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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Adelmar Tavares

RESPOSTA DO SR. ADELMAR TAVARES

SR. PEREIRA da Silva.

Outra vez, hoje, como outrora, juntos, irmanados, unidos, coração a coração, nós três, para falarmos de poesia... Ele, vós, e eu. Luís Carlos, hoje, como ontem, como amanhã, como sempre, no halo da sua imortalidade, que o vejo como o vi, pela primeira vez, naquele morrer de tarde, em que me levastes à sua casa de São Cristóvão, como já tive ocasião de o evocar: – no jardim, ainda dia e quase noite, alto, nobre, e belo, com um braçado de rosas, e um anjo de olhos verdes a seu lado, que era sua filha, entre roseiras; e aquele ar de quem parecia carregar a fadiga da escalada de algum céu, como de Flaubert diziam os Goncourts. Mais nítido, mais vivo, mais presente, tenho agora o quadro nos meus olhos!... Vejo-o conosco, sorrindo o seu sorriso de santo, feliz da claridade celeste. Vejo-o, como o vi, sobraçando rosas para a vossa Noite Acadêmica, Sr. Pereira da Silva, – pois se os mortos vêem, ouvem, e vivem, – outra mais grata não poderia ser à sua Alma, nem tornar mais leve e contente o seu espírito.

Luís Carlos, essa criatura de exceção que passou pela vida, luminosa e levemente, como um raio de luz, e a quem nos uniram os laços de uma estima verdadeiramente fraternal, e para quem jamais secará a fonte da saudade de minhas lágrimas, teve além disso, convosco, Sr. Pereira da Silva, as maiores afinidades de inteligência e de sentimento, de espírito revelador e de emoção criadora. Essa “fatalidade sorridente” que é a Poesia, na vossa expressão, deu-vos a ambos os mesmos estremecimentos de alma no refletir a música velada dos seres, e a mesma intranqüilidade espiritual em perquirir os arcanos insondáveis dos mundos que vão muito além do nosso conhecimento. A mesma destinação vos impediu nas esferas subjetivas. Embora preconceitos de escolas ou idéias preestabelecidas na conceituação de correntes estéticas, queiram ver dessemelhanças nos sentimentos que orientam os vossos ritmos, chamando a um parnasiano-herediano, e a outro simbolista de vinco místico, o que é verdade, é que no fundo vos irmanaram sempre as mesmas finalísticas de arte no anseio da perfeição, e as mesmas inquietudes em querer desvendar ou exprimir musicalmente tudo que o espírito reflete ou investiga diante do Universo visível, ou aparentemente visível, e do mundo interior que cada um de nós traz dentro do coração.

Se Poesia é, como entendo, imagem expressa de maneira musical, poderá um estéril convencionalismo classificar poetas desse ou daquele gênero, com tais ou quais tendências anímicas ou sensíveis, filosóficas e estéticas, porque afinal todos provirão de um mesmo ponto, – ramos de uma só árvore – ou vagas do mesmo Oceano. Se tudo tende à unidade, na direção atual do pensamento einsteiniano, havemos de marchar com o Mestre, para a sua teoria do “campo unitário”. Ainda não faz muito, a imprensa revelava o que ele dizia a Papini da sua teoria simplificadora, fazendo-lhe ver que desde os tempos dos Gregos a ciência aspirou a unidade, e acentuava que na Vida e na Arte ocorre o mesmo. “O amor tem de fazer de duas criaturas um ser único”; e a poesia, “com o uso perpétuo da metáfora que assimila os objetos diversos, pressupõe a identidade de todas as coisas”, pondo em relevo que as ciências caminham a passos gigantescos para se reduzirem à Física, e a Física a uma só fórmula: – algo se move. Se vemos Einstein querer a simplificação de teorias científicas universais, vemos Spengler frisar que a Estética concedeu sempre um valor supremo às diferenças conceituais, não temporais, entre os diversos ramos da Arte, obedecendo isso simplesmente a que se não tem sabido penetrar o profundo do problema, porque “as Artes são unidades vitais, e o vital não admite divisão”, criticando Spengler que os rumos de uma “pedanteria erudita” vêm sendo o de quererem trazer separações no território infinito da Arte, atendendo-se aos recursos e técnicas mais exteriores, dividindo-se a Arte em artes particulares que “se supõem eternas com princípios formais eternos”, quando, se as artes têm limites – “limites da sua alma convertida em forma”, – “esses limites terão de ser históricos, não técnicos ou fisiológicos”, “uma arte é um organismo, não um sistema”.

Ora, se Spengler verbera a divisão da Arte em artes particulares com princípios formais imutáveis, e cada artista tem a arte que expressa o seu temperamento, no seu tempo, porque dentro de determinada esfera nos domínios da Poesia, estarmos a descobrir diferenciações para colocarmos os poetas em províncias diversas, sob correntes e variantes estéticas?!... Cada um é a sua alma, e todos são poetas.
Estou convosco, em que em Poesia não há de como nos lotearmos em românticos, e parnasianos, e simbolistas, decadentes, pessimistas, passadistas, modernos, e futuristas, todos esses ismos, enfim, que desarvorastes na loquacidade daquele repórter, que foi por uma manhã, perturbar a serenidade do vosso lar, e a beatitude do vosso êxtase, para saber, Sr. Antônio Joaquim Pereira da Silva, se seríeis no conflito das escolas, pelo romantismo, ou parnasianismo, simbolismo ou modernismo, – e ao que, na rotativa da vossa mesa de estudo, – trançando as pernas como tão de vosso hábito, batestes a cinza do vosso cigarro de palha, e dissestes ao rapaz agitado, olhando-o bem nos olhos, martelando as sílabas da resposta desconcertadora:

– Meu caro amigo, em todos esses ismos, só a um tiro, compungido e respeitoso, o meu chapéu. (E solenemente) – o ca-bo-ti-nis-mo...

*  *  *

Na vossa poética, como na de Luís Carlos, – sem indagar de um a feição “herediana” ou – “delisleana”, – ou do outro a leopardiana, baudelairiana, ou místico-pessimista, prende-me apenas que me encontro em face de dois Poetas no conceito schopenhauereano da “alta poesia”, do poeta, – homem universal – que “se apodera da inspiração no seu vôo, e lhe dá corpo nos versos”, espelho da humanidade, – onde a Natureza se debruça em todo o fulgor do seu espetáculo. Se me encontro em face de dois Poetas, estou conseqüentemente em face de dois filósofos. O Poeta sempre foi o filósofo que procura expressar em versos a Verdade, – essa pobre Verdade, – ilusão sonora do Mundo, que o homem persegue como uma criança a própria sombra, através de escolas e sistemas, teorias e pressupostos, velhas imagens que se renovam, cada vez mais falazes e fugidias, sobrepairando a toda essa logomaquia filosófica, a Contradição, angustiando e aturdindo a nossa frágil curiosidade que quer saber... Se a história da filosofia é em grande parte um conflito de temperamentos, sendo Platão, Locke, Hegel, Spencer, homens que o temperamento fez pensadores – como quer William James – convenhamos que a Verdade ficará, para sempre, recolhida e tranqüila, no fundo do seu poço, sem que toda nua se nos revele jamais.
Diz-nos Bourdeau, – e quero o mais possível falar por suas palavras para lhe não mentir ao pensamento – que desde dois séculos vem a filosofia, pelo espírito crítico, pelo de exame e pesquisa inquieta, a rumar destinos novos para a humanidade, vincando a sua influência na arte, na política, e na religião. Ele observa que a obra de Karl Marx está impregnada de Hegel e de Feuerbach; que Sorel pôs sob a invocação dos mitos e da filosofia da intuição, o seu evangelho da violência; o drama musical de Wagner está todo penetrado da filosofia de Schopenhauer, e o modernismo católico, inspirado do pragmatismo.
Frisa que desde 1870, dois pensadores de gênio que foram ao mesmo tempo dois grandes escritores, dominaram a pequena república da gente que pensa: – Schopenhauer e Nietzsche. Schopenhauer criou-se um público de broyeurs de noir, pretendendo levar-nos ao nirvana budista, ao ascetismo cristão, enquanto Brunetière nos aponta os caminhos de Roma, e Tolstoi os de Belém; e Nietzsche, que ele chama apóstolo da força e da alegria, evoca a vida “intensa e perigosa dos homens da Renascença pagã”. Acha, porém, o pensador de Philosophie Affective, que não fizeram escolas, e desde Kant e Hegel, não vê mais fundadores de dinastia filosófica, pois os grupos se dispersaram, enquanto Ludwig Stein nos fala dos neo-idealistas, dos neo-positivistas, dos neo-românticos, dos neo-vitalistas, individualistas, evolucionistas, etc., concluindo-se de todos esses neo que “antigas idéias são retomadas, postas de novo, como se o pensamento estivesse condenado a girar nos mesmos círculos e a vazar nos mesmos moldes”.

Voltaire dizia com amargura – “consumi cerca de 40 anos em minha peregrinação em dois ou três rincões do mundo, buscando essa pedra filosofal que se chama a Verdade. Consultei a todos seus adeptos da antiguidade, a Epicuro, e Agostinho, Platão, e Malebranche, e continuei na mesma pobreza! Se bem que no crisol desses filósofos haja uma ou duas onças de oiro, tudo mais é resíduo, caput mortuum, lodo insípido”. E depois de debruçar-se sobre a antiga filosofia grega, conclui, melancólico e irônico: – “Fora das asserções dos antigos filósofos, que é que me resta? Um caos de dúvidas e quimeras. Não creio haja existido jamais um filósofo, que haja proposto um novo sistema, que não confesse no fim de sua vida que haja perdido o tempo. Tem de confessar que os inventores das artes mecânicas têm sido mais úteis à humanidade que os inventores dos silogismos, e o que inventou a lançadeira da máquina, foi mais útil que o que adivinhou as idéias inatas.”

Só uma verdade, porém, ressalta claramente verdadeira, Sr. Pereira da Silva, de todas as filosofias: – é a dor do nosso pensamento, na pesquisa da felicidade, na libertação do mal universal, na luta contra o Destino. Pensamos porque sofremos, ou sofremos porque pensamos? Qualquer das veredas que tomemos, chegaremos inevitavelmente a amargurada conclusão: – a dor do nosso pensamento. Perquirir, duvidar, investigar, interrogar, eis o eterno selo impresso ao sopro vital da primeira consciência.

Demos, porém, a palavra ao Eterno Presente, ao que está hoje, como ontem, como sempre, entre nós, – sorrindo o seu sorriso de santo, com as mãos cheias de rosas, – a Luís Carlos, nos quatorze versos admiráveis de

INQUIETAÇÃO

Desassossego do meu ser humano!
Mórbida exaltação dos meus sentidos,
Que me estende a sem fins desconhecidos
Com profundo sabor de abismo e arcano.

Pesa o Universo em mim como um tirano!
No olhar, cabem-me os céus indefinidos;
Nas conchas univalves dos ouvidos
As sinfonias trágicas do Oceano.

Quem sou no meu conspecto diminuto,
Para encerrar esse desígnio imenso,
De ver e ouvir a essência do Absoluto?!
Nesta interrogação vivo suspenso,
Sofrendo já pelo que vejo e escuto,
Sofrendo muito mais pelo que penso.

Assim, na mórbida exaltação dos nossos sentidos, sob a tirania do Universo, com os seus sem-fins de arcanos e abismos, – parece melhor ficarmos com a definição daquele budista de quem nos fala Alexandra David: – “a melhor definição da verdade, é o silêncio”. Ou façamos pórtico do conhecido verso de Vigny, na “Morte do Lobo”:

Seul le silence est grand, tout le reste est faiblesse...

*  *  *

Presas da angústia universal, – vê-se da obra de Luís Carlos e da vossa, Sr. Pereira da Silva, a mesma alma aflita, como a ave do oceano batida dos raios da tempestade, a procura da ponta de um rochedo. Ambos achais essa ponta de rocha na Religião. Na Religião Cristã. O homem diante do mistério, abriga-se no seu Deus. Em face do Infinito, da Eternidade, o homem vendo-se átomo, poeira, nada, refugia-se na sua crença, e grita para o seu Deus como uma criança que se vê perdida na escuridão. Só na tábua da fé, encontra esse náufrago a luz de uma longínqua salvação. As lágrimas dos homens e a poeira dos séculos estatuaram os seus deuses, levantando no Visível Intangível os símbolos da Fé.
Sendo como sois, um poeta da “alta poesia”, Sr. Pereira da Silva, voltando o vosso espírito para as cousas transcendentes da vida, e a investigação da Verdade, os círculos da Dor e as injunções do Destino, tatalaram a princípio, as asas aflitas do vosso espírito, como uma borboleta num vitral. Aturdido, diante de Religiões, Ciências, Artes, Filosofias, clamais em Va Soli, vosso primeiro livro, céptico e desalentado: – “Isso tudo... isso tudo... o que vale isso tudo”?!... para depois rumardes firme, e lançardes âncoras fortes na doce Religião de Jesus de Nazaré, como se vê de todos os vossos livros: de Solitudes, de Beatitudes, de O Pó das Sandálias, de Holocausto, de Senhora da Melancolia. Por todos os vossos poemas, ressoa um órgão profundo de templo cristão, e erra um perfume amável de turíbulo de altar. É que ficou por toda a vossa vida, no fundo do vosso coração, entranhada no vosso espírito, como substratum da vossa personalidade, o incenso da igreja de Araruna – a pequena cidade nordestina da Paraíba, que se orgulha de ter sido vosso berço. Aos 8 anos, quando começastes a abrir os olhos para a Vida, quase não correstes as verdes campinas como Casimiro, porque o vosso dia transcorria entre a escola das primeiras letras e a igreja. Éreis o acólito, o coroinha, o ajudante da Capela da Conceição. Sopráveis as brasas do incensório, envergáveis a opa, tangíeis os pequenos sinos alegres que alvoroçavam a pequena cidade de ao pé da serra, e batíeis as profundas badaladas do sino grande que quebravam o silêncio da Borborema, e chamavam ao recolhimento e à prece as almas cristãs, pelas Ave-Marias. Despertáveis a inveja calada dos pequenos ararunenses de vossa idade, que vos olhavam de olhos úmidos, quando no coro a vossa voz de pureza e harmonia entoava os cânticos do Mês Mariano. Cerrada a igreja, abafada a última vela do altar-mor, vos recolhíeis à modesta casa paterna, – carpinteiro o vosso pai, como São José, – e  aí era o preparo das aulas do dia seguinte, e o deitar cedo para o tanger das matinas. Sempre me falais dessa casa dos vossos primeiros dias: – pequena, baixa, atarracada, com o telhado esbeiçado para a calçada da rua, com uma meia porta e uma janela alta de onde víeis cair em bicas a água da chuva que tanto vos entristecia. A sala de frente era toda uma quinquilharia de bancos altos e de serras, e serrotes, e plantas, e metros, e limas, e puas, e formões, e enxós, e madeiras, e tabuados, e tornos, onde por entre isso tudo, vosso pai, curvado e triste, com a atenção de um químico num laboratório, desfiava os seus dias e os seus serões, cortando, lavrando, desbastando, aplainando, fazendo surgir entre as suas mãos de milagre tão lindas cousas de arte, numa lida sem descanso. Falais-me sempre das suas violas: – “Meu pai era para as suas violas, por todo aquele mundo sertanejo, o que era Stradivarius para os seus violinos. Eu me ficava horas inteiras a olhar e admirar a sua paciência na manufatura daquelas longas e leves caixas que iriam guardar os suspiros e as tristezas de amor dos poetas do meu sertão! Quando meu pai morreu, recolhi como herança, e conservei por muito tempo, uma cruz de madeira na qual ele trabalhou até as vésperas. (Profecia talvez, de meu Destino). Eu deveria chamar-me Pereira da Cruz. Hesitei em assinar-me assim. Mas, por ele mesmo, fiquei Pereira da Silva.”

Um dia, vestido de luto, deixastes a pequena casa da vossa infância, a cidade de ao pé da serra, a igreja das romarias e das missões que tão funda impressão vos deixou, como se vê da vossa obra, deixastes a sombra azul da serra natal, e aqui chegastes, como quem desperta de um pesado sono de breve noite. Nunca esse pequeno mundo, porém, saiu da vossa recordação!... Nunca a sombra da Borborema deixou de se esbater na vossa memória, nem a palavra daquele Frei Marcelo da Graça de Maria se amorteceu na concha do vosso ouvido, como esse doce misticismo cristão da Capela de Araruna jamais deixou de formar a vossa personalidade artística, lastreando e forrando toda a razão de ser da vossa poesia.

Isso mesmo, no-lo mostrais em Beatitudes, naquela “A Loa da Vagabunda”, em que deixais falar toda inteira a vossa alma, e a vossa saudade, através da música, da sinfonia larga e maravilhosa dessas estrofes, cujo teclado é segredo pressentido tão-só dos grandes iluminados da Divina Arte:

Lembra-me bem da minha nobre terra.
Tudo era verde. Havia sobre a serra
Eternamente incensos de nevoeiro.
E vales, montes, – o ambiente inteiro
Era só flores, – um montão de flores
Em que eu fitava os olhos cismadores,
Feliz de ver-me num torrão fecundo,
Belo e floral como o jardim do mundo.

Lembra-me bem daquela Natureza:
Céus imortais em tons de azul-turquesa,
Campos ridentes, prónubos pombais,
Gados às soltas, cheiro de currais,
E, às horas fortes dos sertões, à sesta,
O conforto sombrio da floresta,
Alfombras mais suaves que o veludo...
O coração e o pensamento em tudo.

Eu era um Ser, eu tinha amor à Vida,
Tal qual se fora uma árvore florida.
Filha da Terra, era da terra amada:
Amava e ouvia tudo: – uma levada
Que ia a correr tumultuosamente
Para dar água pura a toda gente,
Um ninho balouçando na ramagem,
O desmaio da luz sobre a paisagem...

E depois de evocardes que aí ouvistes a primeira missa na igreja branca e pequenina, e que vossa alma, como a alma de uma criança, caiu de joelhos aos pés do altar da Virgem, entre montões de flores, e os vossos ouvidos recolheram eternamente o alado barulho dos pássaros votivos da manhã, clamais:

Ah! minhas horas íntimas, caladas,
Ermando ao largo e ao longo das estradas!
Arvoredos sombrios dos caminhos,
Romantismos de pássaros e ninhos,
A primavera reflorindo os montes,
As verduras idílicas das fontes,
A casa branca, a festa das abelhas,
E as andorinhas no desvão das telhas!

E hoje – que sou? – a eterna forasteira,
A Errante, a Vagabunda, a aventureira
De um lar deixado pelo mundo incerto...
Sou uma voz perdida no deserto;
A “desplantada” que ninguém compreende,
Fantasma, sombra, espírito, duende,
A Alma da Aldeia, expiando as culpas suas,
No tumulto das praças e das ruas.

Mas guardarei a minha dor obscura.
Nenhum de vós terá minha ternura,
Nenhum de vós, homens que estais passando!
E só, dentro de mim, de quando em quando
– Árvore morta das evocações –
Eu viverei minhas recordações,
A minha aldeia, o meu torrão fecundo,
Que hoje é que eu sei: era o jardim do Mundo!

Vivendo vossas recordações, nunca a “desplantada” deixou de gemer no fundo de vossa alma o seu canto aflito de inhambu saudoso dos seus céus imortais, dos seus campos ridentes, dos seus montes e vales floridos, dos seus arvoredos sombrios, das suas fontes idílicas; e, em plena vida, por outras terras e outras gentes, lembrando o pequeno ninho lá longe pendurado na ponta do pau d’arco nordestino, vos julgais “uma voz perdida no deserto”.

Homem do século XIX, refletis no espelho de vossa alma o pessimismo que ele fez derramar no pensamento dos seus filósofos e no sentimento dos seus artistas, entendendo Metchnikoff que foram mesmo os poetas que encheram o século dessa concepção pessimista através de “sua sensibilidade exagerada”, ouvindo-se, logo de começo, a nota de dor da voz oceânica de Byron que clamava através do bronze sonoro de suas estrofes: – “Our life is a false nature”. Chame-se Schopenhauer, ou Hartman, ou Mailaender, – Schopenhauer que combinou na sua “filosofia hipocondríaca” Platão e o Buda, um a Arte, outro o Misticismo; – chame-se Leopardi, Lamartine, Verlaine, Baudelaire, Hugo ou Vigny, filósofos ou poetas – por todas as almas esbatia-se através dos séculos – a sombra misteriosa daquele Príncipe Predestinado que pervagara entre lótus azuis e figueiras imensas, nos bosques indianos, a pensar nos destinos da humanidade, e na dor como princípio e como fim de todas as cousas e seres de um mundo só de tormentos.

Se essa sombra imensa do mal do século, da doença de Werther, ou de René, se esbate na vossa Musa que encontra, como flor de sombra, ambiente próprio para melhor florir, revestis, como Leopardi, o vosso pessimismo de uma forma religiosa, que está em vós nessa dobra austera, sombria e ascética do Cristianismo. F. Caro assinala que cada um faz um pouco a religião à sua imagem, e aí põe a dobra particular do seu espírito, e por isso vislumbramos no vosso, Sr. Pereira da Silva, nitidamente, as linhas formadoras daquela filosofia grega – patrística – que tem como fontes da filosofia cristã a Bíblia, Philon, Plotino e Platão, – Deus como Bem Supremo, Deus – Razão Suprema, Deus – Espírito Supremo, e está na filosofia de São Justino, de Tertuliano, de São Clemente de Alexandria, de Santo Atanásio, de São Gregório de Nazianze, de Santo Agostinho, presidindo-vos aquela caridade cristã que emana da Moral dos seus filósofos, – sendo a bondade no homem, – caridade, amor de Deus e amor de todos os homens em Deus, e em nome da qual, na eloqüência  de São Paulo, tudo se suporta, tudo se crê, tudo se espera, tudo se sofre.

É verdade que Deus numa outra Vida
Há de punir os pulsos do homicida,
Há de chamar a contas o ladrão,
E os que denegam santidade à igreja,
E por ódio, maldade, infâmia, inveja,
Fizeram jus a toda maldição.

É bem verdade que se deve amar
Os que perderam tudo, a paz do lar,
O amor à Vida, os bens do coração,
E da existência venturosa em meio
Passam sem ter nesse prazer alheio
A mais humilde participação.

Sim, nós os filhos natos da Verdade.
Porque sentimos toda a humanidade
Em nossos lances para a perfeição,
Nós devemos dizer ao povo obscuro,
Como quem fala a um preso atrás de um muro,
Tudo que as almas justas lhe dirão.

Aninhado na vossa fé, a dor que cantais é triste, a verdade que pregais é triste, tudo, porém, o fazeis num arrulho de doçura, pois tem ela aquela mesma qualidade artística exquise que Faguet observou em Lamartine: – “É uma dor que não braceja, nem grita.  Pinta estados de sentimento, sem ímpetos de violência, nem relevo duro, com o talento de tornar sensíveis os nevoeiros, as cerrações, as regiões brumosas e carregadas da Alma. Pinta essas horas crepusculares, de langores serenos que o fim dá a tudo, e têm para o coração impressões doces como passos mudos que marcham sobre musgos”...

*  *  *
Por uma manhã de 1895, lestes um edital chamando a mocidade a preencher os claros abertos na Escola Militar com a Revolta de 93. Abria-se a flor dos vossos 17 anos. Ficastes longo tempo com o jornal entre as mãos, e o pensamento distante. Estava ali uma bela carreira, – o soldado, a Pátria, a bandeira, o futuro.

Partistes para a Escola Militar, e vos inscrevestes, apertastes o cinto, envergastes a farda de botões de oiro, enterrastes à cabeça sonhadora o quepe com o número de vossa matrícula, e ao sol, e aos ventos de uma manhã gloriosa, jurastes à bandeira auriverde. Soldado, como Camões, e como São Luís, como Vigny, e como São Jorge, o poeta e o santo dormiam no fundo dessa alma entusiasta. Mas a Pátria preocupava as escolas e os quartéis. Conspirava-se. E – quem o diria? – o cadete Antônio Joaquim era um conspirador perigoso!... Sussurrava coisas tenebrosas entre os companheiros. Prometia. Afirmava. Sabia... Dizia versos que rastilhavam incêndios nos moços corações que os ouviam. Era já em 1897. Do alto de um tamborete, no pátio da Escola, por entre a luz mortiça dos lampiões, proferia palavras candentes a favor de Floriano, contra Prudente. Aquelas mãos magras e pálidas, suaves e pastorais, – que à semelhança de César Dominici sobre Amado Nervo, – “pediam a nobreza episcopal da ametista”, faziam entrever as mais chamejantes bombardas, e por aquela cabeça “que reclamava a tonsura”, estalavam chamas patrióticas e referviam idéias capazes de subverter todo o país no mais assustador dos cataclismas!... “O cadete Antônio Joaquim era um conspirador perigoso!...”

No dia em que subiu Prudente novamente ao governo, estáveis em armas.  Fostes preso, levado incomunicável ao Quartel General, e deste, sob a vigia mais cautelosa, para o 23.o Batalhão de Infantaria, e depois vos mandaram servir no 13.o de Cavalaria do Paraná.

Aí, é que foi o sobressalto desse ingênuo e doce coração de mulher que é vossa mãe! Quanta infelicidade vinha a cair sobre o seu filho!... O número 13! As campinas do Paraná revoltadas!... O cavalo!... – aqueles cavalos bravios e guerreiros que o seu filho conhecia apenas em estampas de revistas!... Mas fostes, e dominastes os nervosos e luzidios cavalos, “de cascos relucientes y de ancas musicales”, e correstes como sobre asas de Pégasos as verdes campinas, e varastes com a ponta de vossa lança as sombras azuis dos altos pinheiros gementes e gloriosos. Na intimidade de Dario Veloso, – o Poeta e o Santo, o filósofo e o artista, que dormiam no fundo de vossa alma, desabrocharam inteiramente em ritmos, e só uma idéia vos tomava, noite e dia: – voltar ao Rio, completar o tempo de serviço, obter a baixa, e apanhar de um livro de Leis e oficiar com ardor no templo da Justiça. E assim o fizestes, voltando ao Rio em 1900 e pouco, quando entre nós irrompia a escola revolucionária do movimento literário simbolista, a desancar a Academia no seu primeiro decênio, (oh, as costas-largas da Academia!...) e malhando à vontade os nossos Coelho Netos e Murats, cognominados de fósseis, apegados às formas impassíveis de um parnasianismo retrógrado, e às tábuas movediças de um naturalismo agonizante. Procurava-se com Gautier o sentido que as palavras ocultam fora do senso vulgar, e a cor que encerram, como diamantes, rubis, safiras, esmeraldas que as palavras são, – sendo que Rimbaud chegou a ver, não nas palavras, mas nas vogais, a cor, – o negro do A, o branco do E, o rubro do I, o azul do O, e o verde do U. Procurando-se a cor, perquiria-se com Verlaine a música que as palavras guardam no fundo de si mesmas, como os búzios das praias, os barulhos secretos do mar...

De la musique, avant toute chose!
.....................................................
Car nous voulons la nuance encore,
 Pas la couleur, rien que la nuance....
De la musique encore et toujours!

O Simbolismo desfraldava-se, pois, para retomar a música de que o Parnasianismo e o Naturalismo haviam desapossado a Poesia. Sob a égide de Cruz e Sousa, pompeava entre nós a Rosa-Cruz, o hebdomadário vermelho capitaneado por Félix Pacheco, Carlos Dias Fernandes, Saturnino Meireles, e tantos, tantos outros. Procurastes a Cidade do Rio, de Patrocínio, e aí com Patrocínio Filho, Corinto e Pausílipo da Fonseca, Gonçalo Jácome, e Saturnino, e outros, sob o pseudônimo de J. D’Alem, ingressastes na imprensa carioca, e passeastes depois a vossa pena cintilante pelo Jornal do Commercio, pela Gazeta de Notícias, pela A Época, de Vicente Piragibe, e pela A Pátria, de Paulo Barreto.

Aflorando o vosso espírito no grupo do simbolismo, onde fizestes de Félix Pacheco, e Saturnino, e Jácome, e Carlos Dias, e Nestor Vítor, e Castro Meneses, os vossos companheiros mais fiéis, a ponto de sair o vosso Va Soli, contemporaneamente com Astros-Mortos e Felix-Culpa, estáveis nas trincheiras dos petardos, éreis simbolista, revolucionário, carbonário, lenço-encarnado, mas não muito... como se diz na gíria carioca. Qualquer que fosse o templo onde se oficiasse a Beleza, vos descobríeis respeitosamente. A estrofe lamartineana, ou baudelaireana, leopardiana ou herediana, – Nobre, Antero, Junqueira, Raimundo, Murat, Bilac ou Alberto –, tudo ressoava no fundo da vossa alma profunda e mística com uma nota de piedade e reverência. Passaram as escolas literárias e os seus legionários junto de vós, e vós ficastes sempre o mesmo, olhando-os com aquela mesma serenidade com que víeis passarem outrora, assentado ao batente da casa branca de Araruna, nos vossos oito anos, – as missões e os missionários, que levantavam os templos de Cristo, pedra a pedra, na palavra da Fé, pelo sertão. Viveis, como Leopardi, no eterno exílio, e só a Poesia para vós, como para ele, é luz, e é guia, é pão, e é vida. Só ela é a Verdade. Conservais aquele aforismo de Baudelaire de que se pode passar três dias sem pão, mas nem um só sem poesia... Não fôsseis um sincero, Sr. Pereira da Silva, e não fosse a vossa obra toda uma expansão de sinceridade, – sangue, seiva, perfume e vida –, expressão de sua harmonia, ritmo feiticeiro da sua graça.

Pois se tudo abateu, tudo que engana,
Seguindo as leis fatais da vida humana,
(Leis de que a gente raro se persuade)
Tu me ficaste, límpida, incendida,
Como a graça floral da própria Vida,
Lua piedosa da Sinceridade!

Essa sinceridade vos tem sido ressaltada e alcandorada pelos vossos críticos, mesmo por aqueles que vos queiram apenas ouvir no grave e predileto teclado do vosso instrumento, no teclado da dor, e é essa sinceridade que faz do vosso pessimismo não uma afetação ou uma atitude, mas essa “grandeza triste” que Faguet vê santificada e venerada no templo da Arte Imortal. Dizeis a cada passo, pouco vos importar de como se aprecie a vossa atitude em face da Vida: – “Que importa a mim que me vejam um Santo ou um cínico?... Tudo depende da margem em que se coloque o curioso da minha sensibilidade. O que sou, acima de tudo, é um sincero. Se outros, como Camões, beberam o amor no leite, eu bebi com Virgílio as lágrimas da Natureza.”

Lendo-vos, pode parecer atravessar-se uma floresta cerrada, onde de raro em raro se esgueira uma flecha de luz. Pode ser triste. Mas como é grande! Dante, Poe, Baudelaire, Chopin, Liszt, Beethoven, arrastam constantemente os grandes mantos da dor pelos vossos caminhos.

Como essas flechas de luz, a que me referi, cortam de espaço a espaço a cerração, cantais o Amor ou a Alegria. E que pena sentimos, depois, não ser sempre essa a nota da vossa Musa!... É como se mergulhássemos as mãos na água pura e fria da mata, e nos dessedentássemos da caminhada. Que frieza, que gozo e que perfume tem essa água! Será que toda essa pureza vem “da frágua e da rocha que a farpeiam, e a faz jorrar cintilações de estrelas”, como dizeis em vossos versos? Mesmo quando a Vida vos oferece a taça do prazer, e vos pondera que cada dia e cada instante que vos dá, “vale uma taça de vinho de oiro espumante”, vós a afastais dos lábios sequiosos, receoso do travo que está no fundo:

Mas eu lhe respondo: Vida,
Deixa-me só no caminho,
– Só, de boca ressequida,
Eu sei que a tua bebida
Tem mais lágrimas que vinho!

Se o Amor vos tocaia na encruzilhada, a vossa musa mística, na comparação de Dominici, semelha à andorinha da igreja, – escrava sempre da torre nos seus vôos. E assim, nós vos escutamos ao lado da mulher amada, naquela miniatura em sextilhas, tão festejadas pelos vossos críticos, e que ficarão na Poesia Brasileira antologiadas como paradigma do mais delicado lirismo:

Nós já nos vimos um dia
Nalguma velha abadia
Dos primitivos cristãos;
Tinhas a mesma beleza
E não fito sem tristeza
Teus olhos e tuas mãos.
Como se explica a saudade
Que tantas vezes me invade
Quando cismamos a sós?
Penso causas, e m’as dizes,
E eu sinto n’alma as raízes
Profundas de tua voz.

Lembro mesmo uma passagem:
– Certa vez, sob a ramagem
Das aléias silenciosas,
Comentamos reverentes
O milagre das sementes,
Das estrelas e das rosas...

Sim! Já vivemos um dia,
Na mesma velha abadia,
Em tempos que lá se vão.
A nossa alma é forasteira.
Eu já fui frade, e tu freira,
De algum convento cristão...

Se, como diz o ensaísta de Tronos Vacantes, fica muito bem sobre a fronte dos Poetas a coroa de luz do misticismo, e “na sua acepção mais pura, as religiões não são mais que Poesia infinita e eterna”, – deixai-vos ficar com a vossa fé e com a vossa dor. A crítica já vos assemelhou ao Santo de Assis, que cantais a Beleza na humildade, as cigarras, os pássaros e as formigas, como vossas irmãs, as pedras da estrada e as águas das fontes, bendizendo as feridas do vosso caminhar! Chegais agora à porta da nossa Confraria. Podeis entrar, Irmão Antônio! Descansai com segurança. A sombra é amiga; o pão é puro; o vinho, amável. Já vos fazíeis esperar! Bem-vindo sede! Estais entre os vossos.