Senhores acadêmicos,
esta Cadeira 10 tem um passado glorioso, já longo. É uma das sete mais antigas da Academia Brasileira de Letras: tem quase duzentos anos. Nasceu no cai-o-pano do século XVIII, nesta boa e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Nascia a 8 de outubro de 1799 com Evaristo Ferreira da Veiga, filho de Francisco Luís Saturnino da Veiga, chegado ao Brasil, com 13 anos de idade, trazendo de Portugal uma singular vocação de brasileiro e um privilégio que nem sempre o destino reserva para muita gente: o de ser pai de um dos maiores brasileiros do seu tempo.
Mestre-escola e modesto livreiro, o velho Veiga, não tão velho assim, transmitiu ao filho, muito cedo, tudo o que aprendera na vida e nos livros, inclusive a arte não fácil de ganhar dinheiro a vender livros. Não se limitaria Evaristo, porém, às lições que o pai lhe dava. Foi buscar num seminário eventual e em mestres avulsos quatro ou cinco línguas que o ajudariam na vida, do Inglês ao Latim. E soube frequentar, acima de tudo, como assinala Otávio Tarquínio de Sousa, uma Universidade exclusiva: as estantes da loja paterna, onde muito jovem foi caixeiro e onde, como leitor cativo, mergulhava, nas horas sem freguês, no que de mais quente chegava da Europa em matéria de livros. Aliás, a julgar por anúncios nos jornais da época, é surpreendente - e até lisonjeira para a cidade – a presença de títulos em Inglês, Francês e Italiano em balcões da Rua da Alfândega e da Rua dos Pescadores, embora não menos surpreendente fosse a presença de um caixeiro e leitor da categoria de um Evaristo da Veiga.
É importante insistir nesta Universidade livre à margem do trabalho, porque a Livraria vai ser a coluna-mestra de toda a vida de Evaristo da Veiga. Ele, com menos de 30 anos, já é o grande jornalista de sua terra. Foi o primeiro a conquistar projeção nacional. Sem jamais ter andado por lá, muito jovem, elege-se deputado pela Província de Minas Gerais. A explicação? Simples decorrência de seus artigos na Aurora Fluminense, folha que imantava, de Norte a Sul, as classes mais esclarecidas – ou esclarecíveis – da jovem Nação. Era aquele – e é quase ofensivo relembrar... – um tempo sem linotipos, offset e demais parafernália jamais sonhada pelo avô Gutenberg. Tempo de não rádio, não tevê, não telex. Tempo de não aviões, não foguetes. Tempo, quando muito, de belos cavalos de galope ilustre, diligências gentis de fácil desconjuntar nas estradas por haver, de veleiros românticos por águas inquietas a levar mensagens.
O Brasil daquele tempo era, na prática, muito mais vasto que o dos nossos dias... Nele, as distâncias mediam-se não em milhas ou léguas, mas em termos de tempo de locomoção: dois dias, duas semanas, dois meses, dois anos. Hoje ainda pode acontecer, não vamos negar, mas na ocasião era a regra. A opinião emitida no Rio era esperada a médio e longo prazo nas províncias perto ou longe pelos seus opositores ou parceiros. A informação não passava, inúmeras vezes, de mero capítulo ultrapassado da História, quando chegava ao seu destino.
A notícia, por exemplo, da morte de D. Pedro I em Portugal, já reduzido a Duque de Bragança, morte, como a vida o fora, de tão grande importância na vida brasileira e na atividade político-jornalística de Evaristo da Veiga, só aproava ao Rio de Janeiro depois de setenta e vários dias pelas incertezas do mar. Deixara Lisboa na última semana de setembro de 1834. Navegara todo o mês de outubro. Foi sacudida por ondas e tempestades em novembro. Chegava aqui na primeira semana de dezembro. E só então iria mudar e tranquilizar em parte a Política local, toda ela voltada ainda, a favor ou contra, para o nosso primeiro imperador.
A certas províncias os jornais cariocas – Aurora Fluminense, a Malagueta, o Mutuca, o Jurujuba, o Jornal do Commercio – chegavam por vezes com atraso maior.
Mas a presença da Aurora Fluminense, jornal de inédito bom senso, construtivo argumentar, serena linguagem no fragor das paixões, não se enfraquecia por isso. Pelo contrário! O jornal já fizera, à distância, deputado por Minas Gerais o seu diretor. Outros deputados fizera e fazia, tal a autoridade firme da palavra que chegava de longe.
Grande jornalista foi ele, mestre isolado para os contemporâneos, mestre permanente para os jornalistas ainda hoje.
Deputado, várias vezes se reelegeu... Derrubou governos. Sustentou governos. Em verdade, seu feitio era mais de construir que de derrubar. Foi homem de fazer ministros e regentes. Para ele, se voltava o País aflito nas horas aflitas. Foi traído, bajulado, liderou. Foi odiado também. Politiqueiros e pelotiqueiros ladravam-lhe no encalço. Calúnias, insultos, injúrias anônimas ou públicas latiam-lhe aos pés. Ele revidava e sorria. Juravam matá-lo. Uma vez o tentaram. Um dia, um tiro de pistola soa. A bala vem, o sangue jorra. Atingido no rosto, Evaristo, entre colegas ou fregueses, toma de um livro, estava assustado. Conseguiria ler? Conseguiu. Não estava cego. Volta-se então para a rua, de onde o tiro partira, fala com desprezo: argumentos como aquele nunca o fariam calar...
O atentado acontecera em pleno dia, alcançara o grande jornalista na loja de seu antigo e presente ganha-pão, prolongamento e garantia, mesmo, de sua vida pública. Quando a malta, lá fora, já não tendo o que dizer e ainda sem coragem para o tiro, hesitava na escolha do insulto, os inimigos lançavam-lhe em rosto aquela pecha:
– Livreiro!
O que escandalizava muita gente era aquilo: ser livreiro, mero livreiro, deputado que outro título não tinha...
Assacar pecha como essa dava menos trabalho que a calúnia: não era preciso inventar. Nem provar. Bastava passar pela Rua dos Pescadores, 49. Balconista – a palavra ainda não fora cunhada... – para uma sociedade de senhores de escravos, barões da terra e já pululantes fidalgos de fornadas recentes, era mais humilhante que qualquer outro labéu. Trabalho de loja não passava de ocupação degradante, coisa de francês recém-chegado, com seus perfumes ou perucas, de inglês materialista vendendo mercadorias ao bater do martelo. Na realidade, trabalho, de um modo geral, não era “bem”.
Revivia, no Brasil que mal começava, a mentalidade satirizada por Gil Vicente em Portugal três séculos antes. Destino de escravo, de gente inferior, falta de imaginação de mercadores sem avós conhecidos. Balcão, principalmente, era de envergonhar filhos e netos. Balcão não dava status. Aquele rapaz que não estudara em Coimbra, que se mostrava insensível à primeira grande corrida nacional por pastas e postos (ministérios e mordomias), não passava de uma excrescência constrangedora aos olhos da sociedade engatinhante. O rapaz tinha títulos? Poucos, na realidade, ostentava. Quais? Honestidade... Grande coisa... Honesto, qualquer um podia ser... Independência? O problema era dele... Tudo bem... Nada contra. Mas que não pretendesse governar ou tentar governar o País escondido atrás de um reles balcão mercantilista. Até homens da envergadura de um visconde de Cairu e de um General Abreu e Lima, veterano das guerras de Bolívar, insistiam em chamá-lo de “sevandija livreiro”, vil inseto plebeu, sem perceber que estavam proclamando, com as próprias palavras com que o pretendiam negar, a insofismável altitude por ele alcançada.
Orgulhoso da profissão que lhe dera o sustento e lhe dava autonomia, permitindo-lhe enfrentar as tentações do poder e os riscos da impopularidade, Evaristo timbrava em alternar a Câmara com a livraria, o jornal com o balcão, o “não apoiado” parlamentar com o “quer que embrulhe” do caixeiro eventual.
Nunca foi um profissional da Política no sentido moderno. Embora para a Política nascido, jamais soube tirar dela qualquer proveito pessoal. Poucos imitadores teve no seu tempo, bem poucos teria em nossos dias... Nunca se arriscou a viver só de jornal, ainda que a fidelidade de seus leitores e assinantes a vinte, trinta ou cinquenta léguas, a duas, três, dez semanas de distância, bastasse para manter a Aurora Fluminense, façanha que hoje só os anúncios das multinacionais tornam possível.
Mas o que acima de tudo singulariza o balconista de livros acusado ou reconhecido como condutor da Política Brasileira pelos seus contemporâneos, amigos ou não, é saber que, sem jamais transigir, sem comprometer a sua verdade com o desejo de agradar ou pelo receio de desagradar, sua palavra foi a mais tranquila do Jornalismo do seu tempo. Evaristo foi sempre, no jornal ou na tribuna, serenidade e despaixão, culto frio da verdade numa das horas mais difíceis da nossa evolução como povo. Ninguém mais seriamente preocupado com os desencontros e descaminhos daquelas duas décadas que precederam o Segundo Reinado. Nenhuma voz mais objetiva, mais calma, nenhum apelo mais teimoso ao raciocínio. Ninguém com desprendimento maior. Ninguém com igual coragem para perder até seus maiores amigos, se tivesse de optar entre o amigo e a causa pública. Principalmente, se era amigo no Poder. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o padre Diogo Antônio Feijó, o regente que ele tanto ajudara a subir. No dia em que Evaristo sentiu que já não havia, no paulista de espinha indobrável, condições de continuar, confirmando, no turbilhão daquelas horas, o que dele tinha dito e previsto, na campanha que o levara ao Poder, Evaristo não teve a menor hesitação. Sofreu com o amigo, rompeu com o regente. Era a sua maneira muito pessoal de ser amigo: tinha que ser antes brasileiro.
Vida não longa, porém, foi a sua. Apenas 38 anos. Menos um pouco. Vida pública, praticamente dez anos, pouco mais. Quase nada em quase quinhentos anos de História. Mas vinte, cinquenta, cem anos da vida nacional foram marcados e preservados pela palavra sem barulho de voz, moderada, moderadora, aliciante, sem brilho maior, sem galas de estilo, desse homem que não apareceu no cenário político do País apenas para acabar nome de rua.
Osvaldo Orico, num estudo notável sobre o Patrono da Cadeira 10, evoca um dos momentos cruciais daquele período. É o dia em que o regente Feijó convoca os seus amigos mais chegados para uma comunicação da maior gravidade, que alguns, no seu íntimo, temiam. Ele estava cansado e desiludido. O desnorteio geral envenenava os seus dias. A paralisia, pouco a pouco, avassalava o seu corpo. A Política o enoja. Feijó resolvera, portanto, renunciar ao seu alto posto em caráter irrevogável. Alguns já esperavam aquele gesto. Ninguém estava de acordo, porém. Todos resistem. Em vão, apelam para o patriotismo daquele homem de “tenacidade vertical”. Ele não cede. É irredutível. Seu capítulo está encerrado. A Regência acabara. A sua, é claro. Vai regressar à sua província. Não mais Rio, não mais Corte, não mais caos, não mais aquela Política, aquela Câmara. E como que resumindo tudo:
– Nunca mais verei essa Câmara, onde falta o Evaristo!
É que o País estava um pouco menor. Mais que o País, a Câmara. Poucos dias antes, Evaristo morrera...
Na simplicidade de suas palavras, do alto de sua autoridade moral, Feijó acabava de pronunciar a primeira consagração póstuma do tribuno diferente. E o que tornava mais eloquente esta consagração era o fato de partir ela de um homem no Poder sobre o homem que o ajudara a subir, mas que pouco antes dele se afastara.
Mas o tribuno excepcional e o jornalista que deixou na Aurora Fluminense um padrão para as gerações futuras receberia a sua mais definitiva consagração a quase um século de seu nascimento. Foi quando Rui Barbosa o escolheu como Patrono da Cadeira que viria ocupar na Academia Brasileira que então se fundava. Enquanto houvesse esta Cadeira 10, estava de pé um compromisso de honra, assumido pela que seria a maior Instituição cultural do País: a obrigação de periodicamente lembrar às novas gerações que este País teve um homem da grandeza de Evaristo da Veiga. Quem foi, quando foi, quanto foi, como foi... Alguém que, do ângulo de visão desta Casa, deveria ser olhado não apenas como Patrono de uma Cadeira, mas de todo o Jornalismo Brasileiro.
A simples escolha, feita por quem a fez, vale como o supremo elogio de Evaristo e – por que não? – como o supremo elogio comum.
Aquele Amazonas que foi Rui Barbosa, durante mais de meio século presença mágica nos diversos territórios da afirmação nacional, que se agigantava em todas as direções, transpondo fronteiras, empolgava, em casa e fora, as multidões. Homem, torrente, catadupa, vendaval, tufão, ele é a própria paixão em todos os seus gestos. Escolhe, porém, como Patrono, alguém que aparentemente é a inesperada despaixão, o lago manso.
Tão diferentes, tão da mesma cepa...
O Evaristo que se multiplicou pela preservação da unidade nacional, pela defesa de um incrível patrimônio de milhões de quilômetros quadrados, milagre nas tempestades do hemisfério Sul, que sonhava não somente com assegurar e consolidar a independência recente do Brasil, mas com a independência ainda hoje por se afirmar do homem brasileiro, não ficaria isolado. Ele, que foi um dos pioneiros do pensamento abolicionista, campeão de todos os direitos humanos, prolonga-se na palavra de Rui, que durante não dez, mas cinquenta anos, não só no manuseio dos problemas nascendo, mas dos já maduros – e quantas vezes trágicos! – soube colocar a serviço do Brasil uma cultura não feita ao acaso de leituras ocasionais, mas no lento meditar do gabinete.
Sob certos aspectos, Evaristo vai se realizar plenamente no homem que o escolheu como Patrono. O que era apenas clarão luciluzindo no caminho da emancipação é campanha organizada, apaixonada, apaixonante, de longos anos de tribuna e jornal na vida de Rui. A unidade nacional, sonho maior do primeiro, tem na voz poderosa de Rui um paladino sem par. E as liberdades do homem, os direitos do homem, pelos quais os homens ainda agora lutam quase em vão, ganharam, nas mãos e na voz do autor das Cartas de Inglaterra e “Oração aos Moços” um manejar e tonitroar ainda hoje a sacudir os ares.
Mais de cinco decênios de longo e insano labor estão aí para relembrar esse gigante, voz pioneira ou grito maior nos campos da luta quase inútil, mas bela, do homem pelo destino dos homens. É só respigar na obra imensa. A campanha civilista, a revolta contra as ditaduras, a luta pelas liberdades fundamentais, a batalha pela igualdade jurídica das pequenas e das grandes nações, onde houver problema, crime, ameaça, opressão, mão de injustiça, onde houver, em nossos dias, um atentado qualquer aos direitos do homem, sim, é só respigar na obra de Rui: o protesto já estava lá, aquela bandeira já se erguera no espaço. E é importante lembrar que em nossa Língua e em nossa América a primeira grande voz que se ergueu por ocasião do Affaire Dreyfus foi a de Rui.
É verdade que no Rui chegado até nós, tão vivo ainda, há sempre lugar para pequenos cuidados de limpeza de estátua. Especialmente no que foi inventado ou idealizado pela imaginação popular. O folclore de Rui tem ingenuidades que poderiam ser retocadas sem qualquer irreverência. As lendas se multiplicavam, tangidas pela admiração popular. A do Rui poliglota, para citar uma delas. A Águia de Haya tinha de ombrear pelo menos com os porteiros dos hotéis de cinco estrelas. Lembro-me de ter ouvido na Paraíba, na feira de Campina Grande, há trinta anos, um camelô fabuloso. Para atrair a atenção de seus fregueses, aos quais pretendia vender um xarope milagroso, bom para fraqueza de homem, ele falava em Rui Barbosa e exaltava o seu gênio e as muitas línguas em que era capaz de se dirigir aos homens de todas as raças. Falava Inglês, Alemão, Chinês, Turco, Persa, Holandês, falava Russo, (“não era comunista, meus senhores, só falava a língua...”) conhecia quase todas.
Esse Rui folclórico, de enciclopédia vendida em fascículos, que colocava tabuleta na casa em que foi viver, exilado na Inglaterra, oferecendo-se para dar lições de Inglês (a lenda nunca esclareceu se a novos exilados brasileiros, se aos próprios membros da família real), esse Rui que triturava, na língua do aparteante, as objeções que lhe levantavam na Conferência da Paz, no fundo era uma forma de desabafo de compensação para um povo frustrado que se vingava de seu não saber, de seu não ter aprendido, de seu não ter podido aprender...
Ele fora escolhido para saber em nome de milhões de analfabetos, entre os milhões de sem-escola do seu tempo...
E tão alto subiu o seu nome, não só na imaginação popular, mas entre as camadas mais cultas, que, ao pensar na Academia, muitos ironizavam: quando ele morrer, a vaga vai ficar em aberto, não será preenchida.
Realmente, não seria fácil preencher. Alguém que reunisse todo o seu virtuosismo em tantos terrenos (falava até a língua do cão, dizia o meu camelô de Campina Grande...) ninguém conhecia, quando o gigante caiu. A vaga ficaria a descoberto? Foi quando apareceu um candidato que tinha com o Mestre pelo menos uma afinidade essencial. Podia ser uma só, mas convencia: o mesmo amor, o mesmo culto à língua em que Rui escreveu, falou, quebrou lanças, derrubou barreiras, formou e municiou seu exército de milhares e milhares de páginas, muitas delas imortais.
Esse homem foi Laudelino Freire. Linguista ilustre, pesquisador emérito, com várias obras publicadas, tinha em preparo uma que seria monumental, o seu Dicionário, e era um campeão dos estudos linguísticos através da Revista de Língua Portuguesa, que só ela já o creditava para bater às portas desta Casa. Foi assim que ele bateu. Foi assim que as portas se abriram com honra. Deixou ele um trabalho sobre o próprio Rui que sempre deverá ser lembrado. Mas era tão intenso o fulgor da estrela de Rui, tão grande a irradiação da sua personalidade que o escolhido para saudar o novo acadêmico, Aloísio de Castro, num discurso de recepção de quinze páginas, tem oito dedicadas a Rui, complementando com brilho o que Laudelino dissera.
O amor já não apenas à Língua Portuguesa, mas à própria Academia Brasileira de Letras, foi a bandeira, programa de vida, que muito cedo ergueu Osvaldo Orico, inspiração e aspiração do seu caminhar desde os anos do começo do século e desde o seu começo de vida em Belém do Pará.
De família modesta – ele seria o primeiro avô ilustre da família –, desde muito menino Osvaldo Orico sonha com um lugar na Casa de Machado de Assis. Descobriu, ainda menino, que, desde a morte de José Veríssimo, um dos gigantes do passado acadêmico, outro paraense não tivera ingresso na Academia Brasileira de Letras. Descobre e resolve... Esse paraense vai ser ele! Problemas? Claro que havia... Um deles: chegar antes que outros paraenses chegassem (e sempre os houve em condições de chegar...) Outro mais: fazer os livros. Até que era fácil... O vencedor de todos os torneios literários, o orador cativo de todas as turmas escolares (mais tarde seria, na opinião de muitos, o mais brilhante orador desta mesma Academia), o poeta de todas as explosões do coração já nem pensa em ultrapassar os companheiros de estudo, os colegas de faixa etária. Era preciso ir mais longe. E ele vai... Quando, anos mais tarde, publica seu livro de memórias, Osvaldo Orico dálhe um título que é exatamente a síntese, com final feliz antecipado, de toda uma carreira vitoriosa: Da Forja à Academia. O título diz tudo. Ele tem orgulho da origem modesta, do ferreiro seu pai de têmpera de aço. Recorda comovido seus banhos nas docas do Reduto e no Igarapé das Almas. Não consegue esquecer o açaí de após o almoço e o tacacá das quatro horas da tarde, nem as velas coloridas do Ver-o-Peso. E tem água na boca ao relembrar as mangueiras pejadas de frutos da Avenida Nazaré, páginas antológicas de uma saudade sensual que envolveria os leitores.
Mas, na velha Belém, saudade até de quem nunca esteve lá, quando evocada por quem lá esteve ou nasceu, o jovem Osvaldo Orico sabe que não poderia ficar, se quisesse atingir o ideal que se havia proposto. Sua realização pedia o Sul. Ele tinha que vir. Não hesitou. Precisava publicar os seus livros. Publicou. Ainda em província, mas a província é São Paulo: está mais perto do Rio. O editor é apenas Monteiro Lobato. Tem 23 anos, quando surge Dança dos Pirilampos. Nova coleção de poemas no ano seguinte: Coroa dos Humildes. Quando, quatro anos depois, lança o terceiro livro de versos, tem nas livrarias três volumes em prosa, já autoridade em matéria de ensino, já orador de voz conhecida. Galga posições rapidamente. É diretor da Instrução Pública no Distrito Federal em 1930. E secretário geral do Estado do Pará em 1936. Nesse mesmo ano, comanda um dos departamentos vitais do Ministério da Educação, no Rio. Está ora no Pará, ora no Rio, ora em Montevidéu em missões oficiais. É logo nome nacional. Todo aquele ir e vir, viajar e fazer, porém, é apenas detalhe quase à margem. O que ele é, o que apenas quer ser, é escritor. Os livros estão crescendo e se multiplicando. O grande biógrafo está nascendo, o crítico literário, o historiador. A Vida de José de Alencar é de 1929. O belo estudo sobre Evaristo da Veiga é de 1930. E é desse período um dos seus livros mais humanos, talvez o maior, O Tigre da Abolição, em que evoca a figura de José do Patrocínio com luxo de pesquisas e depoimentos inéditos. Caxias, Silveira Martins e outros grandes do Império povoam seus livros. Temas brasileiros. Temas sul-americanos. Incursões pela Cultura universal. Mas o Pará e a Amazônia continuam vivos e ardentes na sua obra. São de 1929 os Mitos Ameríndios. O Vocabulário de Crendices Amazônicas é de 1937. Outros viriam depois. É intenso o trabalho. Dois, três, quatro livros por ano. Contos, conferências, ensaios, literatura infantojuvenil. Sobrepairando cada livro novo, inspirando todos eles, o compromisso de há muito assumido: o primeiro paraense vai ser ele... Seria! Livros já tinham saído. Novos estavam saindo. As reedições estão começando. Nome nacional já é. Está faltando a Academia. Vai tentar. Uma, duas vezes. Terceira? Não importa. É pelo Pará. O lugar é do Pará. É dele. Vai ser. Quarta vez... É derrota? Não. É desafio. Talvez ele tivesse começado um pouco cedo... Em geral, se chegava mais tarde. Mas o lugar, um lugar na Academia, tem dono. Questão de livros? Saindo sempre! E desta forma é que, aos 37 anos de sua vida, uma vaga se abre como um novo desafio. A Cadeira é de muita responsabilidade? Problema não é. Até que Evaristo da Veiga e Rui Barbosa são um bom material para um discurso de posse, principalmente para quem se especializou em biografias. Vai ser difícil para quem venha depois. A oportunidade é excelente para quem está chegando. Ele está chegando. Chegando e vencendo afinal. O Pará, durante mais de quarenta anos, tem cadeira cativa na Academia Brasileira de Letras.
Osvaldo Orico assumia a Cadeira 10. Bem vistas as coisas, o tempo a rolar, até que tanta pressa não havia... Tem pela frente uma vida... Em 1954, escreve as memórias. Pressa desnecessária também... Ainda vai ver muito mundo. Ver e viver. Ver, viver e contar. Ainda escreveria mais de 30 volumes, nessa vida que se desdobrava...
Em dias do ano da graça de 1980, há menos de um ano, portanto, alguém procura o Presidente desta Casa. Traz uma pergunta e um estranho diálogo se inicia:
– 1980 está no fim... Será que ainda vai sair este ano o livro O Livro d’Além Túmulo?
– D’Além o quê?
– Túmulo...
– De quem?
– De Osvaldo Orico...
– Não sei, amigo. Pergunte a ele. Osvaldo Orico está vivo...
– Eu sei... Mas o livro estava prometido há muitos anos para 1980.
– Por que não levanta o assunto diretamente com ele?
– Eu gostaria apenas de saber se os originais vão ser liberados para consulta, caso o livro não saia... Vão ser liberados?
– Ninguém melhor que o autor para responder... A vaga não foi aberta, meu caro...
– É que os originais estão aqui...
– Aqui... onde?
– Na Academia...
– Informação de quem?
– Do próprio autor...
– Ah! Já esteve com ele?
– Informação publicada...
– Onde?
– No primeiro livro de memórias, Da Forja à Academia... Deve ser fascinante...
E, abrindo o volume que levava consigo, lê na última página: “A segunda parte desta obra – diário de fatos, situações humanas, amizades, inimizades, ódios, amores, brigas, encontros e desencontros será publicada em 1980 sob o título O Livro d’Além Túmulo...”
O Presidente o interrompe:
– É simples. Pelo visto, o livro ainda vai ser publicado...
– Um momento... Eu ainda não acabei a leitura...
E continuando:
“... sob o título O Livro d’Além Túmulo, devendo os originais permanecerem até essa data nos cofres da Academia Brasileira de Letras...”.
Aí o Presidente viu tudo:
– Já sei, já sei. Agora me lembro. Já me falaram no assunto. Deve ser pilhéria dele, especialista nelas, apenas preparada com antecipação muito grande... Osvaldo Orico não sabia, em 1954, que chegaria aos 80 anos e já estava gozando as confusões que iria provocar...
Não demorou muito (o espírito alerta, o coração a falhar) falecia Osvaldo Orico. Faleciam. Porque houvera dois, pelo menos. Um, o Osvaldo Orico oficial, o das condecorações, o dos títulos, o dos discursos brilhantes de períodos redondos. Outro, um Osvaldo Orico paralelo, que marchara a vida inteira a seu lado.
Era o dos tempos do açaí, do tacacá, dos banhos lúdicos no Igarapé das Almas e nas águas do Reduto, o das mangas disputando, entre olhares e risadas, a cabeça dos passantes nas calçadas largas. Esse conseguira sobreviver a todas as glórias e vitórias do primeiro. Sempre que possível, levantava a cabeça e daí as pilhérias e as brigas e os gestos não convencionais de uma longa carreira, surpreendendo os amigos com trotes incríveis, obrigando os inimigos a calar, muitas vezes no braço. Mas vivera sempre sob o olhar vigilante do companheiro oficial. Tirava agora a desforra. Confirmava-se a previsão de Austregésilo de Athayde. O Livro d’Além Túmulo não apareceu nem fora escrito, apesar de tão anunciado e de tão esperado por tantos...
É que o Osvaldo Orico paralelo se divertia, de risada franca, pela última vez, com os amigos, os inimigos, os admiradores e os biógrafos do seu ilustre amigo.
Com a cumplicidade, certamente, do ilustre Osvaldo Orico oficial...
E agora uma palavra não muito protocolar, porque de explicação pessoal, talvez desnecessária.
Eu venho de uma pequena cidade do interior de São Paulo, um pouco estranha de nome para quem não o tenha ouvido a vida inteira: Lençóis Paulista. É nossa crença, lá, que o Brasil e o mundo breve estarão acostumados com esse nome, o da cidade que sempre amei com um sentimento confuso de orfandade e de culpa.
De orfandade, porque lá não cresci nem tive infância. De culpa, certamente por haver crescido longe e nunca ter feito a minha parte por ajudá-la a crescer.
Esse amor, aprendido com meu pai, trazia consigo um velho sabor de compromisso pessoal. Era do feitio de meu pai amar as pessoas e as cidades que conhecia, nele apenas desdobramento do amor geral que a religião lhe inspirava e tanto coincidia com o seu jeito de ser. Muitas cidades amou, desde Palmares, Pernambuco, onde nasceu, e São Luís do Maranhão, onde cinco anos foi pastor – e eventualmente professor de Grego – até São Paulo, onde seus dias findaram. Muito natural, portanto, que amasse a cidade de seu início de carreira, onde lhe nasceu e com poucos meses morreu seu primeiro filho, onde lhe nasceu o segundo, por enquanto com vida.
Eu também amei as cidades de meu pai. A de seu começo de carreira e de meu nascimento, porém, foi sempre de um amor machucado. Porque a sabia pequena, pobre, distante, desconhecida e sem apoio dos governos, seu nome procurado sempre nos jornais e nunca visto. Ou quase nunca... Por volta do ano de 1951, lembro-me bem, o nome de Lençóis Paulista, visto numa publicação oficial, me arrasou. Livrarias, claro que não... Papelarias? Talvez... Bibliotecas? Sim... Uma! Num colégio... Cento e poucos volumes...
Mas os anos passavam... A cidade começava a existir, a caminhar por conta própria... O nome ainda não aparecia nos grandes jornais? Bondoso Deus, que bom! Cidade sem crimes, ocupada, sem pressa em crescer... Sua economia se afirmava. Seus jovens atletas conquistavam medalhas. Seus produtos ganhavam mercados. Um filho da terra chegou a campeão mundial dos meios-pesados. Não por longo tempo, é certo, mas do mundo...
Foi quando surgiu lá – a terra era boa – a ideia de fundar-se uma biblioteca. Não de cento e poucos volumes, como a primeira, mas pelo menos com mil volumes no final de dez ou doze meses...
A terra era boa, a terra é boa. Aquela ideia, dentro em pouco, tinha sede própria, tinha estantes e livros, alegria de leitores chegando. A cidade vibrava. O prefeito, os professores, os colégios, e o milagre bom dos amigos de perto e de longe. Pedro Bloch é um dos primeiros a falar, numa reportagem, sobre a biblioteca de Lençóis Paulista. Uma tradutora de autores brasileiros sabe da notícia, faz a sua campanha particular. Livros aparecem, vindos de Buenos Aires. Estão lá nas estantes esperando os leitores futuros, que a massa de leitores da Biblioteca nascente é feita dos leitores de amanhã. Há vinte anos que eles vêm sendo preparados sucessivamente, num clima de amor, pelos amigos de perto ou de longe que ajudaram a constituir o seu fabuloso patrimônio. Nem todas as bibliotecas do Brasil possuem livros doados por um Manuel Bandeira. Quantas bibliotecas do Brasil podem mostrar o manuscrito de um artigo de Alexandre Herculano ou as cinco páginas ao vivo de uma crônica de Olavo Bilac, oferecidas por um Procópio Ferreira, que Deus tenha? Poucas tiveram doadores tão ilustres. Menotti, de uma vez, quinhentos volumes. Paulo Rónai, ao longo dos anos, muito mais. Guilherme Figueiredo, milhares de autógrafos e documentos. Quem quiser conhecer a letra e assinatura de vários presidentes da República, a de Pedro II e a de Santos-Dumont, a de dezenas e dezenas de membros da Academia Brasileira de Letras (a de Machado Assis ainda não temos...) pode ir a Lençóis Paulista, Praça Comendador José Zillo n.º 1, bem no centro da praça... A casa está em obras de ampliação: fora prevista para vinte mil volumes, já tem quase trinta mil. Parece muito? É não... Podem mandar mais... Espaço é problema da Prefeitura, que no momento, por exemplo, dispõe de uma verba acrescida ao orçamento normal da Biblioteca e destinada à encadernação de mais dois ou três mil volumes. De onde veio? De uma economia graças à editora Tecnoprint, que fez questão de cuidar de um fardão que a Prefeitura julgava seu fardo. Mas o mais importante não são os quase trinta mil volumes e essa verba inesperada para as encadernações em andamento: são os cinco mil leitores por mês que a Biblioteca já tem numa cidade que ainda não tem cinquenta mil habitantes...
Todo esse comercial em torno de uma instituição sem fins lucrativos (embora aceite penhorada toda e qualquer remessa de livros, documentos, obras de Arte e autógrafos, se possível de Machado de Assis...) é feito um pouco também, para uma final explicação.
Uma série de circunstâncias favoráveis – e muito em particular a contribuição de centenas de amigos, muitos dos quais aqui presentes – fez de quem vos fala, num dado momento, uma espécie de meio herói popular na cidade em que nasceu. Principalmente, no seio do mundo infantil, que afinal é o mundo de amanhã... Assim é que, numa das promoções da Biblioteca, vai para três ou quatro anos, um garoto de dez ou doze anos se aproxima dos setenta e poucos de um visitante encabulado. Os dois estão... O menino também. “O Senhor nasceu mesmo em Lençóis Paulista?” “O Senhor tinha feito boa viagem?” “O Senhor morava em São Paulo ou no Rio?” “O Senhor quantos livros tinha escrito?” “Quando o senhor pretendia voltar?”
E, após uma ligeira pausa remata, com o devido respeito e com tranquila segurança:
– O Senhor é da Academia Brasileira de Letras, não é?
É a profunda decepção daquele garoto diante da natural negativa do citado senhor que o coloca, três ou quatros anos depois, diante de vós nesta Casa.
Osvaldo Orico se orgulhava de ter devolvido ao seu Estado uma das Cadeiras a que o Pará tinha direito nesta Academia. Eu me sinto orgulhoso de ser aqui o primeiro da minha cidade. Não somente por mim, mas pelo gosto de estar abrindo caminho para outros de lá, para um ou para alguns dos cinco mil leitores mensais da Biblioteca de Lençóis Paulista. E talvez – quem sabe? – para aquele mesmo menino, que deve ser ainda hoje um dos cinco mil de todo mês. Eu confesso que não o saberia reconhecer. Seus traços me fugiram, seu rosto perdi. Não consigo esquecer, porém, o desapontamento profundo que li em seus olhos. Tenho a impressão de que aqueles olhos sonhavam também com a glória desta Casa...
20/11/1981