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Discurso de posse

Meus senhores,

De Lamartine disse Lanson que, ao procurar as influências que modelaram a infância do poeta das Meditações, nada encontrou que não representasse algo de bom, de amável, de gracioso: pai, mãe, irmãos e, como quadro, Milly e as colinas do Maconais. De Alberto de Oliveira, o Príncipe dos Poetas brasileiros e meu conterrâneo, a quem me destes a honra insigne de suceder, eu também poderia dizer a mesma cousa. Tudo na sua vida parece concorrer providencialmente para preparar um ambiente favorável à plena floração da sua arte: o meio familiar, o meio físico, o meio cultural, a índole mesma do poeta, uma série, em suma, de coincidências surpreendentes e admiráveis.

Nascendo nos meados do século passado, em 1857, num recanto agrário da Baixada Fluminense, Alberto de Oliveira surgia para a vida no momento justo em que a nossa sociedade rural atingia o esplendor da sua poderosa organização patriarcal. Era então a velha província fluminense o centro de gravidade do Império e a Baixada uma das suas regiões mais ricas e cultivadas. O grupo familiar estava na florescência do seu tipo, na plenitude da sua coesão e unidade. Eram puros e dignos os costumes e bem exprimiam os altos padrões de moralidade da nossa velha aristocracia territorial.

Neste meio, transcorreram a infância e a adolescência de Alberto. Composta dos pais e mais dezessete irmãos, dos quais dez varões, a sua família era bem uma expressão modelar das nossas velhas patriarquias dos começos do 2.o Império, concentrada em torno do pater-familias e unida por uma solidariedade parental que nos é difícil, hoje, compreender – porque já não a praticamos mais.

Esta tribo patriarcal –, comparável, pela sua unidade e solidez, às da Bíblia –, deixou, pouco antes de 1880, o seu domínio do Palmital e emigrou, primeiro, para terras convizinhas de Itaboraí e, depois, para esta metrópole. Aqui chegou há mais de meio século; mas, chegou unida e numerosa, como o era nas terras nativas, e unida e numerosa tem aqui permanecido até agora, sem perder nenhuma das características da sua antiga formação rural.

Há um traço que convém fixar desde já; ele nos permitira compreender alguns aspectos íntimos da sensibilidade do poeta e, mesmo, certos requintes da sua arte perfeita. É que este meio familiar, que o envolveu na sua terra natal e continuou a envolvê-lo aqui, constituía um grupo originalíssimo. Não era apenas o centro larário de uma patriarquia numerosa, foco da sua vida doméstica e religiosa; era mais do que isto: era uma Arcádia doméstica, um Cenáculo poético, uma espécie de pequena Academia de Letras. É o que nos conta Rodrigo Octavio, que conheceu o poeta quando ainda no começo da sua glória, morando numa casinha modesta, num bairro pobre de Niterói. Rodrigo o foi encontrar, ali, feito estrela maior de uma constelação de poetas; que o eram todos os seus irmãos e irmãs.

Ora, foi dentro deste ambiente familiar, assim dominado de vivas preocupações literárias, que Alberto formou o seu espírito e apurou a sua sensibilidade de artista. Os seus versos, antes de serem lançados à grande publicidade, sofreram sempre, desde o período inicial, de que nos dá conta Rodrigo Octavio, a crítica prévia deste pequeno Tribunal de Censura. Compreendeis bem a importância deste fato, principalmente na primeira fase da carreira do poeta: o perfeito lavor e, mais do que isto, a compostura, a decência, a dignidade, tão características da sua grande arte, não teriam aí uma das suas causas determinantes?

Era o poeta das Meridionais e da Alma em Flor o mais belo exemplo, entre nós, do puro homem de letras, do verdadeiro artista, para quem nada, nenhuma das seduções do mundo tem valor que supere o da sua arte. Com o seu talento, o seu renome, a sua distinção pessoal, poderia ter sido tudo neste país: deputado, senador, ministro, embaixador. Entretanto, não quis ser nada disto: insulou-se na Arte e não foi outra cousa durante a sua longa vida senão exclusivamente o poeta Alberto de Oliveira.

Nunca disputou, nem o seduziram posições, prestígios, glorificações. Não teve, por isto, a popularidade de Bilac. Bilac tinha tudo para dar à sua personalidade a ressonância precisa e merecida: era jornalista, cronista fino e encantador; freqüentava rodas e salões; tinha o seu séqüito; vivia nas redações; era sociável, amável, comunicativo, orador fulgurante e conferencista admirável. Alberto, ao contrário, não freqüentava habitualmente salões, nem a tribuna; não escrevia em jornais; não procurava o contato com os poderosos; nunca se dedicou a campanhas cívicas. Mesmo no auge da famosa roda boêmia da Rua do Ouvidor, Bilac o dá como vivendo unicamente para duas cousas: a Arte e a família – uma família que nunca o abandonou e uma arte que pôde cultivar com calma, tranqüilidade, pausa.

Nos seus começos de poeta, quando havia publicado as Canções Românticas e as Meridionais, reclamaram dele menos contemplação e mais ação pública, instando a que abandonasse a preocupação parnasiana das rimas ricas e dos sonetos bem escandidos para se tornar um agitador, à maneira de Castro Alves: combatendo pela Abolição e pela República. Não haviam compreendido o temperamento do poeta, o seu culto da arte pela arte, o seu gosto do isolamento e da vida tranqüila, o seu penhor à família...

Homem de pequena roda e de sociabilidade reduzida, amava a vida sossegada, a vida lareira e quieta, fora do bulício e do rumor da grande sociedade. Este sentimento lhe transparece em numerosos versos; em alguns deles, confessa mesmo o seu mal-estar quando no meio da sociedade artificial e palreira, que freqüenta os hotéis de luxo ou os salões elegantes:

Pia, grunhe, regouga, ulula o piano.
Ferve a dança no hotel. Ao ruído insano
Do horrendo monstro juntam-se os rumores
Que vem das salas e dos corredores.
Que noite vou passar, sem um amigo,
Sem distração, sozinho aqui comigo,
Sem outrem com quem fale, eu que não danço,
Eu que não jogo, ouvindo sem descanso
Cair lá fora a chuva inexaurível
E aqui no hotel este barulho horrível!

O seu ideal era uma casinha no campo, isolada em plena natureza. De si consigo lá diria, com o poeta:

A me la stanza solitaria basti,
Più chiusa a se, ma onde pur l’occhio vede
Orizzonti piu limpidi e più vasti...

Em nenhuma das suas poesias deixou mais artisticamente expresso esse anelo do que na adorável fantasia – Dia de viagem – em que, depois de uma caminhada fragueira e fatigante, encontra a mulher amada bordando à porta de uma casa tosca, em plena roça. Confessa ter achado a felicidade. Dir-se-á que, por seu gosto, ali ficaria para sempre e, como o peregrino de Aristófanes, tendo apenas de seu uma braçada de flores, um cântaro com água e alguns ramos de mirto...

Não era um temperamento expansivo, destes que se dão logo, inteiramente, à sua roda de amigos. Não se conta dele nenhuma anedota, sequer uma frase de espírito. Havia prudência na sua acolhida, simples e amável, mas não envolvente. Neste ponto, diferia de Bilac e se aproximava de Raimundo, sem o retraimento ou a misantropia deste. Gostava das palestras longas e repousadas. Falava lentamente, quase sem gestos, a máscara pouco animada, onde, uma vez ou outra, sabia pôr a vida fugidia de um sorriso, tocado de bondade e doçura. Um dos seus maiores encantos de conversador era a voz – uma voz profunda, cheia, característica, cuja ressonância grave fazia dizerem que era “voz de mangagá”, por analogia com um besouro das nossas matas...

Fisicamente, era uma natureza hígida, um magnífico exemplar da raça, um tipo de beleza atlética – e ninguém como ele teve mais vivo o orgulho desta supremacia, a consciência da nobreza e dignidade destes atributos. Vendo-o descer a Rua do Ouvidor, no seu andar, lento, compassado, um tanto hierático, parecia a muita gente que havia nisto uma atitude intencional, como se assim o fizesse para lembrar a majestade e a cadência dos seus alexandrinos. Entretanto, nada mais falso: tudo isto era natural em Alberto. Onde punha intenção era no cuidado dos bigodes, de guias sempre aceiradas; no apuro do trajar, sempre do melhor tecido e do melhor corte; na gravata plastron de cores vivas; na negra coloração da sua bela cabeleira de poeta. Nisto, sim, é que sempre se revelou artista, zelando pela sua majestosa figura de Apolo com o mesmo carinho com que zelava pelo perfeito lavor dos seus versos.

Na vida deste esteta, tudo pareceu conspirar para criar-lhe as condições espirituais necessárias ao cumprimento da sua predestinação artística. Poeta por instinto, ninguém lhe contrariou a vocação; antes, todos os que o cercavam – irmãos e amigos – favoreceram-no para que esta vocação se afirmasse. Não foi obrigado a trabalhar com a pena para viver e, portanto, a improvisar a sua criação artística. Daí o esmerado lavor da sua produção, o precioso escrínio de sonetos e poemas que nos deixou, onde só esplendem gemas do mais fino quilate e pérolas do oriente mais puro.

Natureza de artista na mais alta, na mais nobre e também na mais desinteressada expressão do termo, carecia por inteiro dessa ambição que nos leva a procurar as grandezas do poder, ou as da glória. Esta lhe veio simples, natural, espontânea, sem outro esforço senão o seu labor de artista, como pintor dos mais belos poemas descritivos da nossa natureza e dos mais formosos painéis decorativos das nossas letras. Na moderação dos seus desejos e no modo medido e cauto com que fruiu os aplausos da admiração nacional, não teve que lutar, a bem dizer, com a inveja dos homens: não encontrou inimigos de prestígio que o perturbassem na sua ascensão; mesmo porque não forçou o triunfo, nem teve que deslocar alguém para atingir os cimos. Não suscitou também a inveja dos deuses; a Nêmesis implacável não o inquietou com os seus ciúmes: para acalmá-la, não teve, no esplendor da glória, que lançar ao mar o seu anel de Polícrates.

Este clima de felicidade por assim dizer constante, dentro do qual sempre viveu, transparece no tom geral das suas poesias, puras revelações de uma alma sadia animando um corpo sadio e onde não descobrimos nenhum traço de tortura interior ou de paixões mórbidas: a ânsiomania de Baudelaire, o delírio de Poe, o pessimismo de Augusto dos Anjos. Não seria mesmo possível enquadrá-lo entre aqueles “nostálgicos da desgraça”, a que alude Veríssimo. Se há, como evidentemente há, alguma nostalgia na sua inspiração, esta não era a nostalgia da desgraça – e, sim, a da felicidade. Porque tudo o que os seus versos exprimem são sempre reminiscências amáveis: a saudade, a ternura evocativa, o lirismo delicado e doce ou as expansões do seu permanente encantamento diante do panorama deslumbrante e colorido da Natureza.

Este poeta, já bafejado por tantos favores de um destino benévolo, contava mais este: o de ter surgido numa época que marca um dos mais belos, senão o mais belo momento da nossa história literária, porque, mais do que nenhuma outra, agitada e entrecruzada de correntes de idéias e doutrinas. Foi a fase da propaganda federalista, da propaganda abolicionista, da propaganda republicana – no campo político; do evolucionismo, do positivismo e do transformismo – no campo da Filosofia e das idéias gerais; do Realismo e do Naturalismo, da escola parnasiana, da poesia social e da crítica científica – no campo da estética e das belas-letras. Foi, por isso, o período dos grandes pensadores, dos grandes críticos, dos grandes oradores, dos grandes jornalistas, dos grandes romancistas, dos grandes poetas, dos grandes evangelizadores e idealistas. De Rui, Nabuco e Quintino, na doutrina política e social; de Tobias Barreto e Silvio Romero, na filosofia e na crítica; de Aluízio Azevedo e outros, no romance naturalista; de Bilac, Raimundo e Alberto, na poesia e na estética. Uma verdadeira constelação de espíritos superiores, que encheram, com a força do seu gênio e a irradiação das suas idéias, o espaço do último quartel do século XIX, de 1875 a 1900 e, mesmo, o primeiro decênio deste século.

Rustícola ainda adolescente, vindo de Itaboraí, Alberto instalara-se no centro mesmo da grande tempestade e ficara exposto à influência dessas idéias e escolas. Todas elas lhe circularam em torno e de todas teve conhecimento; mas, a verdade é que nenhuma delas o absorveu, nenhuma delas influiu sobre ele de maneira decisiva.

Há um atributo da sua personalidade, em que nunca será demais insistir: é o da sua limitada permeabilidade às influências do meio literário, a sua pouca susceptibilidade às escolas que conheceu. Do alto miradouro que foi o seu longo viver, pôde assistir ao começo e ao fim de várias escolas: – da poesia condoreira à reação parnasiana; da reação parnasiana ao movimento simbolista; do movimento simbolista às correntes do Modernismo e do Futurismo: – e, entretanto, não transigiu com elas. Durante os cinqüenta e tantos anos que consagrou à sua arte, foi sempre o mesmo: desde as Canções Românticas, livro de juventude antes que de mocidade, até o Ramo de Árvore, escrito já na sua velhice, sempre mostrou as mesmas qualidades artísticas, embora cada vez mais apuradas, polidas e aperfeiçoadas pela cultura. O soneto “Titânia”, do livro Sonetos e Poemas, obra da sua verdejante mocidade, tem as mesmas qualidades intrínsecas e extrínsecas do soneto “Cattleya”, do Ramo de Árvore, escrito pouco antes de encerrar a sua carreira literária.

É que a Arte para este grande poeta não era um simples brinco da sua inteligência, ou um jogo fascinante da sua imaginação; era a própria expressão honesta e funda do seu temperamento e do seu caráter. Dai revestir-se – e é este o traço geral que a singulariza – de todos os predicados que caracterizam e distinguem a inspiração clássica, o gosto clássico e a forma clássica. Sempre que lhe leio as obras, recordo-me daqueles conceitos de Taine no seu famoso ensaio sobre Racine e a sua época quando nos descreve os hábitos aristocráticos, as maneiras galantes, as preferências artísticas e literárias daquela sociedade de raros, distinta, requintada, espiritual, que passeava a sua elegância pelos salões de Versalhes, no tempo de Luiz XIV. Do seio desta fidalguia assim educada, polida, luzida, votada à cultura das boas maneiras e das belas-letras e cuja ambição mais ardente era conversar ou escrever com elegância e de forma impecável, é que saíram, segundo Taine a um tempo, o sentimento e a arte do Classicismo.

No seu ensaio, o mestre da crítica nos diz o que era este sentimento e o que era esta arte, que tiveram a sua expressão mais excelente na concepção e estrutura da tragédia raciniana. O sentimento era o do equilíbrio, da proporção e da harmonia; era também o da polidez, da dignidade e da nobreza. A arte era a que promanava da “razão oratória”, isto é, a expressão perfeita das idéias e sentimentos em tudo que essa perfeição significa ordem, clareza, graça, elegância, bom gosto, distinção, vernaculidade. O clássico se vigia e disciplina a si mesmo contra as atitudes deselegantes e impolidas, os gestos grosseiros e rudes, as paixões desordenadas ou baixas, os sentimentos desprimorosos ou mesquinhos, como reage contra a expressão imprópria ou redundante, o estilo enfático ou descuidado, a linguagem plebéia e o calão das saburras.

Estes critérios estéticos, dominantes no século de Racine, não diferiam em nada dos que, há mais de 2 mil anos antes, vemos transluzir naquele diálogo fascinante, travado entre Ésquilo e Eurípides, na comédia As Rãs. Neste diálogo – bem o sabeis – pela palavra irreverente de Eurípides, a antiguidade grega, através da deliciosa fantasia aristofanesca, nos deu, a todos os espíritos sedentos de perfeição, a sua mais formosa lição de crítica da beleza e da arte clássicas.

Contemporâneos de Péricles ou contemporâneos de Racine, uns e outros, se acaso ressurgissem em nosso meio e sob a doçura dos nossos céus, certamente reconheceriam no poeta de Meridionais e de Canções Românticas um irmão pela sensibilidade e um compatriota pela inspiração – porque nascido sob os mesmos climas espirituais.

Este poeta era, na verdade, um clássico, à maneira de Eurípides ou à maneira de Racine. E o era pelo temperamento e pela educação, como o era pelas preferências literárias e, ainda mais, pela severa disciplina que impôs à sua própria elaboração artística. Poucos, como ele, souberam manter e conservar, nas realizações da sua arte, esta suprema regra da distinção e do bom gosto, própria do espírito do Classicismo. Entre uma colunata dos Jerônimos, na exuberância peninsular dos seus ornatos, e um friso do Parthenon, na dórica sobriedade das suas linhas, é certo que sempre preferiu a beleza pura e simples da harmoniosa criação grega. Daí o ter conseguido realizar aqui o ideal do verdadeiro acadêmico – porque clássico e acadêmico são expressões que se confundem. Dele bem se poderia dizer, considerando a excelência e a seleção da sua cultura e a pureza vernácula do seu estilo, o que alguém já disse de René Doumic – “que era a própria Academia”.

Nada exprime melhor a sua estesia clássica – quero dizer: o seu profundo senso da medida, da eurritmia e do equilíbrio – do que a nenhuma simpatia, que sempre demonstrou como poeta, pelos aspectos desordenados, violentos ou excessivos das cousas, sejam as da Natureza, sejam as do Espírito. Nos seus versos não explodem cóleras, nem ódios, nem imprecações, nem anátemas: nada, em suma, que signifique exageros emotivos; os sentimentos, de que se repassam, são todos sentimentos delicados: ora, os afetos silenciosos ou confessados a meio; ora, a mágoa, a ternura, a saudade, a nostalgia. Como que repugnava à sua sensibilidade o enorme, o desmedido, o desconforme, o colossal: tinha o gosto do pequenino, do minúsculo, do tom fino e raro, da cor delicada, das formas harmoniosas e elegantes. Ninguém foi mais sensível à beleza das boninas, dos lírios, das catteleyas; à delicadeza da frondula dos musgos e dos líquens; à maciez da úsnea dos pomos maduros; à graça e esbelteza das palmeiras. Como Teócrito, o lírico subtil e malicioso dos Idílios, poderia dizer: – “Tenho horror ao arquiteto que constrói palácios tão altos como montanhas e que, de tão altos, se vêem ao longe.”

Bem sei que os grandes surtos não faltam ao estro de Alberto, nem à sua imaginação impressividade aos aspectos grandiosos da Natureza. Bem sei que ele se exalta, às vezes, à altura da verdadeira eloqüência descritiva, em poemas poderosos pela força da inspiração e pela sonoridade das estrofes –, como os em que descreve os elementos em fúria, principalmente as tempestades e o mar bravio. Estes não eram, porém, os seus temas prediletos: a sua índole artística, feita para a moderação e a medida, não se encontrava bem no meio dos exageros. Quando o poeta contempla os aspectos graciosos e ternos da realidade, os quadros em que domina o traço fino, vaporoso ou colorido, é aí que vemos a sua palheta adquirir tonalidades imprevistas, uma riqueza de matizes, uma vivacidade, uma fremência, uma palpitação de imagens que bem demonstram que o poeta está no seu elemento, no clima propício à sua emotividade e à sua inspiração.

Esta feição peculiar do seu temperamento é que o afastou da poesia épica, como o afastou da poesia dramática: dentre as Musas que o visitaram, não encontramos nem Melpomène, nem Calíope. Esta mesma feição também o afastou da poesia condoreira: os tropos e as amplificações de Tobias Barreto ou, mesmo, de Castro Alves não deviam seduzir a sua inspiração artística, sempre eurítmica, sempre contida pelo sentimento clássico da medida, da harmonia e do equilíbrio. Contra ele nunca se poderia lançar o dardo que lançaram contra Hugo – de que, em matéria de ordens arquitetônicas, só entendia bem, realmente, a ciclópica...

Clássico era, pois, Alberto – e esta sua feitura clássica teve uma gênese complexa. Há fatores aparentes e há fatores ocultos que nos explicam a fixação do poeta no campo do Classicismo.

Um destes fatores foi o próprio meio físico, onde nasceu e dentro do qual viveu a vida toda. Alberto era uma pura sensibilidade de visualista, um poeta da paisagem e da cor – e foi buscar os temas dos seus versos justamente nos aspectos físicos da sua terra natal. Ora, a região fluminense é, talvez, no Brasil, a que realiza a moderação em tudo: no clima, na hidrografia, na orografia, nos aspectos da flora e da fauna. Nada da monotonia dos planaltos e dos pampas. Nada da agrestia e dureza dos sertões exsicados. Nada do pleonasmo de águas e selvas, que é o extremo-norte. Na brandura e na constância do seu clima, na formosura e amenidade do seu relevo, na variedade dos seus aspectos e cores, lembra, de certo modo, aquele “país da Galiléia”, de Renan, très vert, très ombragé, très souriant, le vrai pays du Cantique des Cantiques et des chansons du bien aimé.

O poeta teve, assim, um cenário compatível com as peculiaridades da sua índole. Que teria sido ele se tivesse vivido no Norte adusto e áspero ou no pampa ilimitado e igual? Deu-lhe o destino o cenário que mais condizia à sobriedade do seu temperamento, às suas afinidades íntimas, às predileções graciosas da sua delicada imaginação de paisagista. Ele foi, como poeta, bem um filho desta terra branda e moderada, e fértil, amável, risonha, soalheira, acolhedora.

O outro fator que concorreu para a conformação clássica do seu espírito, para a moldagem do seu tipo literário dentro das formas da medida e da harmonia, foi o meio histórico, o clima social da sua velha província fluminense, onde sempre viveu e donde nunca quis sair. Perdoai-me que eu vo-lo diga, mas é certo que os fluminenses, em trezentos anos de história, constituíram um grupo, que é dos mais policiados e polidos do Brasil. Os traços diferenciais da sua inteligência e do seu caráter são conhecidos: sempre primaram pelo senso da moderação e do equilíbrio, como também pelo gênio subtil e harmonioso. No Império, sobre-excederam-se no bom gosto e nos requintes de uma civilização rural, cujos documentos ainda remanescem em solares admiráveis, demonstrativos da finura intelectual e artística de uma raça de “gentis-homens”. Estes traços são ínsitos à índole dos meus conterrâneos; eles sempre os revelaram em todos os domínios do pensamento e da ação: nós os encontramos, visíveis à primeira análise, entre os seus homens de letras, como entre os seus homens de arte. Encontramo-los mesmo entre os seus políticos e pensadores, como até entre os seus soldados e marinheiros: Caxias e Saldanha, Octaviano e Paulino, estes na ciência política, aqueles na arte da guerra, bem exprimiram, pela palavra ou pela espada, falando, agindo, comandando – e tanto quanto os seus outros conterrâneos, poetas, romancistas, artistas ou cientistas – estes caracteres peculiares da sua grei.

Qual nestes e qual em Varela e Magalhães, em Alberto de Oliveira esses predicados também se ostentam em todo o esplendor da sua beleza. Em nenhum representante da nossa gens atingiram, porém, essa plenitude de revelação e a perfeição que vemos no artífice de “Cattleya” e de “Rauso”, fluminense de sangue e de espírito, como os outros, porém, mais do que os outros, preso substancialmente à sua gleba natal – como uma grande árvore frondosa, de raízes profundas, à maneira desses jequitibás, que tantas vezes cantou nos seus poemas.

Por um favor da Providência, sempre tão generosa para com ele, este poeta, assim naturalmente predisposto –, pelos predicados do próprio temperamento e pelas condições do meio, social e físico, em que viveu –, à realização dos modelos artísticos do Classicismo, teve logo, nos começos da sua vida de espírito, contacto com duas fontes admiráveis de sugestões clássicas: Os Lusíadas e a Antiguidade Grega.

Sim, Os Lusíadas e a Antiguidade Grega... Só agora, nas próprias confidências do poeta, deixadas numa pequena autobiografia, ainda inédita, de pouco mais de uma dezena de páginas, nos foi dado descobrir essas matrizes recônditas da sua sensibilidade e da sua inspiração. Naqueles tempos – conta-nos ele, descrevendo os seus primeiros anos de estudante – o livro de temas para exercício de análise gramatical e sintáxica, nas escolas primárias, era nada mais nada menos que Os Lusíadas! Depois da Cartilha, vingadas as dificuldades da leitura corrida, entrava-se logo nos segredos da língua através da análise e do comentário das estâncias do poema imortal. Era assim que os nossos antepassados aprendiam a bela língua de Camões e Vieira; foi assim que o nosso futuro grande artista começou a aprendê-la.

Como se tal coincidência não bastasse, ocorria ainda que, nesta escolazinha de aldeia, “escola de tico-tico”, como se dizia ali, o seu mestre – o professor Eduardo Augusto de Almeida, de quem Alberto fala tão carinhosamente nessas breves memórias – cultivava, ao que parece, um vivo amor à Grécia e aos seus deuses e heróis. Por isso, adotara o sistema de dividir os alunos em dois bandos ou “partidos”: – o dos gregos e o dos troianos. Enquadrados por esse critério histórico, os dois grupos de garotos lutavam pela posse de um estandarte erigido em símbolo da vitória, debatendo, em desafio, temas literários – como os de hoje lutam por pontos de gol nos campos de futebol. Inscrito Alberto, o professor Almeida, na forma da praxe estabelecida, convidou-o a tomar um dos partidos; que ele se decidisse pelos gregos ou pelos troianos. Seja impulso subconsciente, seja vocação misteriosa do seu instinto artístico, Alberto decidiu logo assentar praça entre os gregos. Mais tarde, conseguiu mesmo fazer-se chefe ou capitão deles, por ter arrebatado o estandarte ( “taça”, como, diríamos hoje) para o seu vivaz e ardido grupo de hoplitas de calças curtas... 

– Cosa ninguna pasa en vano dentro de ti – disse o autor dos Motivos de Proteo –; no hay impresión que no deje en tu sensibilidad la huella de su paso; no hay imagen que no estampe una leve copia de sí en el fondo inconsciente de tus recuerdos.

Em nenhum artista encontro verificação mais exata deste conceito de Rodó do que em Alberto de Oliveira. O poeta permaneceu sempre fiel a essas duas impressões iniciais, que o Acaso ou a Providência gravara na cera virgem da sua alma de criança. No fundo, foram elas que compuseram as linhas centrais da sua poderosa personalidade literária. Desde a adolescência até a velhice, a beleza artística – tal como a concebera e idealizara a Antiguidade Clássica – e a vernaculidade da língua – buscada, antes de tudo, na eterna matriz camoniana – foram os dois pólos, entre os quais vemos oscilarem, num ritmo de pêndulo, as suas preferências e afinidades espirituais.

Certo, este clássico de instinto abandonou, mais tarde, sob a sugestão de Machado de Assis, a fonte primeira do Classicismo, que é a Grécia; mas, a abandonou apenas como “matéria de versos”. Pelo temperamento, como também pela educação e cultura, Alberto não podia desdenhar nunca os modelos supremos da Arte, criados pelo gênio da Hélade. O clima artístico, em que sempre viveu pela imaginação e pela sensibilidade, nunca deixou de ser aquele mesmo em que vivera a Grécia. Não a Grécia de Homero e de Ésquilo, grandiosa demais; mas, a de Sófocles e de Fídias, a de Péricles e de Platão, a da Oração da Coroa e do Doríforo de Policleto; em suma, a Grécia de Atenas, onde, no dizer de Paul de Saint-Victor, até os próprios tumultos eram harmonias.

Um conjunto de circunstâncias e coincidências felizes, revelando à evidência o desígnio de uma predestinação gloriosa, concorreu, assim, para desenvolver e apurar no poeta, com a intuição da beleza clássica, a preocupação da pureza da língua e o gosto da vernaculidade. São os Sonetos e Poemas, compostos entre os seus 26 e 28 anos, que vão dar a medida da sua grande arte, definir o momento em que ele se encontra a si mesmo, em que firma as características do seu estilo, que se iriam precisar pelos tempos em fora. Nesta obra, Alberto mostra-se na plena posse do seu instrumento de expressão, que é a língua portuguesa, a única em que escreveu. Já a trabalha e maneja como mestre, perfeito senhor da sua opulência vocabular e dos segredos da sua sonoridade.

Esta coleção de poesias marca um verdadeiro período divisório na técnica da sua composição artística. Há como que uma súbita mutação em tudo na força da inspiração, no fulgor da imagem, na graça e na variedade da fantasia e dos motivos, na riqueza e novidade dos epítetos. Desde então o poeta aparece inteiramente livre de todas as fraquezas e dubiedades da primeira fase – de Canções Românticas e de Meridionais – e afirma-se não só magnífico pelo brilho, pela precisão, pelo colorido, como admirável pela música e vernaculidade da expressão. Os poemas “Borboleta Azul”, “Três Formigas”, “Vertumno”, “Per Tenebras”, “Lagarta” no-lo mostram na plenitude de todos estes dons. Daí por diante, não fez senão aprofundar o conhecimento da língua, compondo estrofes, em cuja dicção Rui viria a descobrir, mais tarde; “uma singeleza e limpidez camonianas, que renascem numa lira nova”.

Este fascínio pela beleza do idioma é que o levou, provavelmente, quando teve de escolher patrono, a recuar ao século XVIII, à Escola Mineira – e a fixar-se em Cláudio Manuel da Costa. É que os árcades mineiros, reagindo contra a poesia gongórica da fase anterior, tinham procurado restaurar, com os padrões da arte clássica, a pureza e a elegância da língua. Neste sentido, Alberto foi um árcade e continuou a tradição de Gonzaga e de Cláudio; mas, a continuou com muito mais brilho, mais inspiração, mais variedade de ritmos e motivos, libertando-se das “seqüelas de ninfas, pastores, rebanhos, cajados e sanfonas, salgueiros e faias”, que ele próprio, uma vez, assinalou, como imperfeições, na obra, sob outros aspectos perfeita, de Cláudio Manuel da Costa.

Pelas condições mesmas em que formou a sua cultura literária, teve Alberto assim, logo cedo, a intuição muito clara desta verdade fundamental – de que só as obras fundidas nos velhos moldes do Classicismo e lavradas neste raro e fino metal, extraído dos vieiros genuínos da língua, é que sobrevivem e perduram, embora sobre elas hajam rolado as vagas dos séculos. Daí a sua fatigante leitura dos clássicos lusitanos, a sua preocupação do vocábulo abonado, o cuidado pela locução extreme e pura, o primor inexcedível da sua linguagem poética.

O que ele amava na nossa língua, como a expressão do Classicismo, não era, porém, o Quinhentismo, nem o Seiscentismo, nem o Setecentismo – de Camões, de Bernardes, de Vieira, de Gonzaga, de Cláudio. Nestes mestres encontrava algo mais do que a expressão da sua época: encontrava o que não está sujeito às contingências do tempo, o que não tem Quinhentos, nem Seiscentos, nem Setecentos, porque é o que há de permanente e eterno na língua, e que é a sua essência, o seu espírito, em suma, o que chamamos o seu gênio. Não há Quinhentismo, nem Seiscentismo, nem Setecentismo na sua tersa e castiça linguagem; há a língua portuguesa em tudo o que ela tem de essencial no seu ritmo, na sua força, na sua delicadeza, na sua harmonia vocabular, na sua beleza plástica, na sua elocução pura e forte, no tesouro das suas riquezas sônicas. Não encontramos nela expressões à Bernardes ou à Vieira: encontramos, sim, como em Rui ou Machado, o português na sua genuinidade clássica, entremeado do português que aqui falamos: ao lado do vocábulo de extração camoniana, o vocábulo nativo, cheirando à nossa terra, rescendendo às nossas tradições populares, ecoando o falar do nosso povo; mas, com que bom gosto utilizado este e com que arte explorado aquele! Termos buscados à nossa fauna, à nossa flora, à nossa geografia, ao nosso folclore, alguns deles – muitos deles! – saídos da maloca tupi ou, mesmo, vindo da cubata africana; mas, todos vernaculizados pela tradição local e popular. O mérito deste poderoso artista está em ter sabido extrair destas minas de epítetos pequenas maravilhas de graça, de colorido, de leveza, de musicalidade, de ritmo, de expressão lírica. Há versos seus que são verdadeiras carícias aos ouvidos; outros, milagres pictóricos de maravilhoso acabamento.

Esta vocação clássica do grande poeta, tão cedo revelada, não lhe podia permitir manter, em face do Parnasianismo, a mesma atitude irreativa ou indiferente que manteve em face das outras correntes literárias do seu tempo. Dentre todas, foi aquela, realmente, a única que deixou na sua forte personalidade uma indelével imprimadura. Todas as suas inclinações o levavam para ela, é certo; mas, mesmo assim, pôde libertar-se da sua rígida ortodoxia para só aceitá-la naquilo que mais condizia com a sua índole estética e suas preferências literárias. Dentre os três cânones dessa escola – o exotismo dos temas; a impassibilidade do artista; a forma perfeita do verso – só se manteve invariavelmente fiel ao último; aos dois primeiros obedeceu de modo incidente e transitório. É que no Brasil, o Parnasianismo – com o seu ideal da composição tersa e perfeita e a sua preocupação do vocábulo raro e da rima rica – fora, antes de tudo, um movimento de bom gosto poético e, digamos mesmo, de fuga ao baroco literário – e não propriamente uma questão de estesia. O que houve com este nome – di-lo o próprio Alberto – “foi a reação contra o Romantismo dos últimos tempos, descorado e flácido, o restabelecimento das boas normas de escrever versos, um protesto contra o enxovalho da língua, um esforço para a mostrar, qual não se via, opulenta e nobre, uma cruzada em prol do bom gosto e em favor da Arte”.
No seu discurso de recepção, pergunta Maurois: – Que é um clássico? E responde: – é um romântico dominado. Parafraseando, poderíamos perguntar também: – Que é um parnasiano? E responder: – é um clássico exigente. Porque, no fundo, a arte parnasiana não é senão uma modalidade requintada da arte clássica.

Daí, embora reagindo simpaticamente ao Parnasianismo, como reagiu, Alberto nem por isso deixou de ser o clássico que sempre foi. Não fora o Parnasianismo e ele teria, talvez, feito longos poemas, de vernaculidade impecável; mas, sem aquela graça, aquela medida, aquela delicadeza de tintas com que compunha, dentro de retângulo de um soneto, pequeninos quadros, ricos de notações paisagísticas, escolhidas com um senso ruskineano da beleza. Sob a influência e o estímulo desta escola, é que pode dar expansão inteira aos seus zelos pela pureza da língua, à volúpia, que sempre o torturou desde as primeiras composições, de trabalhá-la, de bruni-la, de explorar os seus tesouros de expressões, a sua riqueza de matizes, as suas harmonias ocultas; em suma, de encontrar, como ele mesmo dizia, para cada estrofe, “um som novo e diverso”. Este lavor lhe permitiu dar às estrofes graça, elegância, sonoridade, transparência. – Eis em que consistiu o Parnasianismo de Alberto de Oliveira.

O cânone da impassibilidade não o seduziu. Sob este técnico perfeito do verso, exímio no executar, com carinhos de aquarelista ou de ourives, pequeninas miniaturas, onde predomina o traço raro e fino, a notação graciosa ou delicada, palpitava a sensibilidade de um lírico admirável. Há requinte, subtileza de sentimento em todos os seus versos. Neles descobrimos sempre o reflexo de uma emoção subtil, a ressonância de uma vibração interior, uma permanente associação afetiva entre o mundo exterior e o poeta:

Soltam-se dos meus versos, reluzindo,
Aljôfares e lágrimas radiantes;
Ninguém, vendo-os cair como diamantes,
Sabe se estou chorando ou se estou rindo.

Rarissimamente era um puro objetivista, à maneira de Heredia ou de Coppée. Os sonetos de estrita objetividade e molde rigorosamente parnasiano (“Galathéa”, “Galera de Cleópatra”, “Estátua”, “Vox rerum”, “Vaso grego”, “Mazeppa”, “Ponte Vermelha”, “Vaso chinês”, “Syrinx”, “Lendo os antigos”, “Titânia”, “De volta do circo”, “Última deusa, etc.), que lhe valeram o renome de impassível, imerecido em face da sua sensibilidade lírica delicadíssima, foram trabalhos feitos visivelmente com o intuito de dar provas das suas virtuosidades de versejador ou – o que é mais certo – para transigir com as idéias em voga, ou com as exigências da crítica.

Em verdade, depois de prestada essa breve homenagem aos ídolos da época, o poeta retomou logo as linhas mestras da sua personalidade. Voltou ao lirismo e ao panteísmo, que foram as duas notas dominantes da sua emotividade e da sua inspiração. Donde, ao lado de versos do mais perfeito padrão parnasiano, depararmos poemas e sonetos da mais pura emoção amorosa: “Por amor de uma lágrima”; “Nox”; “Mortos para sempre” (série digna da perpetuidade nas antologias da língua); “Manto real”, primoroso pelo engenho, vigor e colorido da execução; e tantos, tantissimos outros... O que lhe dava a aparência de impassibilidade é que nunca expunha o seu coração impudicamente diante do público; antes, procurava velar as suas expansões sentimentais sob formas discretas e decorosas. Não há confidências impuras nos seus versos, nem sentimentos que não sejam honestos e confessáveis. Como Heredia, Alberto devia, naturalmente, achar que “só o gênio tem direito de tudo dizer”...

É este justamente um dos traços mais belos no labor desse perfeito artista: não admitia que se separasse a arte da moral, os valores estéticos dos valores éticos. Na sua obra, estes dois valores se acham harmoniosamente associados: sente-se que o decoro, a decência, a dignidade dos temas era-lhe uma preocupação essencial. Não que lhe faltasse um sentido profundo do sexo; mas, é que lhe tolhia a expansão poética para este lado a sua maneira de compreender a Arte, o seu conceito mesmo da beleza literária e, ainda mais, o sentimento da respeitabilidade e dignidade pessoal, muito vivo nele e em que bem revela os traços e a excelência da sua antiga formação rural.

Daí o asseio da sua arte, a castidade, por assim dizer, das suas poesias em que entra o elemento feminino. Salvo alguns sonetos e poemas, de ligeira feição erótica, da primeira fase (“Afrodite”, “Nova Diana”, “Camisa de alga”, “Extrema Verba”, “Cheiro de espádua”, etc.), os seus livros podem andar nas mãos inocentes das jeunes filles, como os romances de Ardel e Champfleury. Se, lendo os antigos, o poeta procurou um mestre na Antiguidade Grega, este foi certamente o citaredo de Siracusa – e não o de Teos, Teócrito – e não Anacreonte:

Vamos reler Teócrito, senhora...

Vede o recato, a delicadeza, mesmo a timidez com que celebrou as mulheres do seu país. Elas não aparecem na sua lira sob as formas da mulher amante, como na de Bilac: este tipo não se mostra senão episodicamente nos seus versos. O tipo que lhe suscitava, de preferência, a inspiração era o da mulher amada, namorada ingênua e casta, semelhante àquela, de quem diz, na encantadora aquarela “Borboleta azul”, dos Sonetos e Poemas:

Ela, que o amor apenas
Mal conhece da flor, da luz, da aurora,
Das aves e falenas!

Bilac se comprazia em exaltar as mulheres desnudando-as; Alberto, o contrário, exaltava-as, ou vestindo-as de roupagens condignas e discretas, ou no-las fazendo aparecerem, nos seus quadros bucólicos ou descritivos, envoltos em gazes alvas e esvoaçantes, em musselinas de névoas, leves e tênues – como em “O vestido branco”. Todas elas se mostram sempre em atitudes compostas e cheias de pudicícia: nenhum poeta as respeitou mais na sua dignidade e no seu pudor. Dir-se-á que todas foram amadas –, em segredo e castamente –, pelo grande lírico do Livro de Ema...

Nos seus versos encontramos, freqüentemente, os traços deste sentimento amoroso sem mescla de erotismo, puro, simples, às vezes ingênuo. Neles o poeta só derrama mágoas, queixas e desilusões; neles parece só saber cantar inclinações frustrâneas ou fracassadas, não confessadas ou confessadas a medo. Recordai os formosos sonetos que, de certo, todos vós tendes na memória: “Confidência”, “Lembrança”, “Depois da morte”, “Cântico inútil”, “A Conceição”, “Plenitude”, “Vela revolta”, “Enfim”, etc. De todos eles se exala, como uma emanação suavíssima ou um perfume de ternura, um vago aroma de desencanto e melancolia...

Eis a que se reduz a impassibilidade de Alberto de Oliveira. Este belo gigante, aparentemente apático, impassível e frio, era um instrumento de precisão para as emoções mais puras e delicadas...

Esta sensibilidade lírica do grande artista de Ramo de Árvore, que se extravasou em estrofes de deliciosa dicção parnasiana, não revelava a mesma força e riqueza de expressão no domínio da Fé: o sentimento religioso não tinha profundidade no seu coração. Dele se poderia dizer o que de certos cépticos ou incrédulos, como Montaigne ou Des Barreaux, disse, certa vez, Sainte-Beuve – de que não possuía uma natureza “marcada com o selo do Arcanjo”. O seu misticismo não tinha asas: do céu só lhe parecia interessar a abóbada estrelada, o firmamento encendido de constelações. Raramente procurou compreender os mistérios do Cosmo, com os seus milhões de astros e sóis; raramente passou além desta face aparente e iluminada do Universo,

Onde monstros errantes, de olhos de ouro,
Passam, chispando, pela noite escura.

Nas suas invocações místicas – como as do poema “No seio do Cosmo” ou as do formoso soneto “Alta noite”, com que encerra o Ramo de Árvore, e que foi por assim dizer o canto de cisne do poeta – o que há são apenas perguntas, dúvidas, ansiedades. Simples revelações, afinal, de uma alma vagamente inquieta com o mistério do Além: nada mais.

Esta fraqueza do sentimento religioso lhe vinha, certamente, da sua própria natureza moral, não dotada de senso místico; mas, lhe vinha também do que era a mais rica imaginação de panteísta que até agora apareceu em nossas letras. Na verdade, o poeta vivia – como os gregos antigos, que tanto amava – dentro de uma Natureza toda animada de vida consciente e inteligente: por entre seus seres e elementos andava como se fossem irmãos seus, cuja língua entendesse e cuja alma compreendesse, como entendia e compreendia a alma e a língua de nós, seus semelhantes. Não se limitou a descrever e a pintar a Natureza e seus aspectos; fez mais do que isto: humanizou, deu alma a tudo que nela se contém – à flor, à árvore, ao rio, à fonte, ao vento, à lua e ao luar, ao sol, às estrelas? Às florestas e aos campos, bem como aos animálculos, que os habitam.

Esta inspiração panteísta domina quase toda a sua obra. No famoso poema “O Paraíba”, podemos vê-lo na plenitude da sua imaginação antropomorfizadora, na sua capacidade de dar aos elementos a sensibilidade, a inteligência e as paixões do Homem. Em vários poemetos – como, por exemplo, “Borboleta morta” ou “As três formigas”, que são duas obras-primas pela graça da fantasia e do lavor – deixa ressumar toda a sua simpatia pelos pequeninos seres que depara. Dir-se-á que o poeta vive em comunhão com eles, alegrando-se com as suas alegrias e sofrendo com as suas dores. Daí este braço singular, dentre os que mais caracterizam a sua obra paisagística: a ausência quase completa dos grandes ruminantes e a presença freqüente, constante mesmo, destas minúsculas e encantadoras criaturas, em cuja invenção se comprouve o gênio caprichoso e amável da nossa mãe Natureza: aranhas, abelhas, formigas, borboletas, libélulas, besouros, pirilampos, beija-flores. Quase que só esta microfauna –, inquieta, móbil, alada, policrômica, rutilante –, povoa e anima os seus admiráveis quadros descritivos. Nada revela melhor a delicadeza da sua índole moral do que esta eflorescência de ternura, que ressumbra, branda e contínua, do íntimo do seu coração.

Poeta da natureza, embelezado até a fascinação pelos seus efeitos de luz e pela magia dos seus panoramas, não se contentava de admirá-la unicamente; a sua inata vocação panteísta o levava mais longe: levava-o a identificar-se com ela, a confundir-se com os seus elementos, a desejar morrer para ressurgir transfigurado neles. No soneto “Velhas mangueiras”, deixou formosamente expresso este desejo:

Mal estar, opressão, todo o interior tumulto
Se me vai, pouco a pouco, estando a vosso lado.
Em vossa quieta sombra, encontro paz inteira.

Ah! não poder baixar do que hei subido
E, húmus, água, cristal, argila, barro ou poeira,
Ser inferior a v6s para melhor servir-vos!

Num outro soneto, do Ramo de Árvore – certamente um dos mais formosos que produziu – que tem o título “Manhã”, este panteísmo reveste formas de incomparável beleza e atinge uma alta intensidade:

Efunde a urna de Aquário a espaços o chuveiro
Que as flores lava, os brotos abre, o ar purifica.
Bebo-te, ó sazão forte, a seiva agreste e rica
Neste cheiro de chão de serra, que é teu cheiro.

Já seu nevado véu de rendas o espinheiro
Solta; do ingá polpudo a árvore frutifica;
No álveo de areia e pedra e piscas de ouro e mica.
Fartas rolam cantando as águas do ribeiro.

Um dia novo a tudo acaricia e banha.
Que bom fora já ter morrido, para agora
Ver-me esparso em cristais, folhas, eflúvios, lumes!

Para sorrir no sol que doura esta montanha!
Para chorar no tom com que este rio chora!
Para elevar-me aos céus em névoas e perfumes!

Tinha pelas florestas um respeito e um amor de druída. Nas suas crises e dores, nos seus dissabores e mágoas, só o convívio das árvores o consolava:

Floresta de altas árvores escuta;
Em minha dor vim conversar contigo.
Como no seio de melhor amigo,
Descanso aqui da tormentosa luta.

No poemeto “Volubilis”, do Livro de Ema, confessa que foi o amor à Natureza que o levou a dedicar-se à poesia – “poesia casta”, diz. Tão intenso e profundo era esse amor que o fez esquecer até Ema:

Bem haja o amor ignoto
Que à grande natureza eu de toda alma voto,
E que me arrasta a vê-la,
A estudá-la, a senti-la, a amá-la, a compreendê-la;
Amor que faz que até a ti, piedosa e pura,
Eu esqueça, abismado em seu clarão de estrela,
Em sua formosura.

Este panteísmo, essencial à sua criação artística e que a sua sensibilidade de visualista ainda mais acentuou, tinha que o conduzir a tomar, como tema fundamental das suas composições, os aspectos cambiantes e luminosos da realidade que o cercava. Esta particularidade da sua estesia o condenava a ser o que foi – um poeta realista. Mais do que isto: – um paisagista do verso.

Neste ponto, o realismo objetivo de Alberto sofreu, na primeira fase da sua vida literária, por influência dos grandes mestres parnasianos, uma inflexão –, felizmente passageira –, que o levou a orientar-se no sentido do exotismo dos temas. É a fase – aliás de pequena duração – das Canções Românticas, das Meridionais e dos Sonetos e Poemas. Tomado então de uma viva e intensa preocupação helenizante, gostava de freqüentar, em imaginação, a Grécia clássica: ora invocando, junto às aras do sacrifício ou diante do Parthenon, as suas divindades, belas como estátuas; ora percorrendo os seus bosques sonoros, ressoantes do halali das oceânides do cortejo de Diana; ora, contemplando a ronda suave e graciosa das Musas, “de tranças de violetas”, como lá se diz em Píndaro. Fase transitória da vida espiritual do poeta; mas, miraculosa para a sua fantasia, porque fase em que teve a dita de ver

...entre os caminhos
Do mar que a luz da velha Grécia doura,
Anfitrite de pé na concha loura
Arrebatada por dragões marinhos!

Tão grande devia ser o seu embevecimento, então, pela Grécia e os seus heróis que Bilac, do alto da primeira página de A Semana, ao escrever o panegírico de Alberto na Galeria do Elogio Mútuo, protestou contra a calúnia, que lhe parecia ignominiosa, de ter o poeta nascido em Saquarema:

– Senhoras minhas, não acrediteis na calúnia! Quem vos disser que o meu Alberto nasceu em Saquarema mente e calunia este bonito rapaz e adorável poeta. Em Atenas é que ele nasceu, debaixo do céu puríssimo da Hélade, que seus versos revive! Por lá viveu, andou pelo braço do amigo Teócrito, soprando a flauta maviosa entre os mirtais.

Nesta altura é que intervém a Providência (ou a Serpente...), transfigurada numa espécie de pequeno demônio bronzeado, faiscante de subtileza e de malícia. Quero dizer: nesta altura é que intervém Machado de Assis. O artífice de Crisálidas, realista a seu modo e com a sua fina intuição das cousas, sentira o que Bilac não havia sentido: sentira o erro do poeta, o vazio, o artificial de toda esta literatura de imitação. E deu-lhe, então, o conselho gracioso:

“Que lhe importa o guerreiro que lá vai à Palestina? Deixe-se ficar no castelo com a filha dele...”

Machado parafraseava, à sua maneira, o carpe diem do velho epicurista latino. Era como se dissesse ao poeta: – Tome-se da realidade, viva a sua época – e cante-as!

O poeta obedeceu ao conselho do Mestre. Não mais quis preocupar-se com a Grécia e os seus heróis. Menos ainda com os guerreiros que iam à Palestina... Voltou-se para a Natureza, para a formosura das suas revelações materiais e visíveis: para os seus céus – radiosos e constelados; as suas serras – entre cobertas de névoas matinais; as suas paisagens – cheias de encanto e doçura. Estas passaram a ser, realmente, quase que a sua única e grande afeição de artista. No discurso de agradecimento à homenagem da Academia, inaugurando o seu busto numa praça pública, ele mesmo o confessou:

– Inspira-te e canta – disse, reconhecendo o erro e penitenciando-se. – Estas palmeiras valem bem os plátanos e sicômoros gregos – estes rios, o Pneus e o Aqueloo; nem teve a Hélade planuras e morros assim tão verdes, nem céu tão azul. Cálamo ou lira, em mãos de pastores, não tem tom mais doce do que o planger do nosso violão sertanejo.

Estas afinidades pela terra tropical já lhe latejavam na alma desde os seus começos literários, já se denunciavam nas estrofes das Meridionais, um livro dos vinte anos. Então, dizia ele, numa confidência, que lhe pernunciava o futuro:

Ah, como é bom ter em frente
Da casa em que nós moramos
Um claro jardim florente
Um verde mundo de ramos!

Esta confidência vale uma revelação. Descobre-nos que o poeta de “Sabor das lágrimas” preparava-se, subconscientemente, para renunciar à sua Grécia artificial, e à sua Hermê sequiosa, e aos cíatos doirados, e as trirremes, e aos mirtos dos bosques sagrados. Então já cantava os nossos beija-flores e dizia à Musa:

Abre a janela dourada
Que dá para a natureza!

Desde este momento, o poeta denunciava o seu destino, traçava a orientação futura da sua arte. Esta “janela dourada que dá para a natureza” ficará sendo como a expressão simbólica da própria arte de Alberto de Oliveira. Daí por diante, o tema principal dos seus versos vai ser a Natureza. Ou melhor, a nossa natureza – a nossa terra, na beleza sem par das suas paisagens, clara, harmoniosa, insolada, enluarada, rica de formas e de cores. Neste ponto, nenhuma poeta descritivo, nem mesmo Gonçalves Dias, o excede em nossa história literária. Nenhum deles o supera na seleção dos traços mais belos e expressivos do nosso panorama natural: nenhum os arranjou com mais gosto, mais arte, mais perfeição, mais variedade de combinações e de temas.

Foi precisamente este encantamento da Paisagem, este fascínio pelos aspectos pitorescos da nossa Realidade, que o tornou indiferente ao Simbolismo e à sua técnica. Esta escola, que teve excelente cultores em nosso país e que, como tema de inspiração, preferia a paisagem interior à paisagem exterior, a bruma e a penumbra ao sol e à claridade, não podia exercer nenhuma influência sobre este esteta de visão objetiva, sobre este artista do relevo e da cor, sobre este poeta das rechãs ensolheiradas, dos recortes claros e nítidos das serras, a quem a bruma só interessava no breve instante de se dissipar ao primeiro raio de sol, na manhã sonora:

Ele, raio de luz, sempre mais quente;
Ela, névoa fugaz, sempre mais fria.

Este objetivismo naturalista e panteísta é a nota quase exclusiva da sua inspiração e da sua obra. Como que a sua emotividade não vibra senão diante dos aspectos da natureza que o cerca. O mundo cósmico – com a variedade das suas expressões, as galas dos seus coloridos, os seus sóis brilhantes, as suas noites estreladas ou os seus luares melancólicos – é que lhe arranca os melhores pensamentos, é que lhe produz o choque emotivo para as recordações de amor ou para as meditações filosóficas: quando só consigo, sem esta moldura natural, é raro um poema seu. Embora vivesse por mais de cinqüenta anos numa grande metrópole, nos seus poemas não deparamos as agitadas multidões urbanas – a “rude humanidade”, que tanto interessava a Coppée ou a Verhaeren: a cidade não oferecia, por certo, nenhum motivo capaz de comover a sua sensibilidade de artista ou impressionar a sua retina de pintor. Mesmo dentro do tumulto das nossas ruas, permanece ruralista e bucólico – como Teócrito ou Virgilio. Não lhe sobra, sequer, inspiração para as éclogas, os idílios, as pastorais, ao modo de Sá de Miranda ou Bernardim Ribeiro – fundo de quadro rústico, mas onde se move, como tema principal, o grupo humano.

Panteísta profundo, nada disto o interessa, ou só o interessa secundariamente; o que sente e admira, realmente, é a natureza; o que o seduz são os aspectos coloridos e cambiantes da Paisagem. Como Ruskin, também lhe devia parecer que está fora da humana inteligência conceber o Belo sem auxilio da Natureza. Poderia repetir a confissão de Pesquidoux: La terre m’enchante comme une créature humaine; mas, entendida à maneira do seu visualismo de meridional. Porque a terra que o encantava não era a terra amada de Pesquidoux – terra de lavradores e de lavouras, arroteada, semeada, montada, cultivada, chargée d’humanité, como diria Bellessort. O que o seduzia era a Terra na sua realidade primitiva, tal como saiu das mãos da Natureza, a Terra sem toque de humanidade, na sua espontaneidade nativa, na inocência dos primeiros dias da Criação: pura expressão da vida e da beleza cósmicas, com suas florestas, seus rios, suas montanhas, seus vergéis enflorados, seus poentes, seus plenilúnios, seus céus palpitantes de estrelas.

Este enamorado da Natureza, este poeta da Paisagem não tinha a curiosidade das viagens: era um temperamento sedentário, um imigrador de vôo curto. Nunca se aventurou a viajar pelo estrangeiro. Mesmo no seu país, fora dos lugares do seu berço, só andou por Minas, São Paulo e Paraná, em rapidíssimas excursões. Na verdade, quase que só se moveu dentro do limitado triângulo: – Rio – Niterói – Petrópolis. Não o atraíram as paragens, tão luminosas e características, do Extremo-Norte e do Nordeste; nem os amplos, ilimitados horizontes dos pampas, no Extremo-Sul.

Não tendo saído, por assim dizer, da sua província, é natural que os seus poemas se embebam da claridade e da doçura dos climas meridionais. Se, como afirma Henri Berr, o homem carrega consigo, interiormente, ao deslocar-se para outras regiões, as paisagens do seu primitivo habitat, o cenário que acompanhou Alberto por toda a vida foi o pequeno quadro da sua terra natal. É certo que cantou, e maravilhosamente, a amenidade das montanhas de Minas e o esplendor dos céus de Curitiba, – de “prata e carmim”, de “carmim e ébano”, de ébano e fogo”; mas, a fonte oculta de toda a sua inspiração sempre a foi buscar nas profundezas do seu subconsciente; – quero dizer: neste fundo de primitivas impressões do seu torrão de nascimento. Como Heredia, dos cimos da península kímrica, sentia reviver, à brisa perfumada que lhe vinha dos longes dos horizontes marinhos, as recordações dos nativos prados antilhanos; também Alberto, diante de outras paisagens, sempre via emergir, dos limbos da sua memória de nostálgico, as primeiras impressões de adolescência e, com elas, todo o mundo de imagens e emoções da sua terra saquaremense, principalmente da sua terra de Palmital, umbrosa e fértil. Os primeiros deslumbramentos de criança diante da natureza ridente do sitio em que se assentava a casa solarenga, com as suas serras revestidas de florestas densas, matizadas pela copa amarela dos ipês floridos, os seus regatos cantantes, os seus vargedos cheios de espinheirais e dormimideiras, as suas cercas afogadas em tufos de melão-de-São Caetano e ahimadas dos zumbidos dos besouros e das abelhas – tudo isto fora absorvido e retido pela sensibilidade do poeta ainda em ser e passou a formar, para sempre, a trama subconsciente de toda a sua imaginação e emotividade artísticas. Quem penetrar a intimidade da sua criação poética, verá logo que a inspiração só lhe brotava de dentro da alma, clara e fresca, quando as impressões dos aspectos presentes, colhidas pela sua pupila ardente de visualista, vinham a incidir – acordando-o, como numa célula foto-elétrica – neste fundo de reminiscências primitivas.

O poeta nascera numa sofralda de montanha, em região sombreada e úmida. O selo não apresenta ali a uniformidade e a monotonia da planície; ao contrário, é levantado, cortado de ondulações, cujo relevo, se não apresenta a enormidade das cordilheiras, como a dos órgãos, também não apresenta a pequenez daqueles “oiteiros benévolos”, de que nos fala Antero de Figueiredo, a propósito de terras de Espanha, e encontradiços em terras mineiras e paulistas.

Demais, neste recanto do interior, retraído e oculto por detrás da faixa agreste das restingas, que o mar perfuma com a acridez das suas maresias e das suas salsugens, o céu é de um azul nítido, exato e justo, de transparência irreal e inexprimível, principalmente nos meses de Abril a Julho. Nestas épocas, as nuvens, sempre freqüentes, talvez pela proximidade do oceano, – e que tão formosas estrofes inspiraram a Alberto –, mostram-se tocadas da graça de uma beleza inefável; tal que o espetáculo de as contemplar, na limpidez do anil imaculado e na aparente imobilidade do seu vôo, sempre me dá a lembrar o daquelas outras, também do Céu do Atlântico, evocadas por Taine, e que, paradas na transparência do azul puríssimo de Biarritz, apareciam-lhe como que rodeadas d’une gloire angélique, fazendo-o pensar aux âmes du Dante arrêtées en extase à l’entrée du Paradis.

Não estaria aí, ainda, a razão da quase ausência do Mar na sua obra? Realmente, neste pintor de paisagens, a Marinha não era o seu forte: nunca quis disputar a Castagnetto, como certamente pretendeu disputar a Parreiras, o pincel de colorista. É paradoxal, sem dúvida; mas, a verdade é que, nos versos deste poeta, filho de uma região marítima e que, desde menino até o último dia de vida, manteve-se em contacto permanente com o mar, não se sente aquele odeur de varech, que Henri Bordeaux encontra nas páginas do bretão Le Goffic e que encontramos nos versos de Vicente de Carvalho. Nos seus poemas, só o céu, a floresta e a montanha pompeiam, só eles os animam com a sua magia colorida. O mar neles só aparece de forma rara, episódica.

Sim, o grande paisagista da “Tempestade” e da Alma Oceânica não tinha simpatia pelo mar – “o belo mar selvagem das nossas praias solitárias”. O mar, cuja imagem lhe ocorre nos momentos da inspiração, não tem a magnificência e a grandeza generosa do mar de Vicente de Carvalho; é sempre um mar pressago e mau, mar de naufrágios e náufragos, rebentando as suas cóleras sobre rochedos e enchendo as praias dos destroços de barcos e velas. Quem conhece a vida pregressa do poeta, o lugar do nascimento e a infância, sente logo que este mar é o mar da costa de Ponta Negra, cujos bramidos cavernosos e horrendos, repercutidos e prolongados até o retiro do Palmital, encheram-lhe a alma de criança de um pavor pânico – como também encheram a minha. Mar que ele, evocando reminiscências da meninice, meio século depois, assim nos descreve num dos mais belos poemas da formosa coleção da Alma Oceânica:

Um som maior e de cadência cava
Reboava agora; ia-se amortecendo,
Tornava logo, em mór fragor reboava.

– “Que é isto, velho?” – interroguei, tremendo.
Ele voltou-se: “Aquieta-te – me disse –
É o mar na costa a rebramir horrendo.

Talvez tu’alma noutro tempo o ouvisse,
Sem o ouvir; que andava de permeio
A algazarra da tua meninice.

Como que há ali dois mares: feito
Um de água e outro de sons, um contra a plaga
Túmido a espedaçar, mugindo, o peito;
Outro em ecos rolando no ar: a vaga
Líquida se desfaz, mas a sonora
Léguas e léguas brame e se propaga.

Vai do Aterrado e Palmital afora;
Sobe as rechãs; vai, pelas vertentes;
Retumba às vezes, outras vezes chora.

Estes os brados são intercadentes
Que estás a ouvir.” À bárbara harmonia
Demos uns passos mais, – ambos trementes,

A alma ansiando à emoção daquele dia.

Este o mar das recordações infantis do poeta. Como em Nabuco –, guardando na memória para toda vida aquela encantada revelação do mar que lhe deu a primeira vaga, verde e rolante, contemplada entre coqueirais, à orla da praia de Massangana –, em Alberto nunca se lhe apagaram da alma estas dolorosas impressões de criança: ficaram-lhe para sempre nos arquivos da memória como a imagem mesma do Mar. Cinqüenta anos mais tarde, vede como ele recorda este ressôo, este clamor funesto no formoso soneto “Choro de vagas”:

Não é de águas apenas e de ventos,
No rude som, formada a voz do Oceano:
Em seu clamor – ouço um clamor humano,
Em seus lamentos – todos os lamentos.

São de náufragos mil estes acentos,
Estes gemidos, este aiar insano;
Agarrados a um mastro, ou tábua, ou pano,
Vejo-os varridos de tufões violentos;

Vejo-os, na escuridão da noite, aflitos,
Bracejando, ou já mortos ou de bruços,
Largados das marés, em ermas plagas...
Ah! que são deles estes surdos gritos,
Este rumor de preces e soluços,
E o choro de saudades destas vagas!

Este o mar que acode à imaginação do poeta: sempre ressoante de convulsões e gemidos, mais ouvido do que visto e que forma o fundo subconsciente das suas reminiscências do Oceano. Não é o mar largo e livre, que rola as suas vagas de esmeralda pelas praias marulhadas de Copacabana e de Ipanema e que os seus olhos de artista tantas vezes contemplaram, alteando-se, inquieto, na sua verde, radiosa, pinturesca mobilidade. Também, ainda menos, é o mar da Guanabara, com a sua graça imóvel e acolhedora, mansa lagoa, a cuja margem viveu quase a vida toda e que sempre lhe pareceu mais uma

...enseada, em que o mar choro de fonte
Antes tem que de vagas.

O mar evocado pela imaginação deste paisagista, que passou toda a existência à orilha do Oceano, não é um mar de cores – esse painel azul e verde, encanto quotidiano dos nossos olhos de praieiros. É um mar sonoro – aquele mesmo “mar de sons”, funéreo e mau, que, cinqüenta anos antes, na sua menine, havia retransido e apavorado a sua tímida alma de criança. Esta guardou-lhe, por toda vida, na reclusão da sua subconsciência profunda, os ecos da lúgubre ressonância, como as valvas dos búzios o confuso marulho do oceano. Ouvi-lhe esta confidência:

Suponho achar-me, às vezes, quando penso,
Voltado sobre mim, no que hei vivido,
Ao pé de um mar, de onde um clamor imenso
De humanas vozes vem ferir-me o ouvido.

E aflição e terror na alma não venço,
Conhecendo, gemido por gemido,
Tudo o que amei, agora sob extenso
Lençol de negras águas submergido.
E inda parece um braço no ar se agita
E chamando-me, como em cena inferna,
Espectral multidão, luzente e aflita,

Grita, e estes brados que ululando soam,
Dentro em meu coração, como em caverna,
Abalando-o, rememoros reboam.

Ele é todo assim, a sua poesia é toda assim: reflete sempre este fundo de impressões primitivas –, de infância –, colhidas pela sua receptividade de artista inconsciente nessa clara madrugada da vida!

Ninguém, em verdade, foi mais homem do seu meio. Primeiro: do seu meio meridional. Depois: do seu meio saquaremense. Por fim: do seu meio palmitalense.

Na evolução literária do poeta de Alma em Flor e de Terra Natal, há um traço que, pela insistência com que se reproduz, constitui, realmente, uma constante da sua personalidade de homem e de artista. Este traço é a freqüência com que retorna, em espírito, sempre cheio de emoção e ternura, à sua pequenina morada rústica, às paisagens do seu primitivo pago do Palmital – mesmo quando se extasia ante as paisagens de outras terras.

Este retorno nostálgico ao pequenino rincão natal é um dos aspectos mais encantadores do seu delicado temperamento de poeta. Tendo saído aos doze anos, mais ou menos, do seu verde Palmital, nunca mais lá voltou; entretanto, jamais olvidou o seu lugar de nascimento.

Nas Canções Românticas, aos vinte e poucos anos –, quando “amava as lágrimas, contanto que caíssem de uns olhos bonitos”, como disse Machado de Assis –, nem por isto esquece a sua amorável terra de Saquarema. É com insistência que o seu pensamento se volta para ela:

Sabes para onde vão meus pensamentos?
Ah, vão todos perdidos, vão à toa
Buscar a sombra de tua casa branca
Alevantada à beira da lagoa.

O poeta recorda uma paisagem típica da sua terra – a lagoa de Saquarema, à margem da cidadezinha, onde, vindo do seu sítio do Palmital, estudou as primeiras letras.

Em Alma em Flor, já aos quarenta e poucos anos, procura recordar os tempos de adolescência e para logo todo um mundo de visões coloridas lhe enche a memória e acorda a emotividade:

I

Foi... Não me lembro bem que idade eu tinha,
  Se quinze anos ou mais:
Creio que só quinze anos... Foi aí fora
  Numa fazenda antiga,
  Com o seu engenho e as alas
  De rústicas senzalas,
  Seu extenso terreiro,
Seu campo verde e verdes canaviais.
Era... Também o mês esquece agora
  À infiel memória minha!
Maio... Junho... não sei se Julho diga,
Julho ou Agosto. Sei que havia o cheiro
  Do sassafrás em flor;
Sei que era o céu azul, e a mesma cor
Sorria num gradil de trepadeiras;
Sei que era ao tempo em que na serra, além,
Cor-de-rosa se tornam as paineiras
De tanta flor que cor-de-rosa têm.

II

Sei que um perfume intenso em tudo havia.
Era, enfeitada e nova, a laranjeira,
E o pomar verde pela vez primeira
Florido; era na agreste serrania,
Com os botões de ouro e a espata luzidia
Rachando ao sol, a tropical palmeira;
Era o sertão, era a floresta inteira
Que em corimbos, festões e luz se abria.

Sei que um frêmito de asas multicores
Se ouvia. Eram insetos aos cardumes
A rebolir, fosforeando no ar.

Era a Criação toda, aves e flores,
Flores e sol, e astros e vagalumes
A amar... a amar... E que ânsia em mim de amar!

Quando compôs a coleção do Céu Noturno, quase qüinqüagenário, como que esta nostalgia lhe cresce cada vez mais. Freqüentemente, uma onda de saudade lhe alaga o coração:

Ah, não poder tornar aonde vivi outrora,
Ao meu verde Palmar, e seu isolamento,
Para onde agora vai, mais lhe querendo agora,
Todo o meu pensamento!

Dez anos mais tarde, vemo-lo evocar, nos formosos poemetos de Natália, de tão acentuado sabor camoniano, a obscura terra adorada, que jamais lhe saíra da memória:

Iam vinte anos desde aquele dia,
Em que, com os meus, da terra onde nascera,
Adolescente ainda, eu me partia.

O que não dera então, o que não dera
Ainda hoje por tornar atrás comigo,
Entrar-lhe os campos, ser o mesmo que era!
Lá me ficava com o seu tecto amigo
A velha casa, a várzea verde e em flores,
E verde e em flores o  pomar antigo;

E o engenho, a encher aqueles arredores
Com o seu bufido, com o bater pausado
Das pás cantantes dos ventiladores;

Tudo quanto em menino havia amado,
E em que minh’alma nova, a abrir-se, rindo,
Tinha parte de si talvez deixado.

Em vôo, ao pé do rio, às voltas indo,
Em vôo, em cada moita, airada e inquieta,
Qual das asas o pó dourado e lindo

Deixa por onde passa, a borboleta.

O apego do poeta de Alma e Céu não era apenas ao município do seu berço: era ao próprio lugar do nascimento, ao antigo solar paterno, mergulhado num fundão de mata, ao sopé da Serra do Palmital. Quando criança e ainda na escola primária, em Saquarema, sempre sentia –, no meio da algazarra dos companheiros e entre os bramidos do Atlântico, à beira de cujas praias se assenta a pequena vila –, tomado inexplicavelmente de um vivo e fundo sentimento de nostalgia pelo seu recanto agreste de Palmital, pela sua fazenda, pela sua casa grande, pela família que lá deixara:

– Sentia-me feliz – confessa ele, na sua autobiografia, narrando os seus tempos de colegial – e só uma cousa me aguava a satisfação: a saudade que tinha da minha casa com o seu largo campo estendido e verde e a mata perto, rumorejando.

Ora, todo Alberto está nesta confissão. Essa saudade de colegial ele a conservou durante a sua longa vida – e foi a razão profunda e suprema da sua arte maravilhosa. Toda a sua inspiração parte daí e aí encontra força, movimento, expressão: a sua alma de artista gravita, por mais de meio século, em torno dessas imagens evocadas pela sua remitente nostalgia. Dir-se-á que o poeta nunca pôde entrever o mundo senão através desta pequenina janela, que se abria, iluminada, sobre esse quadro de reminiscências primitivas, interposto entre a sua consciência e a realidade exterior, como se fosse uma tela transparente e colorida. Tudo o que, mais tarde e em outras paragens ou sítios, viu como que se impregnava das cores desta imagens longínquas, dos matizes esbatidos desta recordações distantes.

Os poemas que consagrou especialmente à terra natal – Alma em Flor e Natália – e que compôs já em plena maturidade, são o que de mais formoso existe em nossa literatura como descrição da nossa natureza e também como expressão de sensibilidade artística, de delicadeza emotiva, de ternura nostálgica. Em Alma em Flor, a paisagem se mostra aos nossos olhos cheia de tantas notções justas e com tamanha precisão de linhas e tintas que parece ter sido pintada tendo ele à vista o pequeno mundo, onde desabrochou o seu primeiro amor. Só uma emoção profunda poderia suscitar as recordações de tantos traços encantadores e subtis, imperceptíveis, em regra, ao normal da nossa acuidade. Tinha o poeta uma memória fácil, nítida, precisa, fidelíssima – porque destas a que Ribot chama “afetivas”: lembra-se de tudo com simpatia e ternura e é como simpatia e ternura que tudo fixa na evocação maravilhosa.

Disse Maurois que a memória é uma grande artista, porque, ao selecionar as percepções que devem perdurar, só deixa sobreviver as melhores, as mais agradáveis, as mais belas: daí as recordações evocadas apresentarem sempre um aspecto de conjunto que as torna verdadeiras obras d’arte. No entanto, em Natália e Alma em Flor, a memória do poeta não foi artista porque eliminasse os aspectos mais desagradáveis e feios, deixando sobreviver unicamente o que havia de raro, gracioso, amorável ou pitoresco; mas, porque assim era o quadro revivido, a paisagem descrita tinha de si mesma graça natural, beleza sua, que os versos do poeta refletiram.

Na verdade, a terra fluminense, na região em que nasceu Alberto de Oliveira, possui, como poucas, todos os característicos de uma obra d’arte natural. Nela se acumulam, por uma singular disposição geográfica, e coexistindo a poucos passos uma da outra, a paisagem rural, a paisagem lacustre e a paisagem oceânica, imensurável e ondeante. No interior agrícola: de um lado – a leira fértil e florida das várzeas; de outro – a Serra do Palmital, sóbria e bela, na sua grave e severa vestidura florestosa. Um passo adiante, e vemos: aqui, a lagoa – espécie de mar tranqüilo, de águas transparentes, cheias de balsedos e pernaltas, “mergulhões e irerês, que o chão palustre habitam”; ali, a restinga, que a margeia, arenosa e seca, coberta de cardos híspidos, de palmas duras, de bosques espessos de cambuízeiros, esmaltada pelos corimbos esclartes das epífitas enflorescentes. Mais outro passo, e é – à orla de praias alvísssimas ou junto de rochedos abruptos – a imensidade marinha, o Atlântico em toda a sua majestade, na grandiosidade selvagem das suas agitações e das suas cóleras indomadas.

Eis o cenário em que nasceu e viveu o poeta, despreocupado e feliz, na sua infância e na sua adolescência. Eis também o cenário em que viveu –, em espírito, com emoção e ternura –, na sua mocidade, na sua maturidade e na sua velhice.

Saquarema, a terra natal de Alberto de Oliveira, não lhe deve cultivar a memória somente porque ele a honrou com a glória imensa e indestrutível. O grande poeta não foi apenas o seu filho mais ilustre; mas, também o seu maior cantor. Ninguém a sentiu mais na sua formosura. Ninguém disse, em versos mais inspirados e ternos, do encanto da terra admirável, da poesia dos seus rios, dos seus regatos, das suas lagoas, das suas restingas, das suas serras cobertas de neblinas, das suas florestas rumorosas. Teve para com ela todas as afeições de um filho carinhoso: guardou sempre, no coração, mesmo ausente, a lembrança da casa paterna e, nas pupilas marejadas, as linhas e as cores das paisagens do seu torrão nativo. Mesmo no apogeu da glória, entre os aplausos da admiração nacional – notai bem – nunca deixou de recordar-se do seu pequenino rincão do Palmital, nunca deixou de orgulhar-se dela, a pequenina e formosa Terra Saquaremense.

Sem dúvida, sobravam-lhe razões para assim querê-la: além do berço, ela lhe dera o que poderíamos chamar a subconsciência artística, a base emotiva à sua arte perfeita. Mais: dera-lhe ainda –, ora direta, ora indiretamente –, o principal, o mais precioso daquilo que Machado de Assis chamou “a matéria dos versos”. Porque é daí, por certo, deste foco obscuro e invisível, que deriva toda a sua arte clara e pura como daquele imperceptível “fio de água viva”, de um dos seus poemetos,

a gotear de lizins de esconsa pedra,

derivam as torrentes escachoantes, que alagam e fertilizam as planícies.

Este caráter regionalista da inspiração do grande poeta não lhe tira à obra a condição de universidade. Regional nos seus motivos, ela é universal no seu sentido.

Na realidade, toda obra d’arte é local, episódica, pessoal na sua gênese. O artista é que, depois –, pela imaginação e pela abstração –, eleva os acidentes à categoria do geral, erige os aspectos particulares em símbolos, fá-los subirem do local, do episódico, do concreto ao nacional, ao abstrato, ao impessoal; passa, em sua suma, como diria Platão, de contemplação das cousas belas à contemplação da própria Beleza. E assim, a sua elaboração adquire este toque de universalidade, que caracteriza as criações do gênio.

É o que acontece com a obra de Alberto de Oliveira. Dela se pode dizer, à maneira dos doutores medievais, que toda a nossa natureza está contida em qualquer dos seus sonetos ou no menor dos seus poemas. Tota in minimis existit natura.

Neste ponto é que começo bem a compreender a significação do vosso gesto, dando-me a honra, que nunca poderei agradecer devidamente, de suceder a este poeta, tão profundamente tomado da paixão da sua terra natal. Sim: era preciso que aqui estivesse alguém também formado sob aqueles mesmos climas doces e amáveis, alguém também vindo dali, trazendo dentro da alma, como ele trazia, a imagem sonora e deslumbrante dos seus oceanos, das suas montanhas, das suas florestas e dos seus céus resplandecentes. Era desejo seu, bem o sabíeis, de ver-me aqui, sob esta cúpula, trazido pela sua mão amiga para a glória da vossa companhia. Este desejo benévolo não o pôde ele realizar em vida; mas, o vosso carinho militante para com a sua memória e a extrema indulgência vossa para comigo permitiram que se realizasse nesta hora em que me dais a oportunidade, tão grata ao meu coração e ao meu espírito, de dizer estas palavras em louvor do grande poeta, príncipe das nossas letras e meu conterrâneo glorioso. Só assim, senhores acadêmicos, consigo justificar a distinção da vossa escolha e a minha presença entre vós. Tamanha a desproporção entre a minha pequenez e a grandeza do meu antecessor. Tamanha a distância entre a minha obscuridade e a sua glória radiante.

Realmente, quando o estudo na sua vida e na sua obra, Alberto de Oliveira dá-me a impressão de um predileto da Fortuna, de um querido dos Deuses, escolhido para uma missão de beleza. Fê-lo o destino nascer numa terra encantadora pela amenidade do seu natural, cheia de claridade e de harmonia. Fê-lo criar-se e educar-se no seio de uma sociedade saturada de civilização, preexcelente pelo seu equilíbrio, pela sua moderação, pelo seu gosto artístico, pelo polimento da sua cultura. Deu-lhe, além disto, um tipo hígido e belo, uma pupila sedenta de luz e colorido, uma índole feita de delicadeza e de bondade. Dotou-o, por fim, do mais precioso dos dons: uma sensibilidade, não apenas de poeta, mas também de artista, uma estesia subtil, o horror a tudo o que excede o cânon grego – da graça, da medida, do ritmo. E tão compenetrado da sua arte, que horas antes de morrer, recitava, em surdina, nos anseios da pré-agonia, estrofes de Camões... Dele bem se poderia dizer, assim, que os fados o quiserem tanto que a sua morte, à maneira da de Sófocles, foi como que a última vibração de uma lira que se partiu...

Cantor da natureza brasileira, o maior de que se honra a nossa história literária, ele soube exaltar, no seu plectro de ouro, tudo o que de mais belo e encantador existe nos céus, nos ares e na superfície da nossa terra. Todos os seres pequeninos e alados da nossa fauna. Todas as espécies delicadas e graciosas da nossa flora. Todos os reflexos radiosos dos nossos céus meridionais.

Nenhum outro poeta, qual ele, nos fez compreender e sentir mais viva e intensamente a múltipla e variegada beleza da nossa terra. Com estas tribos bárbaras, que, segundo os antigos, habitavam junto das cataratas do Nilo e, ensurdecidas pelo seu fragor permanente, não mais lhe ouviam os ruídos; assim também nós, envolvidos pelo constante esplendor da nossa natureza, vivíamos como cegos e inconscientes aos seus encantos. Dar-nos esta consciência – eis a missão do grande poeta. Não é certo que todos os nossos aspectos e paisagens passaram a ter, depois dele, aos nossos olhos descuidados outra sedução, outro amavio, outra significação, em suma? Para celebrar-lhe a morte, bastaria recordar aqui as estrofes sonoras dos Sonetos e Poemas:

– Astros, sol, amplidão, esferas de ouro, céus,
Nuvens, sopros de mar e pássaros da aurora:
A grande árvore cai! Mandai-lhe em pranto agora
O vosso último adeus!
Cosei-lhe em flor e em luz esplêndida mortalha,
Florestas tropicais!

Talhados no bronze da mais pura e clássica linguagem, os seus poemas hão de ficar entre os mais perfeitos padrões da formosura do nosso idioma e da capacidade artística da nossa gente. Sobre eles poderemos repetir aquela predição de Lugones sobre a obra de Sarmiento: – Todo acaba en tumba sobre la tierra, menos la palabra hermosa.

Realmente, é este o destino que está reservado à obra do grande poeta fluminense. Pelos seus nobres atributos de inspiração e sensibilidade, pelas suas altas qualidades de medida e de harmonia, pelas suas raras virtudes de timbre, de sonoridade, de ritmo, ela sobreviverá, certamente, pelos tempos em fora. Entre tantos e tão puros predicados, que a enobrecem e singularizam em nossas letras, dois deles, por si sós, serão bastantes para lhe assegurar a imortalidade – porque nunca passarão: a paisagem e a língua, a língua do nosso povo e a paisagem da nossa terra, uma e outra refletindo-se na limpidez do cristal das suas estrofes, uma e outra aí vivas e eternas na glória da sua beleza imperecível.