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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. PAULO BARRETO

Meus Senhores:

Por uma certa manhã dos fins do século passado – quase quatro lustros antes da terminação desse memorável século da ciência, da luz e do positivismo – um jovem poeta de Maceió resolveu acompanhar a bordo três amigos, que de viagem se faziam para a Corte, capital do Império. O poeta era belo mancebo tropical. Alto, elegante, bíceps gigantes, largo busto com o desabrocho da cintura estreita, longas mãos, cabeleira crespa formavam-lhe a beleza máscula; e quando ria, um riso jovial, entre a ironia satisfeita e a ingenuidade irônica, mostrava aos que o ouviam uma esplêndida dentadura de trinta e dois belos dentes. Era forte, era são, esse mancebo amável. Chamava-se Sebastião Cícero dos Guimarães Passos, e já na cidade provinciana, cabeça das Alagoas, de costume abandonava o lar que o adorava, aprazendo-se em viver pelas reuniões boêmias, e tendo como única profissão a de fazer versos e como único ideal o de continuar a fazer versos.

O moço poeta entrou para o navio com as melhores disposições de voltar à terra uma hora após. Como sempre foi e ainda é costume, apenas nas viagens por mar, afogar as despedidas numa bebida, qualquer bebida em comum, o poeta e os três viajantes abancaram no convés em torno a uma pequena mesa. A conversa animou-se. Os que partiam confiavam esperanças; o poeta animava tão nobres sentimentos de luta e de vitória. De leve a brisa soprava; asas de pássaros riscavam rápidas o ar de azul brilhante. O poeta sentia-se bem. E a tarde vinha caindo docemente...

Quando por tal deu, Sebastião dos Guimarães Passos ergueu-se, estreitou nos braços comovidos os três amigos, e com o seu passo solene – o passo heráldico, como vieram depois denominá-lo –encaminhou-se para o portaló. Aí viram seus olhos mover-se à paisagem e no oceano, que é mais ou menos verde, borbotões de espuma branca. O navio singrava havia meia hora e dentro em pouco estaria em alto mar. Sebastião sorriu e voltou aos amigos. Os amigos foram ao comandante. O comandante, velho lobo do mar, como em geral os comandantes dos romances inverossímeis, riu bondosamente. Que fazer? Já agora era continuar.

Deu ao poeta cama, a sua própria roupa-branca e de tal forma se agradou daquele mancebo importante, que, ao chegar à Bahia, propôs trazê-lo à Corte. O poeta aceitou. Em Salvador escreveu um soneto saudoso, e, verificando ter apenas nas algibeiras duas moedas de tostão, resolveu, para não ter nenhuma, comprar uma laranja. O comandante, a quem pretendia ofertá-la, compreenderia o sacrifício.
Mas, ao voltar para bordo, colocou a laranja na cabine, e, ao chegar ao fim da imprevista viagem, após despedidas, agradecimentos, promessas de eterna lembrança e o desembarque difícil sob o calor pesado, achou-se no cais do Mercado o poeta com a laranja na mão. Há esquecimentos providenciais. Esquecendo dar ao bondoso lobo do mar o presente modesto, agira o poeta movido pelo destino. Assim, pelo mesmo destino removido olhou a rua, reparou nos mercadores, fitou a laranja e logo pensou em desfazer-se de duas dessas três coisas por uma quarta. Passou o pomo cheiroso ao primeiro fruteiro em troca de uma pequena moeda de prata. E, seguro da sua mocidade, caminhou como velho freqüentador para a Rua do Ouvidor, que nunca vira.

De certas figuras humanas não se pode falar senão no estilo da história romântica. Sebastião Guimarães Passos foi sempre uma fisionomia de narrativa, uma criação de romance alheia à vida normal. Nunca agiu por conta própria, deixando ao destino tal esforço. O destino estimava a confiança, e, talvez agradecido, fez dessa vida uma série de acasos simples, uma perpétua legenda. Guimarães deixou a terra natal por acaso e chegou ao centro intelectual do país com quinhentos réis e alguns sonetos, por acaso. Era da província. Podia conquistar tudo quanto os provincianos conquistam com um pouco de perseverança. Apenas continuou entregue ao destino, com tranqüilidade e com calma sorridente. Ao entrar a Rua do Ouvidor, outro teria temores. Ele não. Parou à porta de um jornal, viu um literato também jovem e também de cabeleira, indagou-lhe o nome, apresentou-se, recitou o seu soneto mais bonito. À noite era amigo íntimo da jovem geração daquele tempo, e uma semana depois os ardentes reformadores da estética de então lá o citavam pelas gazetas e dele não prescindiam nas noitadas boêmias. Guimarães Passos não queria mais. E toda a vida mais não desejou como a derradeira personificação do que chamamos boêmia.

A boêmia! A boêmia é uma feição transitória da mocidade, que deve ser brevíssima. Nela desperdiçamos energias e criamos a hostilidade ao ambiente real. La Bruyère se a conhecesse certo ha¬via de considerá-la um vício. Na literatura ela foi bem sempre um vício intermitente que chegou ao apogeu da moda no período romântico. A nossa arte, propriamente nacional, começou nesse período, de maneira que tomou o vício como qualidade fundamental. Durante muito tempo o escritor não passava no Brasil de um curioso anormal, desprendido das coisas terrenas, sem roupa, sem conforto, sem dinheiro, sem poiso certo, lacrimosamente dentro do seu sonho, a escrever sobre mesas de duvidoso asseio os poemas inspirados por uma bela hipotética. Não era conveniente, para ter estro, pensar no dia de amanhã, beber com medida vinhos bons e julgar-se normalmente feliz. A literatura era desgraçada. A influência européia de grandes artistas, aliás bem práticos, agindo entre nós com auxílio do equador, exagerava e abusava.

Os poetas como Castro Alves, Álvares de Azevedo, o pobre Casimiro, julgavam-se infelicíssimos. A poesia era uma sinistra floresta onde o soluço vivia. As gerações literárias custavam a mudar de ideal. Enquanto Victor Hugo economizava, e Théophile Gautier e a banda romântica instalavam no alvorecente boulevard o dandismo dos suculentos jantares do Café de Paris, só pensando em imitar Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand, os nossos poetas cantavam como o trovador que ainda hoje aparece nas cromolitografias morrendo de penúria em frente à janela de uma senhora intratável.

A última geração, a que se veio juntar Sebastião Cícero doa Guimarães Passos, já não tinha esse paciente ideal. Ao contrário, queria mais, aspirava mais, fazia com fúria a bancarrota da boêmia, e, vivendo ao deus-dará, desfazendo ídolos, atacando o burguês, republicana na monarquia, revolucionária na ordem, aristocrática posto que igualitária, esperava o momento de vencer.

Guimarães Passos tinha em parte o fundo da primeira geração e o aspecto da última. Chegou e foi envolvido pelo turbilhão. Pelo turbilhão, sim! Era um curioso estado d’alma geral. Os jovens literatos viviam barulhentamente, impondo-se. Andavam com barulho, comiam com barulho, dormiam com ruído, moviam-se com espalha¬fato, trabalhavam menos e davam muito mais na vista. Se os passados eram os ciprestes de um campo-santo onde a desgraça os prendia, eles eram o clarim de guerra infrene contra uma porção de coisas que ninguém ao certo sabia quais fossem. Se os outros amavam Lamartine e o Sr. Visconde de Chateaubriand, eles amavam Musset, Banville e Shakespeare. O egoísmo era, no bando, o de saldunes crianças. Quando um ia, levava os outros e dos outros escrevia. A fama transitória não se fazia assim de um, mas de todos.

Se caminhavam pelas ruas, eram como conquistadores, quando abancavam nos cafés, abancavam tremendamente. Diziam versos, jogavam o murro, propunham duelos. Eram os mosqueteiros literários. A sua vida econômica baseava-se nesse princípio que os economistas repeliriam: nunca ter dinheiro e ser sempre generosíssimo. A caridade oficiosa desfrutava-os para as conferências em prol das crianças sem pai, das mulheres sem proteção, dos escravos sem liberdade. Quando um deles, por acaso, tirava o prêmio na loteria ou na tômbola, ia com espalhafato, aplausos e palmas à diretoria de qualquer asilo e entregava o prêmio intacto. Depois ficavam furiosos contra o burguês rico, julgando-se vítimas, mas vítimas de um orgulho tão impertinente que quando algum filisteu fingia mantê-los para passar por poeta, levavam o caso a sátira e só não o espostejavam fisicamente, porque já o haviam escorchado pelo ridículo.

O exagero era o fundamento das suas ações. Implantaram assim o reclamo dos nomes superiores pela teoria das falsas aparências. “A obra de arte é uma série de atitudes, e o artista criador um mimo especializado.” Como, na velha Grécia, o esplêndido Alcibíades foi o primeiro a criar o reclamo intensivo, aproveitando até a cauda do seu cachorro, a boêmia artística aproveitava as falsas aparências para dar que falar. Se um era pacifista de ânimo, usava colete cor de sangue de boi, se outro não gostava de se singularizar nas reuniões e via que ninguém usava polainas, punha polainas, mesmo no teatro, mesmo nos bailes, de seda branca sobre as botinas de polimento. Todos tinham largos chapéus, largos gestos e largas gravatas. Se alguém não lhes agradava, passava a filisteu; se não os apreciava como gênios, era reduzido a cretino, e os amigos de semanas dormiam juntos sobre jornais nas redações transitórias, beijavam-se na face e tratavam-se fraternalmente de irmãos.

Catão, o jovem, ao discutir o caso Catilina no Senado de Roma, disse cheio de cuidados: Jam vera rerum amisimus. O pobre homem achava que não se dava às coisas o verdadeiro nome, perdendo os termos a sua propriedade. Catão ficaria louco entre os boêmios de 1885 e furioso agora, tanto as sementes deram frutos depois... Os boêmios exageravam para que lhes dessem passagem. Havia entre eles os fazedores de frases de espírito, que toda a vida não fizeram senão frases de espírito. Guimarães não tinha esse gênio. Havia os grandes poetas, que são hoje a nossa glória desde os parnasianos até os filósofos e cientistas. Guimarães não chegou à pureza daqueles nem à fácil cultura destes. Havia cronistas, romancistas, panfletários, jornalistas. Guimarães não era panfletário, nem romancista, nem cronista de índole. Havia violentos que chamavam o criado a tiros de revólver como o Sr. de Bismarck. Guimarães era fortíssimo e não detonava o seu revólver, mesmo para chamar o criado como o Sr. de Bismarck. A mocidade tinha tudo, menos a ironia, que é a complacência do sábio. Guimarães adaptava-lhes os moldes. O credo da arte pela arte era a preocupação geral. Eles bradavam como um insulto aos utilitários: a arte não se vende! E desejavam ir para diante.

O dinheiro para o bando não passava de um meio de comunicação social deprimente. Das quatro operações conheciam apenas a de dividir com os outros, e contar, contavam sim as sílabas até ao verso alexandrino. Quando, por acaso, acontecia algum deles ter dinheiro, gastava-o logo todo, para se ver aliviado, e cada amigo presente era obrigado a repartir com o infeliz a carga dos bilhetes que tudo conseguem, mesmo o talento, no deplorável leilão da existência. Mas desse mesmo desprezo pelo dinheiro viviam eles. Achariam mesquinho trabalhar pouco um mês inteiro, para receber ao cabo dele parca e certa quantia. Mas trabalhavam muito mais sem ganhar nada e pediam emprestado com a maior serenidade. O que é meu é teu, logo o que é teu é meu. Um comunismo à Prou¬dhon, que, aliás, considerando a propriedade um roubo, punha nas edições dessas teorias: direitos de propriedade reservados. Por isso não jantavam, não almoçavam, mas banqueteavam-se às vezes. Muito mais simples e, para quem não tem dinheiro, com brilho e audácia banquetear-se, do que jantar simplesmente.

Se o dinheiro era assim incompreendido, o amor tomava para eles sempre as proporções das tragédias e das paixões ardentes do Renascimento, no tempo de Cosmo de Médicis e de Lourenço, o Magnífico. O amor era tormento, fúria, delírio, pretexto para excesso, febre má, febre intermitente, que mudava e passava e voltava segundo a ocasião. Quando o poeta amava, a inspiradora dos seus sonhos era uma deusa; quando o poeta estava zangado, era uma infame. Muito deviam ter sofrido as musas da boêmia de 1886!

Sebastio Cícero dos Guimarães Passos, filho do mais antigo tabelião das Alagoas, talvez não tivesse esse temperamento de perdulário sem capital. Mas em compensação, mais que os outros, real, palpável, desenvolvidíssima, tinha a feição sensual. E fazia versos saudosos às mulheres, como um trovador. Quando chegou da província já trazia o soneto que lhe deu renome, lírico e ingênuo:

Esse teu lenço que possuo e aperto
De encontro ao peito, quando durmo creio
Hei de um dia mandar-to, pois roubei-o
E foi meu crime, em breve, descoberto.

Luto, contudo, a procurar quem, certo,
Possa nisso servir-me de correio;
Pois nem calculas qual o meu receio,
Se em caminho te fosse o lenço aberto...

Porém, ó minha vívida quimera!
Fita as bandas que eu moro, fita e espera:
Que enfim verás, em trêmulos adejos,

Em cada ponta um beija-flor pegando,
Ir o teu lenço pelo espaço voando,
Pando, enfunado, côncavo de beijos.

Guimarães era um troveiro simples de alma, naturalmente sonhador, fazendo do sonho a vida e povoando-a de criaturas a quem devia amar em verso. Teria uma única musa, como Petrarca, como o Dante, ou como alguns que, dirigindo-se a várias, só de uma não podem tirar o pensamento? Multa vez, quando as conversas eram mais satânicas em torno às mesas dos botequins, Sebastião levantava-se e saía sem cumprimentar aos mais. Ia meditabundo. Criminaram-no por tal falta em certa ocasião, e o poeta suspirou com os olhos rasos de água: – “Vou pensar na mãe de Antônio!” Houve um silêncio grave. Coisa importantíssima! Descobriam a musa do poeta. Então ele contou que a mãe de Antônio era uma menina amada desde criança, como em Paulo e Virgínia, à sombra das palmas verdes. Apenas a mãe de Antônio casara, e do consórcio nascera Antônio, filho do seu marido. O poeta, entretanto, não tendo dado um passo para obstar o enlace e nem mesmo após o enlace a aparição de Antônio, considerava esse filho seu – porque há sempre uma alma à espera da criança ao nascer e essa alma era filha da sua. Curiosa filosofia! A roda ouvia-o comovida. A norma era extravagância. Eram assim em 1886. Ninguém riu. A teoria parecia exata.

Todavia o amor platônico à mãe de Antônio não o impedia de amar outras senhoras com o lirismo da carne. Eram amores transitórios. Os poetas sentem num segundo o que os outros levam anos a gozar. As mulheres eram motivos emocionais para a sua musa. Em cada uma encontrava o pretexto para sofrer, chorar, ser lúbrico, ser lírico, ser violento, ser doce. Depois andava, sem pensar nos sofrimentos reais que talvez após se ficassem a soluçar. É que a mãe de Antônio, Cloés, Laura, Dulce, Maria, e as outras todas eram, apenas, para esse romântico, formas da Mulher – da Mulher instigadora e vítima, companheira e assassina, da Mulher anseio, desejo, domínio, da Mulher que está em todas as coisas, poliforme e sutil, nas asperezas e nas carícias da existência, nos espinhos e no olor da flor, no encanto das aves e no perpassar da brisa, mulher musa, mulher rima, mulher vida, mulher onda, mulher estréia.
Os poetas menores corporificam todos os espantos e todos os encantos na mulher com o intuito de resumir, condensar e fixar o fim da própria existência. Pode-se dizer que Sebastião Guimarães Passos só falou e só pensou no sexo inimigo. O seu viver é uma súplica, um balbucio amoroso e, mesmo não amando, amava, prostrava-se, rojava, num permanente espasmo de saudade por uma Vênus que era um misto de paganismo e romantismo...

No momento em que te deixo
Deixa-me toda a alegria;
A porta dos olhos fecho,
Porque não vejo o que via.

O amor as almas enleva,
Mas eu por causa do amor
Caminho dentro da treva,
Por guia só tendo a dor.

Além de ti não conheço
Nada, apenas quero ver-te:
Se te vejo tudo esqueço,
Não tenho nada a dizer-te.

Estas quadras, que o poeta denominou “Simplicidade” e são a sua habitual maneira de versejar, bastam como profissão de fé. Quando elevava a Musa, falando na “glória dos helenos” e nos “cânticos de Orfeu”, era para sonhar sonhos de extrema sensualidade, como na “Estátua do Pudor”, e para dizer brejeirices por fim.

Mísera aspiração humana! Rematada
Ambição do mortal! Terrena pequenez
O sonho nos eleva ao céu e o sonhoé nada!
A vida – uma tragédia, acaba em entremez!

E tu, visão radiosa, alma da cor do lírio,
Preferirias, sei, o mais cruel martírio,
Cópia viva e mortal da caçadora Diana,
A que te visse nua alguma vista humana.

Mas os olhos do amor, os olhos do desejo,
Vêem mais do que os que pôs Juno à cauda do pavão,

Que importa ao louco amante a convenção do pejo?
Que importa a veste austera aos olhos da paixão?

Ao curioso olhar perspícuo dos poetas
Todo mistério cai, tudo se desaninha,
E um dia um deles disse em rimas indiscretas:
“Quando se vê o pé, a perna se adivinha.”

Olhos de artista são como o sol que vê tudo,
Olhos de artista são como o invisível ar;
Éter que em tudo está completamente mudo,
Luz que descobre tudo, altíssona a cantar.

Vi teu pé... Meu olhar lambendo apele, ardente,
Esgueirou-se. E ei-lo já no teu rosado artelho,
Ei-lo que sobe mais... ei-lo tremulamente
Serpenteando, a beijar-te a curva do joelho.

A estranha embriaguez não no prostra, ao contrário,
Mais o embriaga o fervor de indômito subir.
..................................................................................

E continua. Os versos não são sempre perfeitos, há até erros mais graves. O poeta, entretanto, beija, continua a beijar num delí¬rio, para cima...
Estes versos de paixão, cantando os olhos, as faces, a curva da cintura, os cabelos da amada e as torturas do amor, quantos antes de Guimarães não os disseram? Quantos após Guimarães não os repetirão? São idéias eternas, posto que pequenas idéias. Já estão nos poetas clássicos, em Catulo, em Ovídio, em Tibulo e estão inexoravelmente na abundância de rimas da nossa excessiva poesia. Guimarães, quando não ora o simples Guimarães, com ironia meio espanhola, repetia os motivos emocionais de sempre. Ele também tem um ébrio que por mais que beba não esquece o seu amor, também tem uma senhora mística e também exagera os nadas da paixão. Talvez por isso escrevesse num momento sincero este sentidíssimo soneto:

Muitas vezes eu li, triste e chorando,
Sentidos versos que outros escreveram.
Assim também, aqueles que sofreram
Hão de sofrer de novo me escutando.

Hão de reler aquilo que disseram,
Datas apenas e sinais trocando,
E sem pensarem no que estou pensando
Crerão nas mágoas que em meus versos leram.

Porque o amor que a todo mundo inflama
É o mesmo amor, e um coração quando ama
Nunca esquece o tormento da paixão.

E às vezes, quando menos esperamos,
Num poeta obscuro, que jamais olhamos,
Encontramos o nosso coração.

Musset, com justeza insolente, já tinha de resto dito:

Il faut être ignorant comme un maître d’école
Pour se flatter de dire une seule parole
Que personne ici-bas n’ait pu dire avant vous,
C’est imiter quelqu’une que de planter des choux.

O poeta não saía a passear sozinho apenas para pensar na mãe de Antônio. Era para pensar em outras, se é forçoso pensar quando se anda só. Ia pelas ruas escuras, noctâmbulo, a devanear; e diante do oceano, sob a lua, caminhava dizendo frases incoerentes. Desejava não encontrar ninguém e quase sempre, nesses passeios poéticos, tinha encontros desagradáveis. De uma feita um guarda tomou-lhe o passo: – “Que me queres, vérmina humana?” O guarda irritou-se. – “Aonde vai assim?” – “Urbi et Orbi!”, respondeu o poeta num gesto largo. Era, numa pilhéria, uma confissão. O polícia assim não compreendeu, levando-o ao posto: – “Cá trago este homem”, gritou ao delegado; “insultou a autoridade, chamou-me de Urbi et Orbi...”

A polícia! Era um dos prazeres da boêmia violentar as leis policiais. Sebastião dos Guimarães Passos divertia-se com isso. Certa noite, depois de belo jantar, indo com um desses amigos que são os satélites dos satélites dos sóis literários, avistou no meio de uma rua deserta uma barrica. O poeta lembrou o fll6sofo cínico: – “Vês aquela barrica? Um filósofo, que o mundo admira, viveu dentro de uma cuba por sistema. Um poeta que o mundo considera, pode dormir numa barrica por necessidade. Ajuda-me a rolá-la para a treva!” Um soldado apareceu Infelizmente e resolveu impedir a operação. O delegado recebeu-os de cara fechada: – “Como se chama?”, indagou do poeta. – “Guimarães Passos.” A autoridade estourou: – “Nada de brincadeiras. Fale sério, ouviu? Já outro dia um tipo da sua espécie disse que era Fagundes Varela. Deram agora para isso. Não pega! Deixe o nome de um poeta distinto e que, além do mais, escreve nos jornais.”

Era, porém, o fim da Monarquia. O Brasil ia transformar-se. Se a primeira tentativa de República sacrificou um alferes dentista amador e degradou vários poetas, é fato positivo que a República afinal se fez também de colaboração tanto dos quartéis como da poesia. Talvez fosse esse o motivo de só haver flores e retórica na proclamação e tão pouco juízo nos primeiros tempos. Os poetas eram todos republicanos. Michelet, os Girondinos, a tomada da Bastilha, – que foi apenas no momento obra de uma sugestão indireta do Marquês de Sade sobre as multidões – a deusa Razão, os lemas definitivos, a Convenção, prestavam-se a belas imagens, belas bravatas, fantasias esplêndidas. A mocidade ardente e quimérica discursava ao lado dos propagandistas. Ao contrário do conselho de César: “Fugi à expressão estranha como de um precipício”, os oradores empolavam tropos delirantes. Na mais completa liberdade os poetas pediam liberdade, não a dos romanos, a doce liberdade, taela pax, mas a que leva à cadeia a rubra liberdade da deusa Revolução. Guimarães Passos continuava a amar, a fazer versos e ainda não arranjara um emprego. Um emprego pode ser um ideal mesquinho para os sonhadores. É sempre, entretanto, um ideal, e o Acaso, o maior dos deuses, ainda não se lembrara de realizar esse ideal pequeno a Guimarães, que com ele não sonhava.

Certa tarde, entretanto, o poeta, ao dar com um amigo, fez-lhe esta confidência fascinante: “Se tivéssemos dois tostões, jantaríamos esplendidamente.” O amigo fizera na véspera uma conferência de caridade, recebendo em troca muitos aplausos; trabalhara o dia inteiro a escrever o jornal, apenas com a certeza dos vencimentos dobrados. Mas só tinha um níquel, foi arranjar outro. E partiram ambos para a Quinta da Boa Vista, num bonde de segunda classe. – “Onde vamos?” – “Comer a carne com que S. Majestade sustenta as feras.” Era uma idéia tão plausível como qualquer outra nesses remotos tempos de extravagância normal. Entraram, pois, ambos o grande portão, resolvidos a disputar o beef às panteras. Junto às jaulas estava um homem cabeludo, bronco e insolente. Era o beluário. A tarde caía como uma pérola diluída por sobre a muda harmonia do arvoredo. Guimarães pretendia apenas pedir o beef. Dotado de uma força física enorme, jamais abusava. O confrade, porém, nervoso e imaginoso, sentiu-se cheio de reminiscências do Baixo-Império. Era Bizâncio que ele via, eram as feras do Coliseu que ali dormitavam. E contra o humilde tratador a sua erudição caiu como um azorrague.

O homem a princípio disse: “Os meninos vão embora, ou depois não se arrependam.” Sebastião achou ameaçador o conselho e quis humilhar o beluário. A cada uma das suas frases, o tratador, sem compreender, mais colérico ficava. Já rangia os dentes. E, num arranco, furioso: – “Ou vão-se ou solto as feras!” – “As feras? Pois solte se é capaz!” Pálido de raiva – pálido e desvairado – o beluário trepou jaula acima a suspender a grade. O urro tremendo de um tigre de Bengala fez-se ouvir. – “As feras!”, bradou o amigo de Guimarães, deitando a correr. – “As feras!”, bradou Guimarães, imitando o amigo. Ambos, na corrida espavorida, mais apavorados ficavam com o tropel dos próprios pés sobre a areia, a visão tumultuária das árvores, e, longe de parar, cada vez mais corriam.

Foram esbarrar, extenuados, de encontro a uma das paredes laterais do palácio. De uma das janelas um homem grave sorria. Era o bibliotecário. – “Que é lá isso, amigo Guimarães?” Mal podendo falar, Guimarães contou o caso, omitindo a fome. O bibliotecário, amador de boas letras e com a tentação dessa juventude irrequieta, ria maternalmente. Mandou-os subir, instalou-os com conforto. – “Já agora não vão sem jantar comigo. Façam companhia ao solitário. Certo ainda não jantaram?” – “Há três dias.” – “Pois terão mais apetite.” Fez servir, no seu gabinete, os pratos das cozinhas imperiais, tratou-os com prazer, e para o fim, filosofando, com o Havana entre os dedos: – “Não lhe cansa esta vida, amigo Guimarães? A sua obra necessitaria de quietude, de descanso...” – “Oh! descanso! Olhe, eu desejaria passar a vida como o senhor. O destino é que ainda não quis...” – “Mas é sempre possível ajudar o Destino. Estava exatamente a precisar de um homem capaz para certos trabalhos da biblioteca...”
Três dias depois, tendo lá ido com o desejo de disputar a carne às feras, Sebastião Guimarães Passas encontrava o seu primeiro emprego como arquivista da Quinta Imperial. Parece conto, dirão. Sim, conto – o perpétuo conto da sua vida inteira.

Cedo, pela manhã, o poeta aparecia com a tranqüilidade do bem-estar na nave da biblioteca. Passeava por diante dos livros, lia, almoçava, contava anedotas. Fez aí a maior parte da sua cultura que estava muito por fazer, leu os autores estrangeiros, amou o padre Vieira, afeiçoou-se aos espanhóis, de que a sua obra tanto se impregnou. A uma certa hora, S. Majestade aparecia. Ia ler, estudar. O silêncio fazia-se religioso. O soberano, a cabeça pendida, trabalhava.

E uma vez em que o poeta também lia noutro extremo, o Imperador chamou-o:
– Senhor Guimarães, como traduziria você estes versos de Zorilla?
O poeta, já então monarquista, adiantou-se com respeito. Sobre o mesmo livro a imperial barba argêntea e a cabeça juvenil do poeta curvaram-se.
– Já os estudei, Majestade, e até cheguei a traduzi-los.
– Como?
– Assim...
Eram dois versos apenas. O soberano sorriu satisfeito:
– Agradável coincidência, Sr. Guimarães. Acabo de traduzi-los do mesmo modo e a sua tradução restitui-me a confiança que em mim não tinha.

Tempos que já lá vão, em que os destinados a cuidar da mais difícil das artes, que é a da governar os homens, tomavam pela poesia interesse, protegiam os poetas e com eles traduziam os mesmos versos!
Mas veio a República. Tanto tinham feito por ela os soldados pouco desejosos de sair dos grandes centros, como os poetas ardentes, como o próprio Imperador – talvez o único grande republicano histórico sacrificado pela República. Os militares tomaram as posições e os poetas cuidaram de também ter o seu pedaço humano. Não houve mortos. Houve apenas um desaparecimento definitivo: o da boêmia. A boêmia literária faleceu para sempre depois de sua crise hiperestésica. Os ideais transformaram-se. Nas revoltas e nos pronunciamentos havia ao lado de militares homens de letras, no exílio e nas prisões o verso defrontava com o galão e com a divisa. Era a geração pensante tomando parte ativa na vida do país.

A estética em que o belo escorraçava o útil e o bem negava o interesse, que é, entretanto, a única e grande força do bem universal, desaparecia. Na Constituinte, os representantes da boêmia de 1886 davam o seu voto e faziam projetos. Em palácio e nos ministérios os potentados do momento procuravam o meio de exterminar o literato-jornalista, possuidor do florete-sátira, do punhal-pilhéria, da adaga-artigo de fundo. Os boêmios, que eram o brinco alegre da opinião, tornaram-se a voz da opinião pública. O encilhamento, o período áureo das concessões e das companhias, tinha poetas no meio. E Guimarães Passos, levado na onda, cada vez mais boêmio, agia sem saber, nada desejando, mas acumulando pilhérias contra os outros com o bom humor de sempre.

Nas comoções sociais, violentas sempre, aparecem, impondo-se aos partidos, alguns bandidos. O que a Europa viu no período escurecido da Idade Média, a América também tem visto. É lei que as águas revolvidas de um lago trazem à superfície os horrores do fundo. Ora, os bandidos não toleram pilhérias e Guimarães acumulava-as, quando rebentou a revolta – a grande e até hoje última. Fazia-se a resistência da terra contra o mar e a onda dos assalariados subia. Um desses, cuja vida foi na América, da Venezuela à Argentina, drama contínuo de torpeza e sangue, o bluff da ignorância impotente, de que até hoje ninguém quis contar a fantástica vida aventureira, era solenemente posto elevado da Guarda Nacional em exercício.

Ao famoso sujeito sobravam as sátiras do poeta. Então, na primeira ocasião, antegozando a vingança, prendeu-o e ditatorialmente fê-lo assentar praça no seu batalhão, como cabo. Guimarães não perdeu o grande ar de sempre. Preso, passou a um amigo do jornal favorável ao Governo um bilhete rápido: “Salva-me de ser cabo para ser alfe¬res ao menos. Do irmão Guima.” O irmão marchou para o coronel diretor da folha, tão nobre homem que se comoveu, promoveu em horas de cabo a tenente e ainda lhe adiantou o dinheiro para a farda. Montando guarda, Guimarães-cabo esperava. Quando a pro¬moção e a farda chegaram, o poeta enfiou a segunda, pôs o quepe, esqueceu a promoção sobre a mesa, apertou a mão do cabo substituto e saiu. Ninguém mais o viu.

O amigo aflito recebeu à noite outro bilhete: “Promovido tenente, sigo grato rumo ao mar.” À mesma hora, num paquete armado em guerra, Sebastião Guimarães Passos atravessava a barra sob a chuva incerta da metralha oficial – revoltoso e político.
Era o mar, a quem sempre o prendeu um secreto amor, que pela segunda vez o levava inesperadamente, fechando o ciclo mais alegre da sua existência. O oceano marcou, de fato, as três grandes partidas em que se dividiu essa vida: a partida para a alegria radiante, a partida para a tristeza solitária, a partida para a morte. Um romântico diria desejo consciente do mar atirá-lo aos astros na ânsia de vê-lo melhor... A segunda proeza marítima, entretanto, levou-o à guerra, a secretário de governo ilegal, ao exílio amargo, alias bem adoçado pela despreocupação e pelo amor – “o amor que não é nem alegre nem triste, e sonha trabalhando, e trabalha sonhando...”

Da revolta criaram raízes muitas fortunas, de ordem política e de ordem econômica. Ele sofreu reveses, nunca procurou juntar dinheiro, passeou com passo fidalgo, amou, contou com a amizade para alimentá-lo. No exílio, vivia em companhia de alguns amigos.
Do Brasil lembrava-se para fazer troças. Entre as pilhérias desse tempo, uma contam que é característica do seu gênio alegre e do seu fetichismo da vida livre. Ao chegar a uma esquina, durante vinte dias, Guimarães atravessava a rua a correr e esperava os amigos do outro lado. Um dia indagaram a razão daquela extravagância. – “Não vêem a placa?” respondeu o poeta. “Vejam a placa: Calle Brasil. Passo ali correndo, porque se for a passo sou preso..” Brincadeiras...

No mais, fazia versos. Propriamente nem muitos versos fazia, nem muito os lavorava. O seu poema contínuo foi o romance da sua vida de aparência sensual, e ao fundo triste sem saber por quê.
Ele, de resto, o disse em versos trêmulos:

Na noite em que eu nasci, noite profunda e escura,
Em que apenas se ouvia o gemido do mar,
Creio que minha mãe chorava de amargura.
E abrindo os olhos, sem olhar,
Vi que no quarto em que eu nascia
Um anjo, ou um pássaro no ar,
Ruflando as asas, fugia.

Mais tarde, quando entrei na minha adolescência,
Alguém, piedosamente, abraçou-me a chorar
E falou-me a tremer, com mágica eloqüência.
Porém, apenas volvo o olhar,
Uma figura que me via,
Um anjo, ou um pássaro no ar,
Ruflando as asas, fugia.

Depois, na idade em que a alma ébria de gozos voa,
A minh’alma partiu, deixando em seu lugar
Outra alma iluminada e compassiva e boa.
E quando a banho em meu olhar
E nos meus braços a envolvia,
Um anjo, ou um pássaro, no ar,
Ruflando as asas, fugia.

Uma vez que julguei terminada a campanha
Sobre os louros dormi a sonhar, a sonhar...
Mas a sombra fatal que me foge e acompanha
O meu olhar, ao meu olhar,
Vendo a fortuna que eu fruía,
(Ou anjo, ou pássaro no ar),
Ruflando as asas, fugia.

E desde então, em toda a parte,
Ou no prazer ou sofrimento,
Ao ver-me a sombra, num momento,
Rapidamente pelos ares parte.

Mas quando o bem mais me acenava,
E um céu mais claro se me abria,
Ao ver a sombra fugidia,
Que bruscamente assim me abandonava,

Eu perguntei-lhe com tristeza:
– Sombra que foges, sombra errante,
Dize-me a tua natureza,
Em toda a parte em que te avisto,
Sombra fugaz, no mesmo instante,
Foges de mim, de mim te vais.

Quem és? Quem sou? Eu não existo,
Sombra, senão para sofrer...
Desde que a luz do mundo vejo.
Que sob a luz do sol padeço;
Do beijo apenas conheço
O fel que oculta qualquer beijo.
O mal que existe no prazer.

E tu, que quando alguma paz
No meu espírito alvorece,
Levas-me o bem que me aparece
E todo o amor, toda a esperança
Levas na tua asa que não cansa.
Quem és? Quem és, sombra fugaz? –

E de uma altura inacessível,
Essa misteriosa, essa vaga entidade,
Com um tom de voz indescritível,
Inexorável e terrível:
“Poeta, me respondeu, sou a felicidade.”

Por isso talvez a procurasse no exílio da Argentina, essa fugace felicidade que o acompanhava afinal, como um anjo da guarda discreto e amável.
Quando voltou do exílio, a geração em que formara estava vitoriosa. E deu-se com ele o triste horror do homem que sobreviveu à sua época. Em vão, queria ver os seus amigos de boêmia tal qual eram. Os amigos estavam colocados, pretendiam dirigir o país, temiam a opinião pública – que a vida começa por afrontar essa opinião, ascende a dirigi-la e pende dela escrava, quando se atinge o máximo da fama.
Em vão Guimarães falava no estilo de outrora. Os amigos nem riam. Haviam casado, educavam os filhos, juntavam dinheiro. Nos cafés já não havia boêmia literária e a boêmia era dourada, nos salões. Dia a dia o mal aumentava sem remédio. O poeta era o derradeiro ser vivo de um país que desaparecera, de uma época tão remota como a dos Farnese, como a de Cleópatra, como a do rei D. João VI. Resignou-se. Não tinha outros amigos senão aqueles de físico parecidos com os antigos. Com eles então fez-se imortal, com eles elegantemente freqüentou salões, com eles obteve o maior êxito recitando versos, vestindo uma casaca de pano tão leve que das abas dizia serem asas de borboleta. Mas vendo os outros vencedores, nunca sentiu a necessidade de vencer, ele, que parecia ter vencido.
Nunca persistiu na crônica. Escrevia por encomenda, desinteressava-se da obra, tendo pelo esforço alheio desconfiança. Como Diderot, que escreveu muito, talvez pensasse: “Feliz o país em que não há nem pena, nem papel, nem tinta senão para escrever o registro das crianças que nascem!” Vivia só, sempre às voltas com grandes paixões transitórias e breves. Saía tarde Quase não comia. Conversava pouco com um perpétuo ar de troça, e horas inteiras passava nos terraços das confeitarias, diante de um bock. Era a última negação do trivialismo, o derradeiro boêmio. Abandonou as festas mundanas. Só ainda aparecia na Academia. Para essa criança que continuava a se julgar o jovem irrequieto, era prazer surgir nas grandes festas acadêmicas, com o porte ereto, o ar galhardo de sempre e aquele riso de ironia ingênua que já não mos¬trava uma esplêndida dentadura de trinta e dois belos dentes.
De vez em quando, os jovens de uma geração que não era já a sua diziam-lhe, sem motivo, coisas desagradáveis. Ele, porém, continuava a caminhar.

Certo nada pode apagar um homem como o elogio unânime. Elogiar sempre é o meio de inutilizar sem luta. Ser elogiado sem um grito de oposição, sem vários gritos, é deixar-se arrastar por ama envenenadora melodia. O homem que sabe, espera apenas o elogio do seu igual porque é vitorioso e fatalmente generoso. Como, porém, a vitória é rara nas letras, o artista pode fitar as estrelas, sentir a vida dar forma e cor à beleza impalpável, educar a visão da própria natureza. De esconderijos e poças lôbregas chega aos seus ouvidos o coaxar dos batráquios e a seus pés, no terreno viscoso, saltam grotescamente, zebradas de verde-limo e de verde brônzeo, as carapaças pustulentas dos sapos, que para ele olham como olhavam o boi do fabulista e a lua dos românticos. Lamentáveis sapos inofensivos! O artista que se inebria na missão de sugestionar, de mostrar o não visto, pára, observa, analisa, sorri. Por onde espinoteiam os sapos há muita vez a inocência de verdes flores silvestres, e quem sabe?, grandes flores perversas de olor intenso. Se não houvesse o sapo, ninguém saberia bem o que é a vida. E os risos maus, o ríctus da inveja, da torpeza, da calúnia, não passam afinal para os fortes, os que vencem, senão do nojo, do asco, da repugnância que a todos causa a acrobacia macabra de um batráquio emergindo do charco.

Guimarães Passos era um grande afetivo. Nunca muita importância lhes deu, e como um outro acadêmico, o boêmio Abbé Poissat, o verdadeiro organizador da Academia Francesa, julgava-se de uma boêmia superior. A sua resposta está neste paradoxo:

Se encontrares alguém no teu caminho,
Que do teu pranto menoscabe rindo,
Que, ouvindo gemer, teus ais ouvindo,
Quebre na face o ríctus do escarninho;

Se encontrares alguém que, descobrindo
No recesso do tua alma íntimo espinho,
Em vez de dar-te fraternal carinho,
Aprofunde-te a dor que estás sentindo;

Não te zangues com ele, não te zangue
O desgraçado riso que lhe vires;
Toca-lhe o peito – que poreja sangue;

Toca-o: verás fementidos modos!
Sonda-o: verás por tudo que lhe ouvires
Que ele é mais desgraçado que nós todos.

Mais do que nunca o seu alheamento da vida ambiente afastava-o de qualquer luta. Era o homem que sobreviveu à sua época. Quase no fim, entretanto, sem sentir o sonho fraternal da antiga boêmia, começou a amar as coisas, os objetos, o inanimado. Parava para o sol, murmurava: o “nosso sol!” Demorava vendo as árvores urbanas das avenidas. “Estão a crescer, venho vê-las todos os dias.” Pediu certa vez a uma senhora uma boneca e levou-a nos braços. Penteava-a, recitava-lhe trechos de Manuel Bernardes e versos de Tirso de Molina, fazia-lhe o rol, dava-lhe banho.

A tuberculose, a que resistira o seu organismo em vinte anos de vida airada, infiltrava-se como mal secreto, ruindo-lhe os pulmões. Então Sebastião Guimarães Passos reparou totalmente na verdadeira vida, ao lado da qual passara sem atentar bem, viu o mundo com as suas dores, as suas alegrias breves, a sua eterna ânsia de bem no sofrimento, e notou que abaixo das boêmias literárias e artificiais, muito abaixo, muito lá embaixo, há uma outra boêmia amarrada no azar, sem pensar nos riscos, trabalhando, penando, arquejando, entre a cadeia e a dura enxada, entre a lei áspera e a sepultura. E essa boêmia involuntária, sem tempo para aprender, sem tempo para sentir, sem tempo para pensar, – essa boêmia sentia a beleza do ritmo, e nas horas roubadas ao repouso, após a labuta ou o crime, que e o maior dos labores, cantava e transfigurava-se. Nem o poeta a conhecera nem ela sabia do poeta, seu filho legítimo perdido no artificial.

O poeta sentou-se. Tinha febre. E escreveu para os boêmios miseráveis a “Casa branca da serra”. Era o grande amplexo do reconhecimento. Como por encanto, divulgada nos almanaques do povo, a canção dominou mares e selvas, céus e vergéis do Brasil. Em cada canto, nas alfurjas sórdidas das cidades, nos campos iluminados pela lua, após a faina, da rótula das perdidas e à janela das namoradas, sobre a carícia dos violões a canção adejou, vibrou, suspirou, queixou-se. Era o lirismo platônico do brasileiro, era a fascinação que domina a nossa raça, era a mesma, a imensa paixão da mulher inacessível por mais que possuída, paixão dos trovadores, paixão saudosa.

Para o poeta o encontro vinha tarde. Não se volta ao simples, mesmo sendo simples, quando outro sonho nos fez a vida. A moléstia, ao demais, progredia. Os amigos, alarmados, resolveram retirá-lo da fornalha urbana, dar-lhe leite em vez de cerveja. Arranjaram-lhe um lugar em Minas. Seguiu, passeou, melhorou e de novo em frente às confeitarias velo abancar. As faces se lhe encovaram, a lebre reapareceu. Encontrei-o uma vez assim. Era no cais, perto do mar. O poeta olhava as ondas revoltas. Disse-me: “Todos têm o seu sonho. Sabes qual é o meu agora? Morrer em Paris.”
Dias depois, quase tão inesperadamente como quando partira de Maceió e partira para a revolta, o poeta partiu para a ilha da Madeira. Era a última partida.

A ilha, paraíso verdejante para quem não conhece a coleção de paraísos idênticos das nossas montanhas, é sem vida. Nos hotéis caros consertam os pulmões ingleses milionários ou arranjam negócio alemães gordalhudos. Nas praias, adolescentes, belos como devia ter sido Apolo, mergulham no oceano, e na montanha, toda verde, os íncolas de falar cantado têm no olhar o mistério da incompreensão. Guimarães escreveu de lá. Estava pior. “Cá vim pedir à ilha da Madeira a saúde que o seu vinho me levou”, dizia uma carta que era um esgar. Já a morte o acolitava.
 
Morte, há no mundo tanta dor contida
Que tu, que findas todo bem do mundo,
És a coisa melhor que há nesta vida!...

De repente, entretanto, antes de morrer, embarcou-se, num subitâneo ímpeto. O Destino queria ser amável até o fim para quem toda vida só nele crera. Ia para a Suíça. Abateu no boulevard, branco de neve, chegou a Paris em pleno inverno, transido e só, olhou com olhos já do insondável, aconchegou-se a tremer sob a neve que parecia o deplumar de asas brancas no céu azul. E morreu oito dias depois de lá chegar, à noite, na cidade que ignorava e que o ignorava, realizando o último sonho, sonho de criança, que antes de morrer deseja um enorme brinquedo de feeria; e morreu no grande rumor orgiástico da Cidade Luz – derradeiro presente monstro com que o maravilhava, enfarinhado de neve, o Destino, pai dos deuses e dos sonhadores.

Assim acabou o último boêmio romântico. Era na sua modéstia de poeta simples bem o reflexo de um momento da nossa raça, era o derradeiro representante da boêmia amorosa em que se cristalizara durante muito tempo a vida contemplativa de todos nós. E a sua grande culpa foi ficar no sonho, fora da vida, teimosamente fora da vida sem senti-la e sem a aproveitar quando os outros marchavam para compreendê-la como a realização do mais belo sonho.

Dele pode dizer-se que teve tudo e nada teve, que tudo fez e nada fez. Sotião, filósofo peripatético, que amava as anedotas e com elas fez um livro abundante denominado o Corno da Cabra Amaltéia, escreveria outro talvez maior com as anedotas da vida desse boêmio. A abundância de anedotas numa existência é a característica da sua irregularidade.
Sem as anedotas não se faria idéia de Guimarães.

Para os perigosos cultores da moral ao alcance de todas as bolsas, da moral em moeda de cobre, Guimarães surge como perigoso egoísta amoroso. Para os que estudam a sua obra modesta: dois volumes de versos, uma comédia, um dicionário de rimas e os humorismos de jornal, contos ariscos, epitáfios, pilhérias de duas linhas, será sempre um desses poetas de fonte romântica, satélite de uma escola desaparecida, perdido noutra escola até à morte sem sofrer a menor alteração, a não ser no espírito que, rareando a produção, nela condensou um triste e profundo amargor. Para os conserva¬dores de coração estreito, uma criatura que estragou a vida. Para os que pensam e sentem e acreditam na ilusão como a única verdade, foi uma deliciosa e enternecedora figura. Não era um criador. Mas era bom, leal, amigo.

E Zaratustra disse: “Os bons não podem criar, são sempre o começo do fim. Seja qual for o prejuízo causado pelos maus, o prejuízo dos bons é muitíssimo maior.” Não era uma personalidade fixada pelo próprio esforça, era uma fantasia real, inventada pelo Destino, de que o próprio Zeus tinha medo. Da sua vida poder-se-ia escrever um conto muito grande, que começasse no estilo de Cervantes, passasse à maneira de Sterne e terminasse como certos romances de Wells, quando coloca os homens de uma época em épocas futuras.

À Academia aprouve eleger-me para ocupar a vaga aberta pela morte do poeta. É de estilo em tais solenidades não deixar o recipiendário de agradecer, cheio de modéstia humilde e às vezes longa, a honra merecida. A honra foi para mim imensa. Seria faltar à verdade visível negar a minha comoção. Mas eu chego muito jovem – o que não é, aliás, tão visível – a uma Academia muito moça para poder abreviar o agradecimento. À juventude tudo se perdoa, menos a pretensão de parecer velho. Nada mais pretensioso do que abusar da ponderada modéstia da velhice. A Academia é já entre nós uma tradição, mas uma tradição juvenil e poderia responder a quem lhe pediu, como o maior elogio, um lugar na sua companhia, o que dizia Shakespeare: um elogio feito em idade avançada é um elogio estéril. Ao recebê-lo antes de considerá-lo estéril, não me prendem só o contentamento e a gratidão, mas também o desejo de explicar a sua intenção.

Há em todas as coisas uma razão sutil, que é o direito da fatalidade. Sebastião dos Guimarães Passos foi a última fisionomia do romantismo. Dar-lhe idade seria diminuí-lo. Sobre a sua alma os anos não passavam nem por eles o poeta pensava caminhar. Morreu quase jovem de corpo e com a alma de uma época que não envelhece, mas se classifica. Era egoísta fantasista, era o egoísta bom. Quem o substitui trocou sempre a quimera pela curiosidade, o entusiasmo pelo fato, o próprio sentimento pela sensualidade dos sentimentos alheios. Veio para a vida ver. Ele foi ator. Eu sou espectador... Ambos vestíamos aquelas roupas que Carlyle, no Sartus Resartus, dizia serem as idéias divinas ou infernais, suscetíveis da Moda. Ele vestia uma casaca de cor, com bofes de renda. Eu visto uma casaca preta sem bofes. E está principalmente na escolha dessas vestimentas simbólicas, que escondem a eterna Idéia Pura, a intenção da Academia. A obra de arte é inteiramente inútil quando não exprime, através de uma personalidade, as aspirações do mundo ou o reflexo dos sentimentos de moral e beleza da época em que surge.

Os grandes poetas refletiram sempre a aspiração universal, foram os vates, os que diziam as ânsias e ao mesmo tempo o imenso desejo de escalada da espécie humana. Os poetas descobriram os astros antes dos homens, e poetas como Dante, adivinhavam constelações num hemisfério ainda por conhecer. Antes da realização das ousadias da Mecânica, os poetas sonhavam o vapor, o telefone, o fonógrafo, a máquina, o automóvel, o aeroplano, que é o mais velho sonho da humanidade. Guardas das tradições, sentiam a natureza pasmada e dominada pelo homem. E enquanto o poeta ficava assim reflexo incentivo da humanidade e os pequenos aedos serviam a satisfação dos egoísmos limitados, o homem penava, sofria, fazia do sangue suor e materializava o sonho. Quando a inspiração ficou abaixo da Mecânica e as fantasias delirantes não ultrapassaram a conquista do conforto, os grandes poetas tornaram-se analistas, e a poesia pessoal, repetindo com convicção pequenas coisas particulares, passou à confecção de bugigangas industriais, em que o molde é tudo.

O sonho particular não interessa mais, porque todos nós vivemos num extraordinário sonho de Beleza e de Força. Nunca houve na vida humana um momento igual ao presente, o momento em que todos são poetas e a poesia vive nos menores gestos, nas menores idéias em cada canto, em cada corpo, em cada cidade. O ritmo mecânico regra como uma apoteose a beleza, todos os delírios, o do prático que descobre, o do rico que esbanja, o do ladrão que mata, o do anarquista que incendeia, o da mulher que perde, o da multidão que treme com a fúria da satisfação na beleza. Tudo quanto parecia impossível ao mundo antigo e não passava de sím¬bolo e de ficção, a imensa e infinita aspiração dos homens desde os árias para conhecer e fixar, domar os elementos, criar, gerar, inventar, realizar, descobrir o mundo onde habita e os outros mundos e o seu próprio ser e a sua própria alma, sentir o inanimado, e animar o aço, descer ao oceano, subir aos ares, consciente e seguro – tudo o homem realizou, materializando o sonho.

É o milagre permanente, é a maravilha normal. Nada pode ser impossível e o impossível desaparece na lenta audácia secular dos demiurgos. O artista sente os velhos processos ridículos, o vazio de repetir diante da imensidade atual. O presente criou as coisas que se não vêem mas se presumem, a atmosfera de assombro em que todos nós, sem espanto, erguemos alto o archote da visão. O presente personalizou o inerte, deu cérebro e pensamentos às máquinas, descobriu a não sonhada vida das profundidades oceânicas, a vertigem vencida dos espaços livres, fez a estética da velocidade, a fúria metálica da rapidez, e ao cérebro deu força infinita e o sentimento do impalpável. Os oceanos ele os estreitou, o aço e o ferro armou-os com o calor para correr parado, para voar deitado, pensando. As grandes florestas, onde outrora os semideuses moravam, ele as desfez; os montes ingalgáveis, galgou-os; as entranhas da terra e o fundo do mar impenetráveis, penetrou-os; dos rios fez estradas, das quedas d’água tremendas, força represa; e, com todas as energias dispersas reunidas, criou o conforto, que é a maravilha da rua, da casa, da roupa, do conjunto, das cidades, das sociedades em que a vida parece acudida por um bando de fadas legendárias.

E pensando, pensando, querendo ser mais. Em cada crânio há uma partícula de um metal mais forte que o mundo – que é a idéia. E jamais cansado o homem possuidor do Egoísmo, a qualidade fundamental que cria a solidariedade pelo interesse e o amor pela satisfação mútua, o homem tem mais ambição. É a aspiração máxima, um conjunto exasperante em que todos querem ter mais, ser mais, vencer mais, do artífice ao que mais pode, em pleno sonho, o sonho ainda maior de superar, de criar o super-homem, de ser maior que a espécie.

A arte é a placa sensível da vida. Fídias diz o mundo grego como Rodin o mundo de agora. Uma estética nova surge, a estética do milagre animador. A natureza é outra, utilizada pelo homem, vista na corrida dos automóveis. A vida das cidades tem esse frenesi de saber, esse desespero orgíaco de domínio, de audácia, de energia cerebral. O homem é outro com os instintos aguçados e os sentidos duplicados. A mulher é ainda mais mulher. Para que repetir o que disse o venerável Lamartine? Para que reproduzir os desesperos de Byron?

Para que fingir lágrimas e escrever sonetos contando velhas coisas líricas que já se não usam e sabem tanto a recantos de antigas bibliotecas? A vida fez a renovação de todas as figuras estéticas, dos velhos moldes literários. A paisagem com a vegetação dos canos das usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos e a disparada dos automóveis, os oceanos sulcados rapidamente, desventrados pelos submarinos, os dramas que esses ambientes novos dão às cidades cortadas de aço, cachoeirando por cima, por baixo em borbotões, as multidões apressadas, a exibição do luxo, a nevrose do reclamo em iluminação de mágica, os negócios, o caráter, as paixões, os costumes, em que o sentimento das distâncias desaparece, o crescente esmagamento do inútil, a flora formidável do parasitismo e do vício, o amor, a vida dos nervos centuplicada, obrigam o artista a sentir e ver de outro feitio, amar de outra forma, reproduzir de outra maneira. Faz-se um poema de maravilha visível e de emoção aguda vendo uma fábrica.

Têm-se todos os horrores e todas as delícias do mundo, sentindo uma rua. E em tão dramático deslumbramento, no malstrom do sonho realizado, no excesso de poesia ativa que diminuiu os poetas, o artista é, mais do que em outra qualquer época, o primeiro, porque vê enquanto os outros agem, reflete enquanto os outros sentem, e, dominador, guarda consigo a imensa e suave força transformadora, a força que mostra os ridículos, indica as falhas, reduz a vaidade, diminui os poderosos, mata os imbecis, esmorece os fracos, incentiva os fortes e julga o mundo, a força da ironia que nas figuras de Leonardo é o sorriso da esfinge, nos bronzes de Benevenuto o desafio voluptuoso, nos mármores gregos a placidez inquietante, e se torna o cunho da obra de arte perdurável, e fixa a imortalidade, num pequeno poema, numa página, numa frase – porque é o sorriso complacente da cultura, a flor do espírito sutil, o ceticismo tranqüilo do raro, a divina ironia, que nem os deuses tiveram, a ironia poliforme que sorri em Luciano e faz pensar em Cristo, a ironia de que um escritor disse: “Sem a ironia o mundo seria uma floresta sem pássaros.”

A Academia – para que dizer coisas por todos sentidas? – é o escol mental do país.
Renan disse que um país vale pelo seu escol. Neste momento o país entra na grande corrente humana, com a força e a ingenuidade de um gigante criança, que muito tempo passou sem nada fazer além de castelos no ar e versos à sombra das palmeiras. É a transformação nos hábitos, nos costumes, nas idéias, um súbito grito de triunfo, a grande força do progresso que é a força de fugir de si mesmo.
Da vida desapareceram os boêmios líricos. Na arte extinguiu-se o sentimentalismo.

A aspiração dos artistas novos seria a de fixar através da própria personalidade o grande momento de transformação social da sua pátria na maravilha da vida contemporânea; a de refletir a vertiginosa ânsia de progresso, esse aspecto incompleto, pouco constituído, agregado heteróclito de apetites bárbaros e delicadezas civilizadas da raça agora; a de agravar o instante em que os velhos sonhos afundam, com todas as valetudinárias superstições de outrora, inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.

Não quisestes em tal hora, senhores meus, chamar para vossa companhia e para a cadeira de Laurindo Rabelo alguém que como Laurindo e Guimarães fosse na vida o prisma azul, por onde não se vê a vida. Quisestes, ao contrário, o espectador incompleto dessa sociedade que se constitui. Em vez da obra perfeita e de saber conhecido, tomastes como exemplo da época na Academia aquele que fixa tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo. A ironia é também incentivo, quando generosa. Há intenções sutis que esperançam e deliciam. Ao entrar na Academia, sob o louro deste acolhimento, quero ver apenas no vosso gesto para o companheiro muito jovem a doce e boa ironia de um incentivo amigo.