tristes, em chocante contraste com o vosso temperamento.
Sim, o vosso temperamento...

Não se me apagará da lembrança a violência da gentileza que vós, destemeroso e cadimo volante, para comigo tivestes, levando-me de automóvel a Santa Teresa.

Ruas tortuosas, dobradas de voltas e viravoltas, ladeiras e rampas não detinham o vosso ímpeto de motorista, que por pouco não precipitou o carro, perambeira abaixo, no oceano de luz que fica sendo a cidade para quem a contempla do alto daquela soberba montanha.
Corríamos, isto é, voávamos, e eu nada mais via, nem ruas, nem rampas..., mas, afinal, o inesperado: chegamos com vida.

Eu não sei como vos não seduziu a corrida do circuito da Gávea!
Eis o vosso temperamento: sempre com fascinação das coisas rápidas e arriscadas, vibrante, dinâmico, e no trabalho raro prodígio.

E é neste homem que se aninha a alma de um poeta de lira melancólica e suavíssima, alma de amigo cheio de ternura para os seus amigos.
Lendo-vos, Sr. Ribeiro Couto, poucos serão os que não sintam vontade de chorar; conversando-vos, poucos serão os que não sentem alegria de viver.

Penetrando as fontes da vida, ou sondando o profundo misterioso d’alma, tendes o dom de desentranhar emoções, que todos experimentamos, mas só o poeta as sabe exprimir.
Se de tão sublimada virtude exemplos tivesse de dar, mister seria citar as composições que formam o Jardim das Confidências e os Poemetos de Ternura e Melancolia.

Dentre elas distinguiria, na luminosidade serena e bela da vossa inspiração, estes revérberos de sensibilidade tropical:

– aquela chuva, chuva fina, que continua, fina e fria, a cair pela tarde;
– a velha praça adormecida, por onde ninguém passa, e parece que morreu a vida;
– aquela frase... “dessas que a gente vai deixando pela vida, ditas a uma mulher que a gente amava, quase, e que ficou também, como a frase esquecida”.
– a alma que “...à mercê de velhas mágoas, é um pássaro ferido mortalmente, que vai sendo arrastado pelas águas”.
– aquele portão de grade, que diz “nunca” no cadeado e nas chaves;
– o desejo da mão: “desejo de ficar sob a tua... Era para sentir que a tua ainda é mais leve”;
– a noite monótona de um poeta enfermo, que se lembra que “longe, pensando nele, há uma velha que reza”;
– a dor de um pai que, sob a carícia das palmas, chora em solitude, a morte da filha, e ouve ao longe uma voz de menina cantando;
– a vigília da mãe fatigada, que, às duas da madrugada, à janela entreaberta, olha a rua que se prolonga e se perde, deserta, com reflexos de espelho em cada gota d’água; e, por último, a moça da estaçãozinha pobre:
Quem sabe se a mulher esperada na vida
não era aquela da estação, não era aquela,
aquela que ficou lá para trás, perdida?”

Perdoai, delicioso poeta, o trazer-vos à reminiscência a imagem daquela que foi – a vossa velhinha de cabelos de algodão.

Possível será, em linhas mais eloqüentes e repassadas de maior meiguice, descrever este quadro de amor?

.................................................................
Dizia-me que eu era “o neto de su’alma”.
...............................................................

Vivíamos os dois aos abraços e beijos.
E era tão grande e tão alegre o nosso afeto
que eu, que lhe adivinhava os mínimos desejos,
parecia seu noivo em lugar de seu neto,
Mesmo por gratidão, é impossível que a esqueça.
Em casa, se mamãe me ralhava ou batia,
ela é que me passava a mão pela cabeça.
Tinha os cabelos todos brancos... E sorria...

Quando me lembro dela, estrangulo um soluço.
.............................................................................
Ainda há bem pouco eu tive um misterioso sonho:
vi, surpreso, a avozinha a subir uma escada,
o dedo indicador sobre o lábio risonho,
como a me suplicar que não dissesse nada.
De longe ela me fez o seu gesto de bênção,
e no seu longo olhar de além-túmulo havia
essa vaga expressão dos olhares que pensam.
Tinha os cabelos todos brancos... E sorria.

Nunca mais a verei, como quando ela vinha
toda noite a meu leito, arrastando-se, tarda...
Mas, ao adormecer, eu bem sei que a avozinha
flutua sobre mim como um anjo da guarda:
vejo-lhe as mãos... vejo-lhe os olhos... a cabeça,
flor de algodão que era mais alva cada dia...
Pobre da minha velha, é impossível que a esqueça...
Tinha os cabelos todos brancos... E sorria...

E se essa velhinha de cabelos todos brancos aqui estivesse a assistir, sorrindo, à glorificação do “neto da su’alma?”...
Entrevejo-a no profundo do vosso coração.

*  *  *

Certo não criastes, Sr. Ribeiro Couto, uma escola, mas no vosso poetar se distingue tal modalidade, original e nova, que à arte imprimindo singular suavidade, sutileza e graça, vos coloca em posição de serdes imitado.

E como assim subistes a tamanha altura com o Jardim das Confidências, essa dignidade de primaz que com ele alcançastes, como que está a indicar-vos que deveis voltar do “Noroeste” àquele jardim encantador, onde perfumais em surdina as vossas confidências com a grande poesia.

O ROMANCISTA E O CONTISTA

A vossa obra, que se multiparte em contos, novelas, romance, ensaios, crônicas e traduções, confere-vos posto igualmente condigno entre os prosadores contemporâneos.
Nesses gêneros, no romance e no conto, sobretudo, firmastes individualidade, cercada de largo prestígio.

Vede, caro colega, que de romance e conto como já nos vamos sentindo inundados. Poucos, porém, são os que têm vossa sensibilidade e a magia do vosso dizer.

De fato vulgaríssimo, qual seja o de um moço enfermo ser mandado a conselho médico para um sítio do interior, fizestes um poema da vida rural, com o escreverdes a Cabocla.

Ao respirar os eflúvios das manhãs da roça, esse doente, aos primeiros contactos com a natureza rústica, desoprime-se da contrariedade que lhe causara a determinação paterna, e a seu próprio pai transmite, numa página de empolgante realidade as suas impressões:

Que deslumbramento foi para mim aquela primeira manhã de roça no Pau d’Alho! Imagine que fiquei tão seduzido, que cheguei, ali mesmo, a formar o projeto (desses projetos) de ser fazendeiro e morar o resto da vida na roça... (Na roça, o senhor sabe, eu não posso fazer extravagâncias). A roça, papai, dá vontade de ser feliz e de viver uma vida parada. A impressão é de que ninguém faz coisa nenhuma e que a gente vive dando graças a Deus. Nas porteiras ou nos terreiros das fazendas, nos milharais ou laranjais as pessoas que a gente vê parece que brincam de tomar conta da natureza. Estão todos mais ou menos quietos, vendo o fordinho passar. Os passarinhos é que parece que trabalham, numa atividade danada, de uma árvore para outra, cruzando a estrada na frente da gente...

Esta carta, de que aí fica brevíssimo trecho, e porventura uma das mais vibrantes páginas do romance, revelando fina observação e muita naturalidade revestida de graciosa singeleza, já inculca a inspiração que tivestes de levantar ao viver provinciano indelével padrão, conservados no seu ambiente nativo os que realmente vivem aquela vida primitiva e simples.

Talvez se não subtraia o romance à justa observação do leitor que, empolgado até certa altura pelo encanto e vigoroso inexcedível do entrecho, sente que se lhe amortece o interesse com o desfecho vulgar dado à dramatização da personagem central. É que se ao romancista não tivesse ocorrido a idéia de resolver a vida da cabocla com o casamento, nela teria criado um desses tipos, que se fazem protótipos, dos grandes dramas humanos. Afinal é assim que se resolvem todos os romantismos... e aí está no que deu o vosso romantismo rural.

Se o romance, porém, deve ser a pintura da vida, ou dela conter parcelas de realidade, e não a de uma vida fictícia, não sei, distintíssimo acadêmico, se entre os melhores e atuais romances nossos algum exista que se possa pôr ao lado da Cabocla, um dos mais belos livros de que deve ufanar-se a literatura brasileira.

*  *  *

A passagem do romance para o conto faz-se em vós, como se de lindo veleiro de velas infladas, navegando a cairo largo sob um céu límpido e mar bonança, passássemos para um bergantim doirado, “velejando horizonte em fora para um mundo de delícias”.

Tudo deleite e encanto.
Com sinceridade afirmo-vos, brilhante confrade: maior do que o lírico melancólico do Jardim das Confidências, do analista arguto da Cabocla, do novelista do Clube das Esposas Enganadas, livro de humorismo exuberante – só o escritor que teve a glória de elevar o conto à altura em que o pusestes com Baianinha e Outras mulheres.

Quanta simplicidade e graça, inspiração e realidade nos vossos contos!
A revelação aliás desses atributos começa de acentuar-se n’O Crime do Estudante Batista, ficando à conta de primícias A Casa do Gato Cinzento.

Observou um dos vossos bons críticos que o que principalmente vos singulariza é o suave perfume de autobiografia que pondes, com discreto pudor, em todas as vossas páginas.
Induz-nos a observação de Paregrino Júnior a considerar que o estudante Batista reflete a primeira fase da vossa vida de pobreza, mas de esperanças.

Teríeis então vinte anos. Era a época em que, com o vosso irmão em letras, Osvaldo Orico, ficavam ambos até alta madrugada nos cafés do Largo do Machado, sonhando com herdeiras ricas e bonitas.
Para um dos companheiros já o sonho é hoje realidade, e o outro, contente, se lhe dirige: “A herdeira mais bonita e cobiçada do Brasil – a Academia – abriu-lhe os braços, deu-lhe a mão e o chamou para a poltrona azul que foi de Constâncio Alves, e onde paira a alma inquieta e vertiginosa de João do Rio.”
E quase estou a ouvir o sonhador que ainda não entrou a segredar ao ouvido do outro: Veja agora o que faz com o velho companheiro dos sonhos e das noites veladas!

Quando em vós ou de vós se fala, caro colega, costumam os críticos ligar o vosso nome ao de outros poetas e contistas atuais, numa suposta comunhão literária, que ao meu ver não existe.
É possível, no entanto, notar certa afinidade entre o escritor do Clube das Esposas Enganadas e Baianinha e Outras Mulheres com aquele a quem chamou Rui o mágico do conto.
Uma das singularidades de Machado de Assis é aquela discreta e indefinível suavidade no escrever, de que usava para tudo melhor dizer.

Em variantes ou digressões só entrava para imprimir nelas, com inimitável graça, o cunho psicológico e vago de uma reticência.
Quando qualquer dos seus entrechos se encaminha para situações que, na urdidura natural, induzem o leitor a esperar um desenlace, o que surge em lugar do que se espera, é uma recriminação, uma sutileza, uma sátira... e o leitor que tire a conclusão.

É a realidade que cede o passo ao psicólogo, nessa forma singular de humorismo, que só cultivam privilegiados engenhos, porque fácil é degenerar em sensaboria.
A quem leia qualquer dos vossos contos, por exemplo, “Baianinha”, “Uma criatura sem dono”, “O bloco das mimosas borboletas”, todos, enfim, do vosso escrínio, para logo acudirão reminiscências das formosas páginas daquele prosador medido e de doçura incomparável, escritor em quem madrugara o gênio, que o predestinara a ser, ao cabo de gloriosa ascensão, a ser... quem?, Sr. Ribeiro Couto, senão Machado de Assis.

Com este, sim, tendes semelhança, mas semelhança que nem vos ofusca nem vos apaga a personalidade, que se mantém distinta.
Originalidade e emoção, simplicidade e beleza são qualidades que possuís e revelais de forma que é toda vossa.

E quase estaria a dizer que sois presentemente um contista à parte em nossas letras.
O maior? Não o sei. O que sei é que os maiores não vos excedem; e quando vejo que deles vos aproximais, fica-me incontida esta curiosidade: quantos deram à literatura livro igual a Baianinha e Outras Mulheres?

Vencendo o natural temor de um juízo definitivo, acrescentarei que a Baianinha vos sagrou um dos mais notáveis, e porventura o mais brasileiro entre os nossos escritores de contos.
A Baianinha e Outras Mulheres, o Jardim das Confidências e a Cabocla asseguravam-vos o direito de penetrardes o mais alto cenáculo das letras, e em nome deste cenáculo, Sr. Ribeiro Couto, tenho o grande contentamento de saudar-vos.

Sede bem-vindo.