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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Cláudio de Sousa

O espírito acadêmico é na França sábia e bem dosada combinação de réplicas amáveis e irônicas, ditas com urbanidade, sublinhadas com traços de erudição e vestidas com elegância.

Escreveu Alphonse Daudet a propósito da ironia de alguns discursos de recepção: “É hábito divertido da Academia Francesa que o acadêmico, no dar as boas-vindas ao recipiendário, puxe a cadeira em que o convida a sentar-se, como fazem os gaiatos.”

Léon Daudet, seu filho, que se especializou em atacar, incessantemente, os “verdes da Academia”, o que para muitos é um gênero literário, em falta de melhor, entende necessária para aquele jogo muita subtileza e muita graça, o que, escasso nestes dias utilitários, existiu em outra época, nos salões palacianos onde primavam a inteligência e a elegância, com o refinamento que os vagares das opulências herdadas permitiam cultivar. A sociedade de hoje em vez das ricas heranças recebeu da guerra pesado espólio de encargos fatigosos de reconstrução. Não lhe sobra tempo para aquela cultura voluptuária. Não me lanço, pois, a replicar a vosso belo discurso com tão arriscado espírito, e muito lucraria o auditório se o pudesse fazer sem palavras, como era costume na Academia Silenciosa, de que nos dá conta o Abade Blanchet.

Tinha essa instituição a sede em Hamadam, na Pérsia. Rezava o artigo primeiro de seus estatutos: “Os acadêmicos pensarão muito, escreverão pouco e falarão o menos que lhes for possível.”

Princípio igual ao que adotou Xenócrates na velhice, dizendo: “Muitas vezes me pesou de haver falado, e nunca de me ter calado.”

Todos os persas eminentes, ou que tal se presumiam, disputavam as poltronas daquela tão sábia quão prudente academia. Contava-se entre eles o doutor Zeb, médico de província, provecto nessa profissão, mas inteiramente alheio às belas-letras. Falecendo o orador da academia, que era surdo-mudo, o doutor Zeb, especialista em moléstias de ouvido, empreendeu dificultosa viagem, com robusta récua de camelos e alguns jumentos, para candidatar-se à academia. Quando, porém, chegou à sede acadêmica, tão cheia de óbices foi a viagem, acabava de realizar-se a eleição. Lamentaram os acadêmicos o fato, pois o doutor Zeb, homem amabilíssimo, se não era escritor, vestia-se, em compensação, com apuro, e tinha excelentes relações mundanas e políticas. O presidente, vexado, não sabia como dar a infausta notícia ao candidato. Ocorreu-lhe, porém, certa idéia, que bem simbolizava o silêncio elegante da academia. Fez vir um copo. Encheu-o d’água até às bordas. Mostrou-o, então, ao candidato, para significar-lhe que uma gota a mais a faria transbordar, fosse ela, embora, da mais pura água.

O doutor Zeb, em resposta, colheu uma pétala de rosa e depositou-a cuidadosamente na superfície da água, sem fazê-la transvazar, confessando-se, por este meio, de peso tão leve como homem de letras que sua entrada não faria o quadro acadêmico transcender os limites estatutários.

A jocosa réplica fez com que se entreabrissem os austeros lábios acadêmicos em comedido sorriso. Admitiram-no como extranumerário, adotando o critério de que em colégio de mudos um mudo a mais não perturba a conversação. Deram-lhe o livro do registro acadêmico para assinar. O doutor Zeb, sabido na arte da poligrafia, traçou o número cem, número dos componentes do quadro acadêmico, e acrescentou-lhe um zero, à esquerda da unidade, escrevendo por baixo do número 0100, assim formado: “Os cem não valerão mais nem menos com a minha companhia.”

O presidente tomando-lhe a pena substituiu com galantaria o zero pela unidade, e sob o número 1100 lançou esta réplica: “Eles valerão, agora, dez vezes mais.”

Vede que graciosa e eloqüente simplicidade, e quão fácil me seria a tarefa, se estivéssemos naquela academia. Ficaríamos, porém, privados de vossa bela oração, provocando, como disse Boileau, um mal maior do que o evitado.

Usam todos os novos acadêmicos da modéstia do Dr. Zeb em seus discursos de recepção nesta ilustre Companhia. Entendeis, Sr. Osvaldo Orico, que ela é insincera. Podeis estar certo que isso não é novidade, nem para nós, nem para o auditório. Posso adiantar-vos que ninguém nesta sala acreditou nem mesmo nas poucas palavras com que eu, tão sinceramente, acabo de confessar meu desvalor. Nenhum candidato, entretanto, tem a imprudência de desmereceres e, quando solicita o voto, pois se o fizesse, e a confissão fosse tomada à letra, correria o risco de não chegar ao discurso de recepção.

Trocastes a costumeira expressão de modéstia por outra que Sócrates, o pai da dialética, talvez hoje não refutasse: não negais vossos méritos para não ofender os que vos elegeram, acoimando-os de injustos. A arte do sofista consiste em disfarçar, como fazem as mulheres belas e argutas, qualquer ligeira imperfeição transformando-a num atrativo. Não desejo dizer que tenhais usado daquele recurso, e por isso agradeço, em nome de vossos eleitores, a justiça que lhes fazeis.

Não há em vosso caso razão para modéstia. Três livros vossos, de diferentes gêneros, obtiveram o primeiro prêmio nos concursos desta ilustre Companhia. Vossa eleição foi a seqüência lógica de tantos prêmios.

A modéstia, entretanto, pode caber com sinceridade em outros casos, como o de vosso antecessor, quando, ao preencher a vaga de Rui Barbosa, se julgou o último a substituir o primeiro. Deve-se tomar, entretanto, aquela expressão no seu real sentido, desvestindo o penitente do injusto sambenito. Laudelino Freire começara, havia pouco, a afincar-se nos estudos filológicos, nos quais Rui se tornava mestre dos mestres. Era o último estudante em data a preencher a vaga do sábio.

A vida espiritual de Rui foi de contínuo esplendor, como a de astro sem poente, na glória sempiterna do gênio, não a resplandecência de um sol apenas, ou a esplendidez de um estelário todo, mas a refulgência vivíssima de sucessões de estelários, esplendor alucinante de mil pomerígios conglobados, como se em sonho mitológico, vazado o sol por novo Prometeu, se derramasse de chofre toda sua luz na terra e nas águas, fundindo o mundo em globo ardente, numa festa de fogo, em que todos nós, os homens, labaredas altíssimas de chama imortal, nos tornássemos senhores do mistério e donos do infinito!

Como descrever-lhe as fulgurações com a tinta opaca e com as palavras que nos restam, se o não quisermos repetir, depois de ter ele ajoeirado todo o ouro da língua na sua oficina quase fabulosa?

Com a habitual elegância e propriedade de estilo, disse Aloísio de Castro: “Ninguém o excedeu no trato e no meneio de nosso idioma, ninguém o pôs em tanta sublimidade. Por seus livros hão de ler os que quiserem buscar o vernáculo na sua fonte mais pura, porque ele o foi tomar na prístina derivação, nos sermonários e nas crônicas, na conversa dos Vieiras, dos Bernardes, dos Sousas, dos Barros, dos Arrais. No que lhe saía dos lábios ou da pena estava o cenáculo da perfeição.”

A Rui faltou, apenas, espaço. Deu-lhe o berço uma língua limitada a dois povos de escassa população. Seu gênio polimático foi ouvido por auditório menos numeroso do que ele próprio. Viveu como o sol atrás da montanha. Mas deixou na terra que a recebeu e na montanha em que se infiltrou a luz de suas luzes. Centenas de milhões de homens habitarão amanhã nosso imenso território e terá seu pensamento a dilatação espacial que lhe faltou.

Menor ainda era o povo de bravos argonautas que com essa língua descobriu mares nunca dantes navegados, dobrou os cabos de tormentas da impavidez e do heroísmo, e, com seu sangue, brio e bravura, preparou no campo do futuro a extensão interminável de sua imortalidade, que um poeta tão grande como os maiores deixou na ilíada ou na odisséia dos Lusíadas.

Pode-se aplicar a Rui o elogio de Chateaubriand a Shakespeare:

Deve-se contá-lo entre os gênios que aleitaram muitos outros. Homero fecundou a Antiguidade; Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Horácio, Virgílio são seus filhos. Dante engenhou a Itália de Petrarca a Tasso. Rabelais criou as letras francesas; Montaigne, La Fontaine, Molière são sua descendência. A Inglaterra é toda Shakespeare, e ainda nos últimos tempos emprestou sua língua a Byron e seu diálogo a Walter Scott.

Acusavam-no de prolixidade, de verbalismo precioso, de exaltação imaginativa e de mais defeitos. Escreveu Chateaubriand:

Renegam-se, muitas vezes, esses mestres supremos; contam-se-lhes os defeitos, acusam-nos de prolixidade, extravagância e mau gosto, mas saqueiam-lhes os despojos. Tudo se tinge de suas cores. Seus dizeres transformam-se em provérbios, suas personagens tornam-se reais. Abrem eles novos horizontes donde jorra a luz. Fornecem imaginação, assunto e estilo a todas as artes.

Ganham assim esses gênios todas as coroas da glória, inclusive a de espinhos.

Quando se abriu a vaga de Rui, ninguém se julgou, no primeiro momento, capaz de afrontar a crítica, a ela se propondo.

Laudelino ofereceu-se, então, ao holocausto. Fê-lo pelas razões que alegou no discurso de recepção. Apresentava-se não para substituir o insubstituível, mas para preencher uma vaga, que devia ser ocupada.

Atribuístes muitos dos ataques injustos que sofreu a seu esmero no vestuário, às vezes extravagante.

É possível que isso provocasse irritação, tão desleixados vão os costumes, mas outras razões encontro mais poderosas. Os gramáticos, como todos os especialistas, mostram-se ciumentos de seus títulos. Laudelino surgiu, repentinamente, com poucos anos de estudo vernáculo, a ditar novas regras ortográficas, novos sintagmas lingüísticos, a elucidar e destrinçar a maravilha de minúcias etimológicas, semânticas e sintáticas que preocupam a vida toda daqueles mestres das irreconciliáveis discordâncias, que chegam à morte discutindo consigo mesmo, como sucedeu a Vauvenargues, o qual, ao fechar os olhos para sempre, exclamou:

– Mes amis, je m’en vais! – e logo perguntou:
– Je m’en vais ou je m’en vas?

E expirou nessa dúvida.

Alguns daqueles propedeutas investiam-lhe a improvisação com severa crítica. Quando menos erudito se mostrava o vindiço, como na interpretação dos textos de Camilo, os ataques tornavam-se em execução sumária. “Repreender coisas alheias é fácil tarefa”, escreveu F. Rodrigues Lobo “fazê-las, sempre custa mais, ainda que elas em si pareçam menos. E citou o caso de Momo, que na perfeição de Vênus de Milo foi buscar os pés para repreender as alpercatas, pois só até lá subia seu pensamento.”1

Negavam-lhe justiça à perseverança exemplar naqueles estudos, à dedicação ao trabalho, à infatigável pesquisa, ao amor desvelado à expressão, fechando os olhos ao que há de bom nos trinta e tantos volumes de sua lavra. Diziam-no simples escrivão inventariante do espólio lingüístico dos clássicos. Se o fosse, porém, podia amparar-se nas palavras do sábio João Ribeiro: “Inventariar ou registrar não é tarefa desprezível, se os inventários podem, na sua congérie imensa, oferecer, como as toneladas de minério, algumas pepitas de ouro verdadeiro.”2

Tinha ainda ele contra si os que discutem assuntos lingüísticos com a mais convencida ignorância, parecidos com o fidalgo napolitano que se bateu em duelo quatorze vezes para provar que Dante era superior a Ariosto, e ao falecer do ferimento no último deles recebido, confessou que nunca lera nem um nem outro.

A esses batalhões de assalto seguiam-se as forças de reserva da preguiça de estudar, que procuravam amesquinhar-lhe a eficiência com as armas do humorismo, constituindo jocoso anedotário com os produtos, apenas, de sua imaginação, como no negócio desfeito pelo emprego de um galicismo, a que aludistes.

Um episódio dessa agressão humorística, relatou-me a própria vítima. Eram três horas da manhã. A campainha do telefone fazia-se ouvir incessantemente. A família levantou-se assustada com o desorado toque, supondo tratar-se de qualquer grave comunicação. Laudelino agasalhou-se, sempre receoso das correntes de ar, que lhe foram fatais, e tomou o fone.

– Doutor –, telefonou-lhe desalmado notívago –, acabo de aprender um galicismo avariado à porta de uma pensão alegre. Para que delegacia devo levá-lo?

A essas anedotas juntastes uma das que provavelmente constituirão meu testamento humorístico... feito por terceiros.

Em certo período mostrei-me, de fato, intransigente com os estrangeirismos, que vão entrando no vernáculo sem nenhuma resistência, adulterando-lhe a beleza.

Tive o prazer de verificar que meu trabalho não foi de todo inútil, pois algumas palavras que propus para substituírem galicismos inveterados, como entre outras, vesperal por matinée, ganharam voga.

A língua, como repetistes, é, indubitavelmente, organismo vivo com evolução indispensável ao suceder-se dos ambientes humanos. Não devemos, porém, a título de evolução, incorporar nela tudo que surge do desleixo, da ignorância, do cilicismo e da importação como formas aceitáveis de expressão regional. Esse acervo não é saúde, nem crescimento natural. O ser vivo é vítima dos agregamentos epifitários do parasitismo, das moléstias de crescimento, das agressões do ambiente e do contágio das moléstias de importação, para as quais se estabelecem cordões sanitários nos portos e nas fronteiras.

Ninguém integraria tais vícios e males em seu retrato físico. Procuram todos, ao contrário, libertar-se dele, extirpando do rosto os pêlos mal implantados, espinçando as mulheres as sobrancelhas e os buços, alimpando a pele de botões, de cravos, de efélides.

Se assim fazemos em prol da perfeição física, a preeminência da língua, como expressão do pensamento, exige maiores cuidados, sem os quais a intensa corrente imigratória estrangeira acabará por asfixiar-nos o vernáculo.

A língua portuguesa atravessou pura oceanos, continentes e raças, e vai-se agora transformando na língua de trapos dos povos desfibrados que se submetem aos invasores.

Luta, também, ela com o linguajar dos ranchos carnavalescos, que, em passo de samba, a apunhalam no coração das cidades; e no próprio diálogo do teatro, que de escola de educação passou a espetáculo de perversão.

Sofre ainda a invasão das correntes sertanejas. Nas classes cultas a leitura quase exclusiva de livros didáticos e literários estrangeiros, vai ainda desfazendo-lhe a beleza transpositiva da ordem direta, que nos permite variar a disposição das flores do estilo, conservando a língua no fausto com que a recebemos. Tudo isso não é mais do que doença da expressão no vasto hospital de nosso analfabetismo.

Considerados a esta luz aqueles fatores, vê-se que não se trata de neofobia, mas de saneamento. Poderia ocorrer que o propósito de expulsar os invasores me deixasse o automóvel deslustrando-se ao sereno, mas que isso importa se nossa opulenta língua conservasse o inteiro lustre?

Asseverastes que somos pobres de expressões técnicas. Mas todas as línguas o são para os novos inventos, forçadas, também, a criar palavras para designá-los.

Devem nascer, entretanto, as formas de denominação dentro do gênio do idioma, e não da cópia servil das línguas estrangeiras.

Que traço luso ou brasileiro têm as palavras aterrissagemamerissagemdecolagem e outras da aviação? Temos aterragem, do verbo aterrar no sentido de tomar terra; amarragem, valendo-nos da expressão náutica, e levantamento, como dizemos dos pássaros que levantam para o vôo.

Que necessidade temos de maquilhagem e de ruge? Menos sedutoras não eram nossas mulheres quando se davam a discreta pintura empregando o carmim. Por que esse solucionar que parece voz entrecortada pelos soluços a despedir-se do verbo resolver do bom falar da família?

Duas raças juntaram-se à portuguesa para formar-nos a língua nacional; a indígena e a africana. Fiquemos, apenas com elas. Uma é a voz da terra, na liberdade. Outra é a voz que semeou a terra, e aleitou o Brasil no cativeiro. São dois momentos históricos. Choram no nosso português três saudades, sublimam-se nela três heroísmos, dois de vitória, um de resignação, palpitam três corações, comunicam-se três sangues caldeados num só povo. Os cumes de expressão e de sonoridade que com eles podemos atingir, acabais de mostrar-nos com o belo trecho orquestral de polifonia trilíngüe com que nos encantastes.

Não tendes, pois, necessidade de dar foros de cidadania, como fizestes em vossa bela obra “Silveira Martins”, a invasores das fronteiras do sul, como o verbo pelear, pois tereis agora nessa Cadeira, de pelejar à portuguesa contra eles, bradando como fizestes: Alerta estou! e brandindo esse doirado espadim que para alguma pugna deve servir.

Quando ainda o corpo inanimado de vosso predecessor estava na sala ao lado desta, nossos corações transidos de aflição, onze acadêmicos, desejando se não interrompesse a tradição dessa Cadeira, pensaram em eleger um filólogo para ocupá-la. Sabíeis desse pensamento, e concorrestes, entretanto, ao preenchimento da vaga.

Um daqueles acadêmicos ora vos recebe, e como os demais, deu o voto a um dos filólogos que concorreram convosco, e que obteve num dos escrutínios onze votos.

Vencestes, pois, o pleito sem compromissos. Mas recebeis uma herança que vos obriga à defesa do sagrado patrimônio, pois é a glória da Cadeira 10 a que vos referistes.

Entendeis que as academias se tornam interessantes pela má fama de que gozam no conceito de seus namorados infelizes, pois por muitos se deixam namorar, e a poucos concedem favores. A todos seria impossível contentar. Tem as mulheres um só coração, e com isso se desculpam as faceiras quando fazem descontentes. A Academia, porém, tem quarenta lugares. Contenta a quarenta namorados. Se ainda assim lhe sobram desventurados lovelaces, pode ufanar-se de tantas graças, que levam os suspirosos a tentar deformá-la com o vitríolo de seus ciúmes. E cabe aqui, repetido a propósito dela, o verso do famoso madrigal de Jean de Lingendes:

La faute en est aux dieux qui la firent si belle!

Narrastes o episódio de Voltaire com o acadêmico de Châlons, semelhante ao de nosso Alberto de Oliveira, quando, lembrando-se de seu diploma de farmacêutico, replicou a um poeta ainda estreante, que o cumprimentara como Confrade:

– Não sabia que o senhor é, também, farmacêutico.

As academias são, de tal forma, atraentes, que se multiplicam no Brasil demasiadamente.

A crítica mais acerba com que se asseteava a Academia era a de que o Brasil literário não contava quarenta valores dignos de imortalidade. Como, porém, trabalhamos sempre pelo método confuso, foram criadas, para sanar e reduzir aquele número, vinte e tantas academias estaduais de letras, sendo que em alguns estados há três e quatro, nas capitais e em cidades do interior de exígua população, além das que se fundam nos centros universitários e até mesmo nos colégios, elevando-se a mais de mil o recenseamento atual dos imortais federais e dos imortais estaduais. Algumas dessas academias adotaram nosso quentíssimo fardão, fazendo-se os acadêmicos fotografar e enterrar com ele, o que, estabelecendo confusão no espírito dos vivos, pode provocá-la após a morte no campo da imortalidade.

Posso tocar nesse assunto sem melindrar a ninguém, pois sou membro efetivo de uma daquelas academias, a de São Paulo, e correspondente das do Amazonas e do Pará, distinções que me excedem os méritos e muito prezo. Mas desde quando o erudito vernaculista Dr. Joaquim José de Carvalho, fundador da Academia Paulista de Letras, me convidou para uma de suas poltronas, procurei convencê-lo de que adotássemos o nome Sociedade de Homens de Letras, Instituto de Escritores, ou qualquer outro, para não dilatar um título cuja maior eficiência é a singularidade.

Havia sido fundada pouco antes uma academia em Goiás, e o Dr. Carvalho replicou-me:

– Se Goiás tem quarenta escritores dignos da imortalidade, por que não os terá São Paulo?

Não me rendi ao frágil argumento, mas, aceitando a irrecusável distinção, conservei sempre meu modo de pensar.

Não se deve negar apoio e estímulo a essas sociedades de escritores, pois nelas há valores dos quais alguns têm vindo e outros virão preencher-nos as vagas. Não podemos esquecer-nos, entretanto, que a profusão é inimiga da seleção.

Fazeis justiça à Academia salientando que ela abre suas portas a todos os escritores brasileiros, velhos ou moços, não indagando de seus credos; e esquecendo até mesmo os ataques que por ventura lhe tenham feito.

Discordo, entretanto, da opinião do cético Anatole de que melhor seria viesse a mocidade depois da velhice. Quão amargas se tornariam, então, as duas idades! Acerba seria a juventude despojada da mais bela, da quase única alegria da vida, que é a ignorância de suas traições. A melancolia de Fausto rejuvenescido, roendo-lhe as raízes do sentimento, define aquela acerbidade. A inocência da iludida Gretchen ou a libidinosa atração de Helena apenas lhe exacerbavam a impressão sinistra do rápido decorrer das horas de uma juventude vizinha da morte.

Veria o moço-velho a lisonja, o interesse, o egoísmo e todas as baixas paixões, sem os arrebiques e posturas da hipocrisia.

Que trágico carnaval seria, então, o baile de Colombina, que lúgubre ironia o riso de Pierrot, quantas bocas de rosa e mel saberiam a azinhavre, quantos soluços ecoariam como gargalhadas reprimidas da felonia, quantas juras de amor se revelariam perjuras!

Sábia foi a Natureza de coincidir o primor de nossas forças com o primor de nossas ilusões.

Nesse apogeu de forças e de ilusões vindes trazer-nos vossa colaboração preciosa.

O destino parece ter-vos reservado essa Cadeira, não permitindo que se completasse, pela falta de três ou quatro votos apenas, a numerosa votação que obtivestes em outras eleições. Havíeis escrito a respeito de Evaristo da Veiga erudito estudo, e ele é o patrono que Rui escolheu para essa Cadeira, admirando-lhe o esforço e a tenacidade, pois, como dizíeis, “de simples livreiro chegou a diretor da opinião pública no Império” e foi a coluna mestra da Regência.

Havíeis educado o espírito literário, embebendo-o de beleza na adolescência com a leitura devota das obras de Rui. Cultivastes a amizade de vosso predecessor e ele vos deu o voto nos pleitos anteriores. Além desses motivos revelastes em vossa oração certo feitio acadêmico. Há nela, como nesta minha arenga, muitas citações, e esse traço é tão acadêmico que em certa reunião em casa de Ninon de Lendos, lamentando o grande pintor Mignard a absoluta falta de memória de sua filha, exclamou a bela Ninon sorrindo para os acadêmicos presentes:

– Tanto melhor. Ela nunca fará citações.

Nota-se, outrossim, em toda vossa obra indisfarçável tendência educativa, que foi a do patrono da Cadeira na doutrinação cívica, a do primeiro ocupante na escola constitucional, e ainda no magistério vernáculo, e a de vosso antecessor na última dessas missões didáticas.

Ainda muito moço, há dez anos, conquistastes com a monografia O melhor meio de disseminar o ensino primário no Brasil o maior dos três prêmios Francisco Alves de nossa Academia, classificando-a a Comissão composta de Coelho Neto, Fernando Magalhães e Augusto de Lima como “obra de arte e de pensamento”. Um ano depois, o governo do Pará, cujo ilustre chefe nos honra com sua presença, procurando reais valores para a reconstituição do Estado, que a rajada revolucionária desnorteara, entregou-vos a pasta da Instrução Pública. Vossa administração aumentou de quarenta mil novos alunos o quadro das escolas públicas, provando assim que conheceis, de fato, os melhores meios de disseminar o ensino.

Ocupais neste momento a direção de um departamento federal de Educação, no qual vosso bem inspirado labor é intensamente fecundo.

Em Contos e Lendas do Brasil, feixe de admiráveis vozes da terra e da raça, com o perfume de nossos frutos, têm vossas páginas certo trilho didático, oculto sob a iluminura das folhagens, e as aquarelas dos rios, o qual, sem inoportunismo ou desnaturação da narrativa e sem enjôo do leitor, vos permite falar do Livro dos Vedas, do Gênesis, da mitologia grega segundo Hesíodo, de Rubens, de Corrégio, de Vernet, ou intercalar um trecho histórico como o de Villegaignon ou de Jean de Lery.

Em Mitos Ameríndios, que vazastes na grafia do ainda recente acordo das duas academias, na esperança, como espirituosamente dizeis, de ver o exemplo seguido por nós outros acadêmicos, inveterados na ortografia proscrita, revelais o mesmo didatismo. Prelecionastes com erudito e vanguardeiro ânimo, que vos valeu os elogios do prefácio de Fernando Ortiz, o insigne lendista cubano, acerca das origens de nossos mitos, alguns dos quais, como o unípede saci, vem fazendo alegres traquinadas desde as páginas antigas da História Natural de Plínio, e, por mais que se disfarce em nossa terra com a barretinha vermelha, é o mesmo Juraken, dos Mayas, e o moleque sem vergonha e capenga de outras místicas.

Dizeis no prefácio do Condestável do Império que pretendeis, apenas, fornecer ao leitor “um panorama de ensinamentos para a incerteza da hora contemporânea”, o que mais uma vez demonstra vossa tendência à ensinança.

Fizestes, entretanto, muito mais nessa obra, pois realçastes com vosso estilo vibrante, carregado das cores vivas das telas espanholas, aquela espada da qual com elegância dizíeis: “amanheceu para servir e anoiteceu servindo à causa do Império”. Servir e vencer foi seu destino, como disse ele próprio a seus soldados em Lomas com as seguintes palavras: “Marchemos para o combate que a vitória é certa, pois o general que vos guia até hoje não foi vencido.”

Em Silveira Martins e Sua Época, vossa obra capital, comparável sem exagero à dos melhores escritores do gênero, como Zweig, Ludwig ou Strackey, proclamais que nas biografias não se devem ocultar defeitos, fraquezas ou vícios, porque dos exemplos reprováveis se podem tirar preciosas lições.

Exerceis, assim, com liberdade a crítica histórica na função doutrinadora.

Recorreis para a psicanálise de vossas personagens, a testemunhos de infância, estabelecendo-os no sentido quase dos tests da orientação pedagógica hodierna. Não sois um Pestalozzi. Tão pouco um mestre-escola. Sois didata elegante, servindo à instrução na porcelana fina e bem decorada da suntuosa baixela de vossa imaginação.

Fostes colher as raízes da arborização moral de Silveira Martins num episódio de infância. Havia ele deixado a escola primária porque se recusara a dar a mão à palmatória, e empregara-se numa loja da cidade. Certo freguês pediu-lhe uma boa arma de fogo. O caixeirinho ofereceu-lhe uma garrucha, gabando-lhe a qualidade. O comprador, como é habitual, depreciou-a.

– Não acredita em minha palavra? – pergunta-lhe o menino, acrescentado: – Vai ver se é boa ou não.

E levantando a arma, bateu o gatilho. O tiro partiu fazendo enorme rombo no teto. O freguês saiu a correr. O caixeirinho foi despedido, pois provara falta de vocação para o comércio, ou ao menos, para o comércio de armas de fogo. “Tinha, sobretudo”, escrevestes em vosso livro, “revelado precocemente do que seria capaz para garantir sua palavra.”

Rebuscastes a vocação política de Silveira Martins noutro episódio da meninice, o de sua inscrição no Colégio Vitório. Costumava o diretor Vitório da Costa perguntar ao novo aluno que desejava vir a ser. A essa pergunta respondeu-lhe Gaspar:

– Quero ser ministro de Estado!

O diretor, pachorrentamente, lançou no livro:

– Gaspar Silveira Martins, treze anos de idade. Vocação declarada: Ministro de Estado.

Voltou-se, então, para o menino, e perguntou-lhe:

– Quando fores ministro, que farás de teu velho professor?
– Conselheiro de S. M. o Imperador – replicou o pequeno. – Pode ficar descansado.

Cumpriu a promessa. Quando a 5 de janeiro de 1888 o Visconde de Sinimbu o chamou para a pasta da Fazenda, obteve Gaspar na primeira reunião do Ministério aquele título para seu mestre, e lho foi levar ele próprio, perguntando-lhe talvez:

– Não lhe disse que podia ficar descansado?

Para documentar outro traço de seu caráter, relatais o caso da sentença que, como juiz, exarou nos autos contra um Ministro do Supremo Tribunal, seu superior hierárquico, condenando-o ainda ao pagamento das custas. Não quis o ministro cumprir a sentença e Silveira Martins expediu mandado de prisão contra ele. Escândalo no foro. O tiro partira. O teto da hierarquia ficara furado, e o juiz, censurado pelo ministro da Justiça, demitia-se, perdendo o emprego, como o caixeirinho de outrora. Acompanhou a demissão com o mesmo tom de impavidez com que se recusara a estender a mão à palmatória do mestre, escrevendo: “O menor dos magistrados pode, ao mesmo tempo, mandar plantar batatas ao ministro que a cegueira da sorte, a conveniência dos partidos, a prostração do estado atiraram de trambolhão sobre uma pasta.”

Lendo isso, repetimos no silêncio de nossas almas: Como se modificaram esses climas de nosso passado!

Ides assim, nesse e nos outros vossos livros, com arguta e documentada pesquisa, realizando uma obra psicanalítica de relevante valor como elemento educativo.

Félix Pacheco, referindo-se a vosso estudo de José do Patrocínio, escreveu: “Ninguém dirá da vida do grande jornalista sem recorrer a essa excelente fonte, que é obra fundamental.”

Soubestes desenhar a figura de Patrocínio com seu relevo sentimental e combatente, do berço à apoteose, da apoteose ao apodo, do apodo ao quase esquecimento; Belém, a entrada em Jerusalém, os insultos do pretório de Pilatos e o crepúsculo do Calvário do Messias negro da mais branca das auroras nacionais.

Uma abstração, como a das personagens da fantasia, logra a imortalidade se exprime sentimento ou transe coletivo. Em Patrocínio fundiram-se aqueles dois transuntos da comoção, e causa surpresa estivesse tão-pouco lembrado na época em que surgiu vossa obra para reanimar o culto que a Nação lhe deve. Explica-se, entretanto, aquele deslumbramento. Patrocínio foi a eloqüência tribunícia demagógica, que brilha, fulgura, deslumbra, avassala e, depois da imensa apoteose, se reduz a cinzas. Não veio para a vida como Rui, com a intenção vertical da escalada da glória. Veio, como a planta derramada, para florir na extensão.

Ambos ganharam o altar da veneração pública, Rui como o icônico e Patrocínio como a chama votiva. Rui talhou uma a uma as faculdades de seu gênio nas exaltações do idealismo. E, se bem que a natureza tivesse dado a Patrocínio, como ele disse num de seus arroubos tribunícios, a cor do bronze imortal, pôs nessa aparência de estátua substância apenas inflamável, que devia receber a convergência de raios do espelho ustório de seu destino, para redimir sua raça com a própria combustão. Patrocínio foi empolgante e magnífico como nossa floresta em dia de queimada. Tudo maravilhava naquele incêndio: do pipocar dos bambus ao tombar das árvores gigantescas, do fagulhar das centelhas ao desfraldar das mil bandeiras ardentes das labaredas.

Foi nosso temperamento, nosso tropicalismo, como Rui foi o jardim da Hélade, plantado e aparado dentro de traçado geométrico. Um o tumulto, outro a disciplina; um, a Natureza, outro o diamante lapidado caprichosamente; um a arquitetura, outro o aluvião; um a grandeza assentada na harmonia fundamental, outro a grandeza épica na erupção vulcânica.

Enquanto Rui edificava seu palácio de imortalidade com linhas clássicas, Patrocínio, como o pássaro ao qual chamam joão-de-barro, construía sua casa sem planta, numa forquilha de galhos de árvore, com as achegas que colhia nos vôos da eloqüência dispersiva. Por isso sua palavra tinha de tudo, terra, plumas, pétalas, fios, placidez de lagos, apenas lançados pela viração, ternuras bucólicas e rugir de ventos, sussurros de prece e imprecações de cólera, tudo com as cores da terra brasileira, com o ímpeto de nossas águas, e com a palpitação sanguínea e febril de nossos delírios de liberdade. E por isso teve o poder miraculoso de empunhar as multidões e a própria nação, ditando-lhe o resurrexit de sua raça no milagre repentino do 13 de Maio.

Magistralmente traçastes o ciclo luminoso, e por essa obra, o dileto mestre Afonso Celso, glória astral desta Casa, declarou-vos inscrito nos fastos daquela quadra da História nacional.

Outro dos livros que concorreram para vosso renome é – A Vida de José de Alencar.

Narrais a propósito de suas primeiras leituras o seguinte episódio. Costumava a mãe de Alencar fazê-lo ler em voz alta romances ou jornais, enquanto ela e sua irmã costuravam. Certo dia um sacerdote amigo da família bateu à porta repetidamente e ninguém apareceu. Vinham da sala de costura soluços e lamentações. Receoso de que alguma desgraça houvesse ocorrido, afoitou-se o visitante a entrar. Choravam os três. Alencar, sua mãe e sua tia.

– Que aconteceu? – inquiriu já lacrimoso o sacerdote.
– Coitado, morreu! – exclamou Alencar.

As lágrimas inundaram, também, os olhos do clérigo, que indagou aflito:

– Quem morreu?
– O pai de Armanda – replicam às senhoras, mostrando o romance Armanda e Oscar nas mãos do leitor soluçante.

Entendeis que as tendências literárias de Alencar não provieram da influência dessas diárias leituras, concordando com a opinião seguinte do próprio romancista:

– O dom de produzir, a faculdade criadora, foi a decifração de charadas e de logogrifos que desenvolveu.

Lembro-me neste passo da resposta que vos dei, quando tive o prazer de vossa primeira visita. Trazíeis dois fotógrafos, que assestaram contra mim, desprevenido e inerme, seus aparelhos de fuzilamento. Vínheis entrevistar-me em nome de uma revista ilustrada, O Malho, à qual me prendem afetuosos laços. Perguntastes por que me fizera escritor.

Colocando-me de jeito a esconder dos agentes fotográficos da glória um terço, ao menos, de minha prematura calvície, mostrei-vos um sapotizeiro, carregado de frutos, que crescera à beira da janela de minha biblioteca, e disse-vos: o escritor produz, como a árvore dá frutos, pois nasceu predestinado a esse fim.

Não estou, pois, com o parecer de Alencar, que lhe tenha surgido Peri da floresta dos logogrifos, ou Ceci de um bosque de charadas.

Quem não traz na alma a divina faculdade, conseguirá conformar qualquer arremedo de arte pela técnica. Faltará, porém, a esses produtos do engenho o poder de transmissão.

A Alexandre Dumas perguntou certo candidato a autor dramático que era preciso para escrever-se uma boa peça em três atos.

– Cinco cadernos de papel almaço, pena e tinta! – respondeu o dramaturgo.

Naquela entrevista me revelastes que desde os albores de vossa inteligência se voltara ela para as letras, como mais diante relatarei.

O mesmo comigo se passou. Na meninice, quando os companheiros ambicionavam o dinheiro para comprar guloseimas, privava-me delas para empregar os poucos níqueis que semanalmente recebia em comprar velas, para ler à noite, às escondidas, romances e versos. Para evitar essas vigílias o gás me era cortado, pouco depois de me recolher, em seguida ao terço, rezado em comum, ao fim do qual beijávamos respeitosamente as mãos de nossos pais, e deles recebíamos o “Deus vos abençoe”, que até hoje nos acompanha com o pálio de suas graças.

Eu tinha, então, treze anos. Logo que a casa adormecia, tirava romances e vela de um esconderijo e lia até me vencer o sono. Quantas corridas ansiosas, quantas maratonas disputei com o texto dos romances para aproveitar a luz expirante da última vela! Muitas vezes, na altura de impressionante transe, a vela rematava-se, desmanchando-se em amoedada mancha branca de estrias verdes na palmatória de metal amarelo do castiçal. Devorava, então, as linhas e saltava as páginas buscando saber se o assassino desferira o golpe, se a virgem se salvara e se o bandido fora preso e executado. Certa vez pareceu-me que a vela me compreendera a ansiedade, pois reacendeu-se num fio solto do pavio e deu-me alguns lampejos fátuos que me deixaram ver a chegada sempre tardia da polícia.

Pobres velas, fostes minhas primeiras amigas, aclarastes-me os primeiros passos neste sonho que ainda não logrei realizar!

Provocastes também meu primeiro delito. Fui criado num ambiente familiar de extremo rigorismo. Meu pai foi o caráter mais austero que conheci. Sua passagem pela terra teve a limpidez da água pura que corre apenas sobre areia e cascalho. Era de severidade extrema em pontos de moral.

Ora, certa noite esgotou-se a última vela quando uma hemoptise deixara semimorta a Dama das Camélias, cuja história de amor me enternecia profundamente. Resolvi passar o resto da noite em claro à espera da prima luz da madrugada para acompanhar-lhe a comovente agonia, ou a salvação. O sono, porém, venceu-me. Quando acordei, era tarde. Durante o dia não me era possível ler romances. Procurei vender o único bem disponível, um Terceiro Livro de Leitura desmantelado, para comprar uma vela. Nenhum alfarrabista o quis.

Chegou a noite, a hora deliciosa de viver minha segunda vida de todos ignorada.

Enquanto rezávamos o terço, aparecia-me a pobre Margarida Gautier expirante.

Lágrimas enchiam-me os olhos. Houve um momento em que quase lhe disse o nome em vez da réplica à ladainha.

Quando após a reza me ia recolhendo, vi no corredor um maço de velas em cima de um aparador. Pareceu-me ouvir da pobre apaixonada de Armando Duval:

– Apanhe uma dessas velas e venha consolar-me. Ninguém costuma contá-las.

Não sabia Margarida Gautier que estávamos de criada nova, animada, nos primeiros dias, como todos os empregados, de excessivo zelo.

Já havia subido degraus da escada, quando lhe escutei a voz:

– Falta uma vela.

Encaminhou-se em seguida, para a sala, chamando minha mãe para a verificação da denúncia.

O pavor de que meus pais descobrissem aquele gravíssimo delito deu-me agilidade e leveza para num salto repor a vela em cima da mesa e subir os degraus de mansinho.

Chegou-me, então, a exclamação de surpresa: se deu ela por vencida, pois recolhendo-se a seu quarto insinuou que alguém havia reposto a vela em seu lugar.

Ouvi passos na escada. Era minha mãe, o ser de infinita bondade com que Deus glorificara as virtudes de meu pai e nos abençoara a vida. Com o tom de carinhosa e inesquecível ternura de suas repreensões, disse-me:

– Meu filho, nunca mais faça isso.

Verguei a cabeça vexado, murmurando que a tirara para estudar uma lição difícil.

– Não deve mentir, também, meu filho.

Estendeu-me, então, uma vela e carinhosamente continuou:

– Tome-a. Não leia, porém, seus romances até muito tarde.

Quis colher-lhe a mão e pedir-lhe perdão com as lágrimas de minha alma, que, ao escrever estas linhas, me voltaram aos olhos, mas como visão beatífica ela desaparecera depois de ter dado à vocação do filho a luz de seu amor...

A vocação de José de Alencar manifestou-se também muito cedo.

Nasceu o romancista em Mecejena, onde faz nascer Iracema. As duas almas miraram-se no espelho das águas da mesma lagoa, dizeis vós, “a que veio chorar em suas margens como garça viúva” e a que lhe escreveu o romance, “forrando de felpa o uru de palha que tecera para a fiel jandaia”.

Como Édipo, enfrentou Alencar a política, mas ainda aí não revelou o gênio charadístico do filho de Jocasta: não decifrou o enigma da esfinge imperial e foi por ela devorado.

Alcançou os sumos postos da política sem poder conservá-los, porque eles demandam a decapitação da personalidade a bem dos interesses partidários. E José de Alencar respondia aos poderosos com a altivez dos fortes. Quando Pedro II o aconselhou a desistir da candidatura a senador, porque ainda era muito moço, replicou-lhe:

– Então Vossa Majestade devia ter recusado a maioridade...

É talvez anedótico esse episódio, reportado por um jornalista ao Visconde de Taunay, mas as anedotas a respeito dos grandes homens são espelhos em que a popularidade lhes reflete e define o caráter.

Outra de vossas três obras premiadas por esta Academia é Feijó ou o Demônio da Regência. Profusa, embora, das galas de vosso estilo, ressente-se ela da carência documental com que lutaram os que vos antecederam no estudo da vida do grande paulista. A popularidade de Feijó limita-se, fora do círculo dos eruditos, a três ou quatro episódios, como o do projeto do reconhecimento da independência das Capitanias, quando São Paulo o enviou às câmaras de Lisboa, a réplica às increpações feitas às câmaras municipais paulistas na Assembléia que se reuniu após o 7 de Abril, a ordem ao Major Lima e Silva – leve tudo a ferro e a fogo – para a repressão do levante de Frias, a luta com os Andradas, a frase com que no cerco de Sorocaba, doente e quase inválido, profligou os fugitivos – correi, covardes, eu aqui fico para defender-vos! – e, finalmente, sua resposta a Caxias quando, ao removê-lo para a prisão, lhe perguntou se queria levar alguma coisa consigo.

– De nada mais preciso. Basta-me uma esteira e um travesseiro.

Ao ex-Regente, ao guardião da ordem e da disciplina, aprisionado como cabeça de motim, bastavam, de fato, uma esteira e um travesseiro para morrer gloriosamente nas páginas de nossa História.

Soubestes, porém, preencher aquela deficiência documental com a descrição dos ambientes. No Paço de São Cristóvão, desenhais ao lado das figuras de viscondessas e marquesas, que sabiam fazer com perícia bispos, arcebispos e ministros, o das vaporosas sílfides de vestidos dame blanche de cinturinhas altas, que desciam dos coches no cenário verde-ouro da Quinta iluminada, como flores raras de graça humana, nas quais a realidade invadia as lindes do sonho e os penetrais da mais rica fantasia.

Nos salões fazeis desfilar austeros e imponentes vultos, o Conde de Palma, os marqueses de Itanhaém, de Maricá, de Queluz, de Paranaguá, o Visconde de Cairu, Inhambupe, o Barão de Santo Amaro, Inhomerim, o Visconde de São Leopoldo, os veadores, os reposteiros, os guarda-roupas e os estribeiros de Sua Majestade, os ministros de Estado, os diplomatas, os desembargadores e toda a aristocracia. Dançam os moços fidalgos com as damas de honor. A imperatriz, cercada de camareiras e açafatas, esconde num sorriso a resignada melancolia de sua alma traída. A luz doirada e abundante delira nos cristais e nos espelhos e ri nas lágrimas copiosas dos lustres, como se rutilante orvalho dela própria chovesse. Nas voltas e contravoltas dos cotilhões, nas mazurcas, nos minuetos ou no embalante volutear das valsas bailam loiros reflexos nos prismas das jóias num bando de asas de ouro a beijar o colo das mulheres e a florir-lhes os lábios em lânguidos sorrisos.

As horas decorrem como os minutos de um sonho, e esses minutos se contarão como vidas inteiras de saudade.

A mesma qualidade descritiva e colorista revelais em Imagem do Rio, obra com a qual obtivestes o primeiro prêmio num concurso de propaganda de excursionismo, revelando-vos com ele o campeão dos prêmios literários no Brasil.

Construístes nesse livro a arte com a substância objetiva, molhando o pincel nas tintas da nossa paisagem, do verde oleoso da floresta ao verde luminoso das águas, com a inteira gama dos arco-íris, que aquela a estas conjuga em certos dias ainda úmidos dos últimos orvalhos da chuva.

Fizestes assim do volume de propaganda uma imagem de mestre colorista, podendo repetir, quando começastes a traçá-la, os versos do poeta do Vittoriale, referindo-se ao panorama:

Accordato io mi sono giá con lui
Ed ei mi matterá colori fini.3

Vivemos literalmente expatriados desde a educação escolar desnacionalizante – em parte entregue a colégios estrangeiros – até aos cursos universitários com livros forasteiros. Quando se nos deparam ambientes bem nossos, respiramo-los com avidez como se hauríssemos nuns dias de férias, fora do confinamento e do tumulto dos grandes centros, o ar fresco e balsâmico dos campos. Que encanto oferece, então, o ressuscitado cantar do galo pela madrugada depois de um sono não interrompido cem vezes pelas buzinas dos automóveis, anunciando-nos um dia com a Natureza, um dia de satisfação, embora provisória, de nossa tendência substancial à reintegração cósmica.

No romance Seiva, revelando-nos qualidades de novelista, fazei-nos viver horas encantadas na floresta amazônica. Na bacia do Amazonas encontram-se os mais ricos espólios de nosso mitismo indígena, que soubestes trabalhar com poética inspiração, pois como poeta começastes, com vosso muito transcrito soneto: “O rouxinol”, e com os volumes InquietaçãoDança dos PirilamposCoroa dos Humildes e Arte de iludir. Daquele mitismo nos destes preciosa coleção nos Contos e Lendas, e a respeito deles nos elucidastes em vossos vocabulários amazônicos.

Uma das mais sugestivas daquelas lendas é a da uiara, símbolo da união da Natureza e do homem. Essa formosa moça da imaginação ribeirinha surge à flor dos rios, nas noites claras, para saciar a sede de amor humano. Coberta de algas a nudez doirada, os seios túrgidos afestoados de laços verdes, como se deles brotasse a vida vegetal, ela mal emerge da superfície líquida, a cuja flor faz boiar seu canto, que se vai elevando das águas como se suspirasse saudades sobre a abemolada pauta de seu dorido apelo. A voz assim infiltrada, de feitiços e empolgante de mistérios, distende-se nas praias numa rede de cairo mais fino do que o da trama das sombras das galharias desenhadas na palidez dos barrancos exangues.

Os moços enamorados acodem à beira do rio, saltam para as montarias e batem os remos curtos na água no ritmo precipitado de seus próprios corações, singrando o rio para prosseguir aquela esteira de amavios, em que se confundem os aromas selvagens da volúpia florestal e da torturada e flébil melodia dos arrulhos. Esconde-se, então, a uiara, na vizinhança das oiranas. Não tarda aproximar-se o batuque do jacumã na água espumosa. Lá vem a montaria com o moço enfeitiçado, arrastado por aquele longo e estuante apelo sexual. Entra pelos meandros do rio onde a uiara finge esquivar-se, chamejando lascívia entre os esplendores da noite tropical. Galhos e folhagens densas entrelaçam-se em arcadas festivas, das quais descem os ramos floridos das orquídeas. Vai realizar-se naquela catedral maravilhosa a núpcia da lenda e da realidade, no delírio palustre. A luz baça da lua, engastada no céu como opala em campo de safira, tem a melodia das pupilas que agonizam num transe fecundo.

A uiara continua a cantar. Fazem-lhe o contraponto vagos gemidos de cruzamentos na mataria densa.

O moço perdido de amor apressura-se, febril “da promessa de revelação e de espanto”, em busca da voz que se eleva do matupá, do leito de seda verde das caatingas do igapó. Ele suspira pela carícia mortal, pelos beijos delirantes da uiara, por aquela nudez da frescura do rio e do perfume da mata, embebida de volúpia.

De repente, sacode-lhe os membros estranho tremor. Fagulham-lhe diante dos olhos chamas cegantes de esplendor. Queima-lhe as carnes a febre do palude, que é o respirar da uiara. Cai n’água o jacumã, e a corrente arrasta-o como um destroço. Abre-se no ar um clarão e sacudindo as algas para desvelar a beleza capitosa da nudez, a uiara surge à borda da canoa, colhe os lábios ao moço num beijo alucinante e carrega-o para o fundo do rio. Fecham-se sobre eles as águas, e fica a montaria a boiar tristemente no rio como o epitáfio daquele delírio, a vitória-régia da flora amazônica.

Transpassando as águas, já agora tingidas de sangue, ouve-se de novo a encantadora voz. A uiara insaciável de amor emerge, outra vez, das águas e vai emboscar-se nos capins dos brejos.

A sedução não se interrompe. Outra montaria virá e outro moço enamorado. E a Natureza vigorosa continuará a absorver o homem.

Desse símbolo formoso devemos extrair um programa de sacrifício, vendo na uiara a alma integral de nosso Brasil, chamando-nos a todos nós a seu amor. O batuque febril do jacumã n’água seria o palpitar de nossos corações no delírio sagrado. E quando essa uiara nos surgisse não das caatingas da dissimulação dos instintos egoístas, mas da inceridade de nossa inteira abnegação, brotando da terra majestosa ou esculpindo-se nas pompas de luz e de esplendor de nosso céu incomparável, e nos pedisse a vida, devíamos acudir a seu apelo com aquele mesmo delírio do moço enfeitiçado.

De não menos amor precisam as pátrias neste momento trágico da humanidade em que os povos fortes transpõem as fronteiras dos fracos, rompendo como as amazonas os arcos enfeitados com o papel dos tratados no circo em que se transformou o nobre campo do direito internacional.

Ao terminar, apraz-me reviver certo episódio. Há 27 anos era visto diariamente na Rua da Indústria, em Belém do Pará, certo menino de tenra idade, sentado num caixão e sempre embebido na leitura de um livro.

Estava ali de guarda à oficina de ferreiro do pai, que, devido à crise amazônica, se via forçado a procurar serviço a domicílio. Fora retirado do colégio por falta de recursos. Apaixonado pela leitura, pedia livros a uns e a outros, e ficava ali, na rua, a estudar sem mestre. Era um mendigo da inteligência em belo exemplo de perseverança. Não estendia a mão à esmola. Quem esmolava era o cérebro na ardente fome do saber.

Linda e empolgante vocação que se construía como a de Mussolini, também filho de ferreiro, sem orgulho, apanhando no que lhe davam os materiais dos palácios encantados de seu sonho de arte. Trouxe-lhe alguém um volume de Rui Barbosa. Que preciosíssimo presente!

O menino entrou por aquelas páginas como o moço enfeitiçado dos rios de sua terra, e tanto se absorveu na leitura que alguns ladrões entraram na oficina paterna e dela saíram carregando pesado fardo, sem que ele os visse.

Com as mãos cheias de ouro, que lhe podiam importar alguns quilos de ferro!

O pai ao regressar chamou-o a contas. O filho leu-lhe uma daquelas páginas com tal calor que lhe absorveu e encantou a atenção. Se voltassem os ladrões naquele momento, teriam levado a oficina toda...

Enternecido com a vocação do filho, disse o ferreiro:

– Vou fazê-lo voltar aos estudos ainda que deva reduzir meu próprio alimento.

Aquele ferreiro chamava-se Orico. A morte privou-o de assistir ao triunfo do ouro que modelou na forja de seu coração.

Tendes, entretanto, a felicidade de ver nesta sala vossa mãe estremecida assistir ao prêmio de todos aqueles sacrifícios, ao tomar o filho assento na mais alta corporação literária do Brasil.

O menino de Belém do Pará vem substituir, dezessete anos depois, o autor dos discursos que, então, o embeveceram. Realizastes assim, Sr. Osvaldo Orico, o que na remota época vos teria parecido alucinação do mitismo amazônico, um delírio palustre, como o da uiara. Nessa Cadeira entrais hoje de guarda a uma oficina mais rica do que a de vossa meninice, a oficina do ourives que lavrou as supremas jóias da língua pátria contemporânea.

Pôde vosso pai transformar o ferro em ouro pela alquimia da ternura. Esperamos que o filho, na oficina do mestre ourives, transforme os ouros de seu espírito em novas jóias de fino lavor e subida inspiração, para ajuntá-las à coroa de esplendores com que as letras e as artes vêm criando no vitral dos nobres e grandes feitos da inteligência a imagem da glória imortal de nossa pátria.