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Discurso de posse

Senhores Acadêmicos:

Perdoai-me que, subindo a esta tribuna, sejam minhas primeiras palavras as de reverência à memória de quem foi de vossos maiores e por tantos anos a abrilhantou e a quem devo tudo quanto me permite falar hoje diante de vós, pois que, em verdade, foi para mim um pai e um guia no mundo das coisas da inteligência: Medeiros e Albuquerque.

Nesta casa, que ele ajudou a fundar e de que a morte o ausentou há 21 anos, encontro sempre o eco de seu nome, de que eu trago a parte que nosso pai nos transmitiu, mas que, por isso mesmo, me confere um sentimento de grande humildade no confronto inevitável que fareis entre o que ele foi e o que eu possa ser.

Para sua memória se voltam neste momento os olhos de minha alma, em um preito de saudade que se aviva neste instante com a solenidade desta investidura. Saudade e gratidão!

Perdoai-me, Senhores Acadêmicos!

MINHA ELEIÇÃO 

A minha admissão a esta ilustre Companhia oferece algumas singularidades que lhe dão aspectos especiais.

Nenhum de vós, que tendes assento ao mais alto cenáculo da cultura brasileira, bateu-lhe às portas durante tanto tempo e com tanta constância quanto eu, para nele, afinal, obter entrada.

Por isso mesmo creio que, a não ser o Barão de Ramiz Galvão, culto e respeitado helenista, e o infatigável historiador Rocha Pombo, ninguém aqui chegou carregado de tantos anos de uma vida inquieta e acidentada, mas, para mim, cheia de compensações, das quais hoje me chega a maior e mais constantemente desejada.

Por outro lado, contam-se pelos dedos aqueles que mereceram a honra desta admissão sem nenhum outro concorrente a disputar com ele os vossos votos. Esta é uma circunstância que, para mim, dá ainda maior valor ao vosso veredicto de acolhimento, pois que, em verdade, o que concorre sozinho é julgado pelo que possa intrinsecamente valer por si, e não no confronto entre valores maiores e menores de vários que se apresentem à vossa escolha. Cada voto que o candidato único recebe, permitindo-lhe o acesso junto de vós, tem, nessas condições, o peso de um julgamento severo e ímpar daquele que o recebe.

Não me engana a vaidade em crer que foi o meu valor intelectual o que julgastes.

Encontro nesse julgamento a benevolência de quem quer premiar a constância e a fidelidade no amor a esta Casa, fidelidade e constância de que dei provas nessa repetição de vezes com que postulei a minha candidatura desde moço e a fui repetindo em épocas esparsas até atingir e ultrapassar aquilo que, por eufemismo, se convencionou chamar a idade provecta.

Concretiza-se assim um sonho de mocidade.

Se as emoções dessa concretização são diferentes na forma e talvez em sua exteriorização, não diferem na sua intensidade interior.

TOBIAS BARRETO

Quis o Destino que eu viesse ocupar a cadeira que tem por patrono um nome que se fixou na minha admiração desfile os tempos de minha adolescência: Tobias Barreto!

A minha geração iniciou-se no conhecimento das humanidades, que plasmam a intelectualidade dos jovens, em um momento em que o positivismo dos fundadores da República, separando do Estado a Igreja, criava um ambiente de grande liberdade espiritual, que nos levava a admirar as grandes obras filosóficas de cunho materialista então em voga.

Cada um de nós guarda lembrança dos livros que marcaram fundamente a época de sua formação intelectual. No ambiente do nosso velho Internato do Ginásio Nacional, posteriormente Internato do Colégio Pedro II, havia, sem dúvida, espiritualistas. Mas a grande maioria estava empolgada pelas concepções materialistas do Universo.

Os meninos de meu tempo não jogavam futebol. Como divertimento, apostavam corridas à semelhança do turfe, dando-se a si próprios nomes dos cavalos mais famosos. Jogavam pelota em um paredão do Colégio. Faziam um jornal manuscrito, onde extravasavam em versos lúbricos o erotismo da idade. E, nas horas vagas, discutiam acaloradamente os Enigmas do universo ou a Origem das espécies e até a do próprio mundo!...

Cada qual procurava ler mais para dominar os debates.

Dois livros me abriram, nessa época, os olhos da inteligência para a compreensão material da vida: Força e matéria, de Büchner, e O conflito, de Felix le Dantec.

Ficaram tão profundamente enraizadas em minha inteligência as idéias baseadas nessa concepção materialista da vida, que não somente nela me tenho mantido sem nenhum momento de dúvida, como não contenho a minha admiração por quantos dela participam e a proclamam sem rebuços e com fidelidade.

Quando o acaso me fez conhecer a filosofia materialista de Tobias Barreto, passei a estimá-lo.

Na introdução de seu estudo sobre menores e loucos no direito criminal diz Tobias Barreto, com aquele seu espírito audacioso e temerário:

Em nome da religião, disse o sublime gnosta autor do 4º evangelho: no princípio era a palavra (in principio erat verbum); em nome da poesia disse Goethe: ao princípio era o ato (im Anfang war die Tat); em nome das ciências naturais disse Canes Sterne: "no princípio era o carbono" (im Anfang war der Koblenstoff); em nome da filosofia, em nome da intuição monística do mundo, quero eu dizer: "no princípio era a força e a força estava junto ao homem e o homem era a força!

É claro que a palavra "força", do alemão Macht em uso corrente na filosofia monística de então, correspondia ao que a energética consideraria a expressão dinâmica da energia universal. Força é, pois, energia!

Essas afirmações revestidas da coragem audaciosa de um gênio haviam fatalmente de impressionar o jovem materialista que eu era e marcar em sua memória o nome de seu autor como o de um luminar e guia.

O Destino me veio colocar neste cenáculo de cultura sob o patrocínio desse nome.

Ainda que me não ligasse a ele essa comunhão de idéias, como psiquiatra eu me sentiria ufano de ter como patrono nesta casa o nome daquele jurista que reivindicava para os médicos e só aos médicos o "apreciar definitivamente o estado normal ou anormal da constituição psicofísica dos criminosos". Tão longe ia Tobias Barreto na valorização dos técnicos médicos no exame do criminoso, que chegava a dizer que "eles não devem atestar esse estado, mas, antes, devem julgá-lo, magistrática e autoritariamente!"

Como pode um psiquiatra, que tem visto julgamentos contrários às conclusões da perícia psiquiátrica, deixar de ufanar-se de um tal patrono?

E como pode um psiquiatra dos tempos atuais deixar de reverenciar o nome daquele que, há 71 anos, antevia as concepções hodiernas da integralidade biopsíquico-social da personalidade humana nas suas inter-relações com o meio, quando dizia: "o homem é todo feito à imagem, não de Deus, porém da natureza, isto é, do Céu que ele contempla, do ar que respira, da terra em que pisa, do leito em que dorme e até das flores que colhe, se não até dos lábios que beija!"?

Compreendo o entusiasmo dos jovens de seu tempo e que Graça Aranha, que abraçara Tobias Barreto no tumultuoso concurso de 1882, tivesse tomado o seu nome para esta poltrona, de que foi fundador, e tivesse proclamado que, a partir desse abraço, nunca mais se separara intelectualmente de Tobias Barreto.

Se, por seu conteúdo, não posso repetir textualmente a frase de Graça Aranha, posso, entretanto, dizer que, filosófica e espiritualmente, sinto-me bem ao sentar-me sob o patronato de Tobias Barreto - o sábio filósofo materialista que renovou a cultura jurídica brasileira e o sábio jurista que soube aliar a medicina ao direito e compreender a personalidade humana nas suas inter-relações cósmicas e sociais. Sento-me à sombra do nome de um gênio, combatido, discutido, mas gênio apesar de tudo.

GRAÇA ARANHA

E que dizer de quem escolheu esse patrono?

A Graça Aranha ligaram-me sempre laços de grande afeto. Acompanhei de perto a evolução de sua compreensão da arte até chegar ao modernismo, que, na ocasião, arrepiava os clássicos.

Eu estava em Paris quando ele conseguiu que ali fosse representado Malasarte. Acompanhei-o com o entusiasmo que ele sabia transmitir aos que lhe seguiam os empreendimentos. Sobre sua peça escrevi, na época, para uma revista carioca uma apreciação, que motivou sinceros agradecimentos de Graça Aranha. "Malasarte", com seu simbolismo místico, foi, creio eu, a primeira manifestação do inquieto espírito de Graça Aranha em busca de novas formas de arte.

Em seu profundo e erudito discurso de posse, o meu antecessor, Sr. Celso Vieira, não foi benevolente para com Graça Aranha no julgamento de sua obra literária. Fez um trabalho de anatomista, dissecando peça por peça as produções do famoso autor de Canaã para mostra-lhe contradições filosóficas e, até mesmo, chegar a sentir-lhe uma sensível decadência literária.

Crítica por demais severa de quem julgou apenas o autor com os instrumentos usuais da crítica, mas desconheceu o homem na inquietação espiritual que lhe marcou toda a vida e lhe nutriu os arroubos de adolescente, que guardou até a maturidade.

Até no entusiasmo com que Graça Aranha liderou no Brasil o movimento de opinião em favor dos aliados da guerra de 1914, e principalmente da França, Celso Vieira viu contradição com as suas afirmações de que nunca se separara intelectualmente de Tobias Barreto, o genial introdutor da filosofia alemã na compreensão do Direito, como se o autor de Estudos alemães se tivesse fixado afetivamente à Alemanha na sua integralidade espiritual e material. Ninguém poderia dizer que, se Tobias Barreto fosse vivo em 1914, se  tivesse mantido germanófilo na apreciação da guerra de agressão desencadeada pelos prussianos do Kaiser Guilherme II.

Ninguém pode afirmar que o admirador do gênio poético de Victor Hugo, cuja lira de tons patrióticos soube tão bem imitar nas suas famosas poesias patrióticas por ocasião da guerra do Paraguai, tomasse posição contra a pátria de Victor Hugo, porque tivesse absorvido os clássicos da filosofia alemã.

Colocando-se decidida e entusiasticamente ao lado da França, Graça Aranha foi em 1914 o mesmo discípulo que, na adolescência, se deixara arrebatar pelo gênio de Tobias Barreto, pois que o movia o mesmo ímpeto de revolta contra a violência e a opressão.

Fui seu companheiro na fundação da então chamada Liga Pró-Aliados – uma iniciativa corajosa em um momento em que o governo brasileiro procurava manter a sua posição de neutralidade. Essa Liga Pró-Aliados, que Graça Aranha fundou nesta cidade, foi o ponto de convergência e de fortalecimento do impetuoso movimento de opinião que acabaria por romper as eclusas da neutralidade no famoso discurso de Rui Barbosa em Buenos Aires.

Pude acompanhar Graça Aranha nesse movimento como primeiro Secretário-geral dessa Liga.

Penetrei-me de seu ardente entusiasmo. Fui, depois, ainda em plena guerra, encontrá-lo em França desdobrando-se em atividades em favor da pátria de Hugo, e pude ver como ele, empolgado pelo sentimento francês, pôde compreendê-Io e interpretá-lo.

Permitam-me que narre um episódio de que fui testemunha e no qual assisti a uma verdadeira apoteose a Graça Aranha porque, no seu detestável francês, soube exprimir aquilo que, em certo momento, estava na alma de todos os franceses.

Se falo do detestável francês de Graça Aranha, é porque de fato o grande autor de Canaã, embora escrevesse correntemente o francês, jamais conseguiu pronunciá-lo corretamente. Certa vez, era ele nosso Ministro na Holanda e em uma das suas freqüentes visitas a Paris passeava pelos grandes boulevards em companhia de um brasileiro ilustre, Delgado de Carvalho, que, no seu amor peIa França, abandonara duas cátedras que aqui tinha, no Colégio Militar e no Pedro II, para viver em Paris, com os simples recursos de correspondente do Jornal do Commercio. Delgado de Carvalho, professor de francês, cultivava com amor a língua francesa e punha nisso até um certo capricho agressivo. Ninguém podia empregar mal diante ele uma expressão francesa, ou pronunciar incorretamente qualquer palavra, que ele não procurasse sem-cerimoniosamente corrigir.

Muito amigo de Graça Aranha, ele vivia a pilheriar do francês que Aranha falava.

Nesse passeio pelos grandes boulevards, em certo momento, Graça Aranha deteve-se para trocar algumas frases com alguém que passava no momento.

Delgado ficou de lado, observando a conversa e parecendo alheio a ela. Quando Graça Aranha se despediu da pessoa conhecida e voltou para a companhia de Delgado de Carvalho, este resolveu fazer um cumprimento ao nosso grande Aranha, Ministro do Brasil em Holanda, havia pouco tempo, dizendo-lhe:

- "Graça Aranha! Como você aprendeu depressa o holandês! Está falando correntemente!"

Muito espantado com o elogio e sem perceber-lhe a malícia, Graça Aranha retrucou:

- "Mas eu estava falando era francês!..."

Se Delgado de Carvalho foi excessivo, fingindo confundir o francês de Graça Aranha com o holandês, a verdade é que o autor de Canaã tinha uma pronúncia incrível.

Pois bem, apesar disso, na sessão de encerramento de uma Semana da América Latina reunida em um grande Teatro de Bordeaux, Graça Aranha discursou e suas últimas palavras provocaram um delírio na assistência que, de pé, aplaudiu longamente aquele orador brasileiro. que, em um mau francês, interpretara o sentimento da França. É que, em fins de outubro de 1918, já se falava em armistício próximo. Wilson, Presidente dos Estados Unidos, tinha formulado os seus famosos 14 pontos para base de negociações. Mas naquele momento os exércitos aliados estavam empurrando os destroçados exércitos germânicos para fora da França e da Bélgica. Mais um pouco e a paz seria ditada em Berlim. O povo francês, embora sangrando com o sacrifício de uma guerra cruenta, não queria saber de tréguas. Queria a vitória completa. Foi o que Graça Aranha soube dizer com o arrebatamento de um adolescente concluindo seu pequeno discurso pelas seguintes expressões:

- Armistice? Non. Capitulation? Oui.

Recebeu uma ovação!...

Esse era o homem. Uma alma sensível aos estímulos do ambiente em que vivia, e sempre propensa à revolta! Quem o conheceu pessoalmente, com aqueles grandes olhos muito claros, por onde parecia que se penetrava em sua alma, não podia deixar de empolgar-se pelos seus entusiasmos sempre juvenis.

Suas transformações no campo da literatura obedeciam às mesmas impulsões revolucionárias, que o fizeram proclamar que aos 12 anos já tinha negado Deus e que o levaram a admirar Tobias Barreto, que fazia na Filosofia do direito a sua revolução inspirada nas doutrinas biológicas monistas então em pleno florescimento. A sedução que exerceu sobre os moços de então, que vieram perturbar a quietude do ambiente desta casa de tradições e de austeridade naquele grito de revolta, com que Graça Aranha em 1924 se despediu da Academia em uma sessão pública tumultuosa - era o resultado natural daquela simpatia que irradiava de sua pessoa.

Não me cabe obrigatoriamente nos moldes rituais desta solenidade apreciar-lhe os méritos literários, mas não pude resistir aos impulsos do meu afeto por esse grande espírito que foi o fundador da cadeira que venho ocupar. Rendo à sua memória as homenagens da minha saudade e de minha admiração.

SANTOS DUMONT

Entre Graça Aranha - o fundador - e Celso Vieira, o meu antecessor, há, na história desta poltrona, um hiato. É um hiato de luz ofuscante que emana da personalidade dos gêneros inventivos e construtores. É um hiato que se enche com um nome que se projetará sempre pelos séculos afora, como o do homem que venceu a condenação de Deus, que fixou o homem ao solo em que pisa para alçá-lo pelos espaços infinitos num jogo de forças vencendo as da própria natureza.

Santos Dumont, que a vossa sabedoria inscreveu na vossa galeria de imortais, foi o gênio que deu asas materiais ao homem, e com essas asas, encurtando as distâncias, aproximou os homens e deu à cultura os meios de homogeneizar-se nessa obra que os séculos irão fazendo do mútuo conhecimento de todos os agrupamentos humanos!

Que importa que tivesse sido um homem "quase sem livros", como dele disse o meu antecessor Celso Vieira? Ele escreveu na história da humanidade a mais bela página desse livro maravilhoso que tem sido a conquista do ar. E a sua morte, antes mesmo de aqui empossar-se, é uma página de sensibilidade humana: a do homem que entra em angústia e tortura quando vê a utilização maléfica daquilo que inventou para o bem da Humanidade!

Os gregos, na observação penetrante dos sentimentos humanos, que são eternos, figuraram na lenda de Pigmalião a paixão que a obra criada pode inspirar ao seu criador, que sucumbe no delírio dessa paixão. A história da civilização humana nos mostra criadores que sucumbem de tristeza ao verem o que se faz de suas criações em usos

que jamais eles pensariam possíveis Esse foi o caso de Santos Dumont ao ver o emprego guerreiro da aviação, que ele tornou possível para a paz! Esse foi, estou certo, o caso de Einstein ao ver as aplicações destruidoras da desintegração atômica, que ele tornou possível com as suas geniais descobertas no campo da física matemática!

Santos Dumont é um dos nomes que inscrevestes na história desta poltrona que vou ocupar.

Eu não poderia nela sentar-me sem render-lhe o culto que se deve aos que iluminaram todo um século e iniciaram para a vida humana uma nova era. Santos Dumont foi um deles.

CELSO VIEIRA E SEU PERFIL PSICOLÓGICO

Não sendo eu um crítico literário capaz de julgar tecnicamente um escritor por seu estilo e classificá-lo devidamente em uma das categorias em que se diversifica a literatura, deixo-me levar insensivelmente, talvez por vício profissional, a um exame da personalidade do autor, tal como se possa lobrigar através do que escreve. Embora a literatura seja uma arte e toda obra literária um artifício, o autor sempre lhe comunica os traços mais relevantes de seu próprio temperamento.

Acontece que, da vida de Celso Vieira e de seus inícios de formação cultural, pouco pude apurar.

Recebendo-o aqui, o vosso ilustre confrade Aloísio de Castro alude à sua infância em Garanhuns, Pernambuco, embora nos Anais da Academia figure Recife como sua cidade natal. De Garanhuns cedo se deslocaria para Olinda a exercer as funções de caixeiro em uma livraria. Ao que me consta, Celso Vieira jamais contou como cultivou o seu espírito. Creio mesmo que não gostava de rememorar essa fase de sua vida em que, depois de empregado em uma livraria de Olinda, passou a trabalhar na revisão do Comércio de Pernambuco, no qual conseguiu publicar uma composição poética. Escrevendo, também, na Revista Contemporânea, em breve Celso Vieira passava a cronista dominical de A Província. E, daí por diante, sua ascensão no mundo das letras se faria ininterrupta. Mas nos Anais da Academia nada disso consta e, neles, Celso Vieira mandou até suprimir a data de seu nascimento. Entretanto, nada me parece mais interessante no julgamento de um autor de que os seus primeiros passos na vida das letras e até a sua infância, tão certo é que a infância por seu ambiente, por seus conflitos, por suas emoções marca definitivamente o destino dos homens e até a maneira de compor suas obras de arte.

Essa pesquisa da infância dos grandes homens e estudo dos respectivos ambientes foi, de resto, uma técnica usada pelo próprio Celso Vieira ao escrever as admiráveis biografias de Varnhagen, Anchieta, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e Olavo Bilac.

Sem esses elementos, mas apenas com o que ressalta de sua obra, concluo que o Sr. Celso Vieira, a quem sucedo, foi um homem aparentemente frio, pouco comunicativo, embora, na sua introversão, fosse sensível ao culto da Beleza.

Seus agradecimentos, ao tomar posse desta poltrona, se revestem de um sentimento de impressionante auto-estima, considerando a escolha acadêmica de seu nome para suceder nesta Academia a Santos Dumont, que ele diz ter sido "um gênio inventivo quase sem livros", como "o reconhecimento de uma existência consagrada à literatura, devotamente, na vetustez de seu nicho, à excelsa Madona reerguida por uma crença imutável sobre o desencanto de outras formas e a desilusão de outros signos".

São as suas palavras textuais ao início desse discurso de posse e elas são, a meu ver, sintomáticas dessa aparente frieza com que recebe o mais alto galardão da vida de um homem de letras.

Um outro traço psicológico que encontro na sua personalidade e que, afinal, não destoa do quadro que dela se pode esboçar nesse discurso de posse é o de uma grande suscetibilidade, capaz de guardar durante cinco anos o ressentimento causado por um sorriso coletivo, para dele vingar-se quando a ocasião lhe parece oportuna.

É que, recebendo-o nesta Academia, Aloysio de Castro, com aquela graça e leveza de tudo quanto diz, graça e leveza que mantêm sempre a assistência em atitude de sorriso pelo prazer intelectual que elas lhe causam, fez uma enumeração dos cargos de secretário que Celso Vieira exercera e continuava a exercer. E concluía, sem vaticínios, mas referindo-se ao passado e ao presente: "Evidentemente, uma predestinação ao secretariado".

Logo a seguir, com a sua delicadeza habitual, acrescentava Aloísio de Castro que "em todas essas situações, sempre o secretário esteve de boas andanças com as letras e, entre tantos escritos e ensaios, que publicastes, quero recordar os vossos experientes estudos de polícia científica reunidos no vosso livro. Defesa social, que os componentes consagraram".

Parece que, quando Aloísio de Castro disse que o secretariado fora uma predestinação na vida de Celso Vieira, a assistência sorriu de modo mais franco.

Cinco anos mais tarde, em dezembro de 1939, ao agradecer sua eleição para Presidente da Academia, Celso Vieira aproveitou a oportunidade para vingar-se daquilo que não fora mais que uma alusão graciosa às suas atividades. Logo de início, relembrou o discurso de Aloísio de Castro dizendo que esse "amável confrade sentenciara que o secretariado era sua vocação e seu fadário".

Mencionando o fato de que a assistência sorrira, vinga-se desse sorriso dizendo que o amável confrade passara de médico a astrólogo, que, desvendando o futuro, lhe "impusera o secretariado como predestinação". Estende-se em considerações sensivelmente irônicas sobre médicos e astrólogos para concluir que, a despeito do vaticínio, chegara à Presidência da Academia Brasileira de Letras...  O médico errara no seu prognóstico!... O astrólogo, no seu vaticínio...

CELSO VIEIRA E SUA ÉPOCA

Os que o conheceram pessoalmente falam-me de seu caráter rusguento, mas também do encanto de sua palestra, quando estava de bom humor e se deixava sintonizar com o ambiente.

Quero crer que assim fosse, dada a extensa massa de cultura histórica, filosófica e literária que se encontra em todos os seus escritos.

É evidente que, à época em que Celso Vieira se iniciou no caminho das letras, era de bom-tom exibir cultura, sobretudo cultura clássica, na qual figuravam os deuses da mitologia grega e personalidades da história antiga.

Raimundo Magalhães, no prefácio de seu último e interessante livro sobre Aspectos desconhecidos de Machado de Assis, pinta com nitidez esse ambiente intelectual de meados e fim do século XIX falando da oratória política de então.

A oratória era recheada de flores de retórica, de alusões à  mitologia grega e à história antiga. Diz textualmente Raimundo Magalhães:

"Ai de quem fizesse um discurso sem falar pelo menos nos filhos de Saturno, ou no sonho de Cambises, ou na espada de Breno, ou no chão estéril que pisava o cavalo de Átila!"

A influência desse período é sensível, principalmente nas primeiras produções de Celso Vieira. Talvez por isso, tendo de dar um título a uma coletânea de trabalhos que tinham sido publicados no velho e tradicional O País, Celso Vieira os entestou com uma fantasia em torno da lenda mitológica grega de Endimião e com esse nome intitulou seu primeiro livro, a que dava tão alta estima que, ao empossar-se nesta Academia, declarou que aqui entrava como autor do Endimião e Anchieta.

ENDIMIÃO

A mitologia grega é rica em lendas que se diversificam em torno das mesmas personagens porque, afinal, o que chamamos a Grécia antiga é um mosaico de povos com suas características específicas, embora dentro de uma linha geral, que constitui o quadro de sua civilização. Assim, qualquer lenda grega apresenta-se ao nosso estudo com várias versões, conforme a região ou a época.

Tudo faz crer que Endimião seja o símbolo da calma noturna.  Como, porém, Endimião vive em sono eterno, alguns o confundem com o símbolo do próprio sono - Hipnos.

Segundo uma dessas versões, Endimião foi um pastor que Júpiter consentiu penetrasse no Olimpo, mas daí foi expulso por ter-se apaixonado por Juno.

Segundo Apolodoros, a lenda é diferente. Selene (a Lua), tendo se apaixonado por Endimião, Zeus (Júpiter) deixou que ele escolhesse o destino que quisesse. Endimião escolheu o sono eterno, no qual pudesse permanecer eternamente jovem.

Há ainda outra versão segundo a qual Endimião é um belo jovem que Selene (a Lua) visita enquanto ele dorme em uma gruta de Latmus. Dessa forma, ele se torna pai de 50 filhas de Selene - as 50 luas do ciclo festivo do Olimpo!

A versão que Celso Vieira nos apresenta em sua bela fantasia é uma mistura de todas essas. Endimião teria sido um jovem belo, casto e forte, pastoreando no monte Latmus e ambicionando o corpo de Selene. Zeus dele se apiedou e deu-lhe a escolher o seu destino. "Ele pediu a graça da eterna mocidade no halo de um sonho eterno" - diz Celso Vieira.

Partindo dessa versão, Celso Vieira procura interpretar a lenda de Endimião através de palavras que atribui a filósofos da Antiguidade grega e até de tempos modernos. É um jogo sutil e gracioso em que deflui, em um estilo próprio, a erudição do autor.

Em Endimião figuram crônicas em que o cronista trata de fatos ou personagens da atualidade através de uma linguagem figurada, sempre recheada de citações históricas, como era do bom gosto da época.

Não há datas nessas crônicas, o que lhes dá, pelo seu estilo, um caráter de perpetuidade. Jogando com figuras históricas, ele oculta atrás delas personagens da época das crônicas, para julgar-lhes os atos sem os inconvenientes das alusões diretas. Não creio que o Presidente desta Academia, eleito em dezembro de 1939, reeditasse a sua crônica contida em Endimião com o título "O testamento de Mecenas", em que o Autor caustica, com figuras imaginosas e confrontos sentimentais, o testamento de Francisco Alves legando a esta Academia a fortuna que amealhou como livreiro e editor. .. . .

Por vezes torna-se irreconhecível, dentro desse artifício literário, a figura que ele quer focalizar. É o que se verifica nas crônicas "Volteador, Tartufo, o Inventor". Sente-se que há em todas elas alvos ocultos. Mas seria necessária uma pesquisa histórica para reconhecê-los.

Em todos esses escritos, o autor mostra erudição clássica, muito amor à forma castiça no escrever e um culto de imagens lavradas em adornos floridos, que tornam a arte de escrever um trabalho difícil e árduo, mas revelam em seu autor um perfeito conhecimento da língua nacional.

SEMEADOR E PARA AS LINDAS MÃOS

São do mesmo gênero de Endimião dois outros livros que Celso Vieira já trazia como bagagem ao entrar nesta Academia: - O Semeador, publicado em 1919, e Para as Lindas Mãos, editado em 1932. Embora, neste último, a declaração do Autor de que se trata de "contos" - faço o leitor admitir que ali vai encontrar obra de ficção, este caráter só se pode atribuir à primeira parte do livro, pois que as duas outras não podem ser consideradas como tais.

Em O Semeador reúnem-se reflexões evidentemente inspiradas por temas da atualidade de então. É de crer que tenham sido publicados em jornais e revistas da época e o Autor os tenha enfeixado em livro. Isso é o que acontece a todos os que são levados a escrever em periódicos... Grande parte da obra de Rui Barbosa resultou da reunião de trabalhos desse gênero. Foi o que aconteceu igualmente a Tobias Barreto, cujos escritos esparsos foram coligidos pelo Dr. Manoel dos Passos Oliveira Teles e reunidos em volumes editados na presidência de Graco Cardoso, então governador de Sergipe. Eu próprio aqui me apresento com alguns livros, que resultam da reunião de crônicas escritas dia a dia, ou de conferências feitas a espaço sobre assuntos de interesse geral.

A vida efêmera do que escrevemos ou produzimos dia a dia sepultaria no esquecimento pensamentos e reflexões em que, freqüentemente, pomos algo de nós próprios. Com essa auto-estima, que é, afinal, o fator indispensável ao desenvolvimento e afirmação de nossa personalidade, procuramos dar uma vida mais durável a essas reflexões. Dai, os livros. . .

Foi o que fez Celso Vieira em várias de suas obras. Em O Semeador o caráter de crônicas é nítido na primeira parte, a que o autor deu o titulo de "Germes de nosso Tempo". Na segunda parte, intitulada "Frutos de ouro e de cinza", há comentários sobre problemas gerais, tais como a língua portuguesa, obras de arte, ídolos de cinema, etc. e sobre atitudes humanas como "epicurismo", a "mentira”, a "avareza", o "instinto", etc. Em todos ressumbra a cultura histórica do Autor e muito de sua capacidade de observação dos motivos psicológicos das atitudes humanas.

Para as Lindas Mãos, outra coletânea de trabalhos sobre vários assuntos, Osvaldo Orico, naquele seu estilo leve, correntio e agradável, o prefacia dizendo inicialmente:

“Colecionei para as lindas mãos estas páginas avulsas de Celso Vieira compondo na sua variedade a tríplice oferta das graças, dos signos, dos magos".

Falando do enigma da mão feminina, Osvaldo Orico é muito mais feminófilo que seu prefaciado. Em certo trecho de seu prefácio ele diz, com aquele arrebatamento de poeta: “A existência inquieta do espírito comunica-se à mão, que a mulher estende para tocá-la. É sonho. Cadência. Melodia. Êxtase. Fascinação. O favo das colméias sente a doçura dos seus dedos".

Já Celso Vieira, com seu espírito de rebelde misógino, burila belas fantasias para realçar os pecados das lindas mãos inúteis, que ignoram as outras "vigilantes, madrugadoras, anônimas, doloridas no seu cativeiro, deformadas pelo trabalho", ou das que formulam votos egoístas, até mesmo as de uma pobre mendiga, que as estende à caridade pública...

Todas desejam o conforto de suas donas, esquecidas da miséria alheia.

Essa misoginia de Celso Vieira é sensível em vários dos trabalhos reunidos nesse livro em que, de resto, "para as lindas mãos" só foram escritas as duas primeiras fantasias. Naquela que o autor intitula "as trinta e duas perfeições da mulher", sob a forma de diálogo, que ele tanto usa em seus escritos por influência dos clássicos gregos e latinos,

sua opinião ele a põe na boca de um dos dialogadores ao fazê-lo dizer:

- "Não te iludas. Em vão buscarias hoje nos mercados orientais a senhora das trinta e duas perfeições do corpo. Desvaneceu-se há muitos ciclos o único exemplar feminino, que se chamava Ilusão, debaixo do céu das Índias e de todos os outros céus..."

E quais seriam essas trinta e duas perfeições do corpo?

Lá explica Celso Vieira pela boca do Sacerdote Richi:

         [ ...] um escultor diria melhor que um sacerdote. Mas a perfeita mulher, conforme o Desenvolvimento dos jogos, tem a cabeça, as orelhas, o nariz e o queixo moldados no estilo carnal da encantadora Sita, esposa de Rama, a que nasceu da terra como nasce uma flor para o sol; tem a voz cariciosa, o sorriso enfeitiçante, na cabeleira o matiz da abelha negra, olhos comparáveis à folha tenra de lótus na primavera, supercílios jamais franzidos, cílios extensos, vibráteis e sedosos, lábios de nácar, dentes níveos e gêmeos, um hálito de jasmim, rescendendo ao luar, o pescoço bem aprumado sobre a inflexão harmônica das espáduas, os braços encurvando-se à maneira do arco-íris num resumo do céu, a palma das mãos transparente e a planta dos pés alígeros cor de laca, os dedos fuselados, o colo erguido, os seios breves, talhe delgado, cintura feita como um anel, dorso felino, ventre de apsará, o umbigo profundo, a maciez da tromba do elefante jovem no alvor das coxas de ninfa, pernas tão ágeis quanto as do antílope correndo no deserto, as articulações flexíveis, e toda ela é suave ao tato como um vestido de Katachalindi, ao olfato como o sândalo queimado no ritual de Agni, ao olhar como o Tesouro da pérola que ilumina a distância os parques reais e o coração de ferro dos exércitos...

         Com tamanha e tão complexa discriminação da enumeração das trinta e duas perfeições do corpo feminino não é de admirar que o discípulo do Sacerdote tenha exclamado que não tinha encontrado na sua mulher as perfeições do corpo.

         Como certamente nenhum dos juízes dos freqüentes concursos de beleza feminina dos tempos atuais as encontraria se as buscasse nessa enumeração que Celso Vieira atribuiu ao padrão de beleza ditado pelo sacerdote hindu de sua ficção...

A despeito dessa misoginia, a ficção é interessante porque desperta no leitor, por uma espécie de revolta sentimental, maior admiração pela obra-prima da natureza, que é a mulher.

SOCIALIZAÇÃO NACIONAL

Já diferente é outro livro anterior à sua entrada na Academia: Socialização nacional.

É um longo estudo da obra de Alberto Torres, tendo constituído assunto de uma conferência na Sociedade dos Amigos de Alberto Torres. Nesse trabalho defende-se a idéia da socialização do Brasil tal como a pregava o grande filósofo político, patrono da Sociedade.

É um livro de crítica política, em que são revistos e realçados erros na nossa evolução, principalmente os cometidos na Primeira República, à qual, entretanto, o Autor atribui injustamente o ter procurado valorizar o café, atirando-o ao mar ou queimando-o. Como pensador esclarecido, Celso Vieira emite, no correr de suas páginas, conceitos judiciosos e adaptáveis ao sonho social-nacionalista de Alberto Tôrres, tendo por base uma política de desenvolvimento agrário.

O livro foge do gênero literário. Mas é escrito com a mesma pureza de linguagem que caracteriza todos os escritos desse Autor.

VARNHAGEM

Mas Celso Vieira foi, sobretudo, um paciente biógrafo.

No trabalho sobre Varnhagen ele exibe sua erudição no assunto citando uma infinidade de historiadores do Brasil, que antecederam Varnhagen, cuja concepção de História não parece das melhores ao autor.

Celso Vieira diz de Varnhagen que "o seu espírito é mais narrativo do que indutivo, sua compreensão é mais particular que cíclica, enfim, sua lógica é mais a dos fatos que a das idéias".

Mais adiante:

A preocupação minuciosa da veracidade chega a impropriá-lo para a consideração transcendente da causalidade no processo historiográfico, de que tanto se ufanava. Nesse escritor, de origem alemã, em cujo trabalho afloram qualidades imanentes à raça, é surpreendedora a ausência de espírito filosófico.

E, ainda, criticando o modo pelo qual Varnhagen concebe a função de historiador – recolher depoimentos, pesquisar fatos e coligir indícios para, em seguida, formular um julgamento – diz Celso Vieira:

Como definimos às vezes um caráter por uma frase em dado momento e dadas circunstâncias, naquela concepção histórica entrevemos o feitio pessoal de Varnhagen: autoritário e judicativo, mescla de arrogância e aspereza.

A despeito das discordâncias freqüentes com as interpretações históricas de Varnhagen, Celso Vieira lealmente proclama a grandeza do historiador brasileiro quando diz:

- Deixemos a ação instaurada contra Varnhagen. É um processo arquivado pelo Tempo, que elevou o homem a super-homem, perpetuando-lhe a figura entre os beneméritos da pátria, na sua galeria escultural!

Esse é, de resto, um traço marcante na personalidade de Celso Vieira. Ele discorda, fustiga, caustica - mas acaba rendendo homenagem ao autor criticado!

ANCHIETA

Da obra biográfica de Celso Vieira, abundante e variada, "Anchieta" foi a que lhe granjeou definitivamente as glórias de grande escritor. É, de fato, o seu grande livro.

O prefácio, que nele se contém, é escrito por aquele admirável ensaísta que foi o jornalista Azevedo Amaral, um pujante talento que, já cego, continuou a divulgar, nos seus admiráveis escritos, os encantos de sua vasta cultura, ordenada e sistematizada à moda inglesa. Esse prefácio é um mimo de literatura, no qual, em poucas páginas, se tem uma visão panorâmica da história da religião cristã e das lutas que a marcaram no ingente trabalho da civilização dos nossos povos.

Nesse prefácio, Azevedo Amaral diz que o livro de Celso Vieira vem preencher uma lacuna, pois que sobre a personalidade de Anchieta só havia, até então, "ingênuas narrativas de cronistas que recolheram a glória da Companhia". Com o livro de Celso Vieira diz Azevedo Amaral que Anchieta ressurge como primeiro marco dominador a assinalar, com seu perfil de asceta, o ponto de partida do ciclo da brasilidade.

Celso Vieira, com a coragem daquela auto-estima que já assinalei ao referir-me ao seu discurso de posse, participa também dessa opinião sobre seu trabalho. À guisa de curta introdução, com o título Ecce liber (Eis o livro), repete a afirmação de Azevedo Amaral. Depois de referir-se aos cronistas da Companhia de Jesus, que só se teriam ocupado com o aspecto taumatúrgico da vida de Anchieta e às evocações fragmentárias por ocasião do 3o centenário de sua morte, diz Celso Vieira que nada disso situa o biografado na sua época e no seu tempo, como só um livro poderia fazê-Io. A literatura histórica do Brasil requeria essa síntese documentada. E conclui apresentando o seu trabalho: Ecce liber...

Na verdade, "eis o livro". E não vai desestima de minha parte ao realçar esse amor que seu autor por ele confessa. Muitas vezes tenho refletido sobre esse gênero de orgulho que um Autor - qualquer que ele seja - revela por sua obra. E compara-o com o dos pais para com os filhos, em cujo talento contribuíram apenas pelas leis da herança biológica. Por que não orgulhar-se daquilo que resulta muitas vezes de anos de porfiado trabalho? E quando se termina a leitura de Anchieta é-se forçado a convir que ele tinha razão de proclamar com ênfase: Ecce liber...

Recebendo-o nesta Academia e referindo-se a essa obra, o vosso grande Aloysio de Castro confessava o seu desprazer pelos romances históricos e pelas biografias romanceadas. Não deixava bem claro que incluía nesse gênero, embora o fosse nitidamente, a biografia de Anchieta feita por Celso Vieira. Eu confesso que não desgosto das biografias romanceadas, como as fazia com tanta arte o saudoso Stefan Zweig.

Qualquer vida humana é um romance. Tudo está em saber apresentá-la na simplicidade das coisas que acontecem e se sucedem e dela faz, em certos casos, como no de Anchieta, um romance em que os acontecimentos ultrapassam o indivíduo e se tornam marcos históricos.

Celso Vieira tende para o gênero romanceado, narrando-nos a infância, adolescência e juventude daquele grande predestinado com a exuberância de seu estilo que vibra a sua imaginação tropical na descrição dos cenários dentro dos quais se vai plasmando a personalidade do biografado.

Ei-Io descrevendo a natureza na ilha de Tenerife, nas Canárias, quadro da infância de Anchieta:

Torturada pelo fogo, a natureza das Canárias exibia rudes vestígios de conflagrações ou esboroamentos geológicos: a ignicência extinta das massas desconformes, o revolto despenho dos fraguedos, a desolação dos barrancos... Crateras mortas e frias, de onde em onde, escancaradas sob a neve dos píncaros no mar morto das lavas, eram ainda reminiscências de voragens tonitruantes, mais incandescentes. Mas a violência da chama se esvaíra na doçura do clima. Outeiros e vales abrigavam toda uma flora edênica sob o louro e o mirto, com os seus vinhedos, as suas messes, os seus laranjais, tufos apendoados de canas ou flabelantes de palmas. A meninice de Anchieta brincava,  fulgia à maneira de luz pelos vergéis, pelas escarpas, nesse contraste do mundo plutônico e do mundo paradisíaco, entre as doradilhas flavescentes e as dragoeiras das ilhas afortunadas, terras amáveis para o desejo dos antigos.

Essa é uma técnica constante no autor. Antes de chegar aos fatos, pinta o ambiente com luxúria de imaginação, em uma linguagem de prodigiosa riqueza verbal.

E não é apenas o ambiente físico, mas o social e moral, como fez no capítulo em que nos descreve os costumes dos indígenas e dos colonos ao tempo em que chegou ao Brasil o governador-geral Tomé de Sousa para dar-lhe unidade de governo.

Esse capítulo, em que há sem dúvida muita fantasia, representa um notável esforço de pesquisa histórica feita pelo Autor na busca dos hábitos dos indígenas, da sua terminologia para designar armas, objetos de uso, danças e costumes.

A viagem de Anchieta da Bahia para São Vicente em companhia de Leonardo Nunes nos é descrita em termos vivos de verdadeira tragédia, em que o historiador preenche pela imaginação as lacunas de qualquer registro histórico. Sua chegada a São Vicente, sua ascensão ao planalto de Piratininga nos são narradas sempre nos mesmos termos de um poeta a escrever em prosa!

A fundação da cidade de São Paulo - então Piratininga - entre os ribeiros Tamanduateí e Anhangabaú - com as lutas da catequese, árduas e difíceis, a conquista dos jovens pela instrução, o combate à depravação sexual e à poligamia nos são narrados sempre na mesma luxuriante linguagem. Mas os fatos, que nela se contêm, se impõem à atenção do leitor e se realçam nessa exuberante floresta de palavras.

São tão emocionantes os episódios que marcam esses primeiros passos da obra civilizadora dos jesuítas, que, uma vez iniciada a leitura dos capítulos em que Celso Vieira no-los narra, não mais se detém o leitor e fica a admirar a paciência do Autor na busca da documentação histórica de que se utiliza para fixar tipos, quadros e acontecimentos de tempos tão remotos!

***

Compreendo a paixão dos que, como o vosso grande Pedro Calmon, mergulham em alfarrábios na pesquisa das origens de nossa civilização e se perdem por vezes na indagação das minúcias de uma lenda, como Calmon fez recentemente a propósito da das Minas de Prata, que José de Alencar transpôs para o romance.

E compreendo o entusiasmo com que os historiadores louvam a obra dos jesuítas, fundindo com a sua catequese e seu amor à religião católica as bases da surpreendente unidade deste imenso país de quase 9 milhões de quilômetros quadrados. Porque a verdade é que essa obra dos jesuítas foi, de começo, abalada pelos aventureiros franceses, calvinistas ou luteranos, como o haviam de fazer posteriormente os holandeses.

No domínio que a nação portuguesa conseguiu impor na posse de suas terras dos Brasis, quem lê a história dessas lutas iniciais dos jesuítas na propagação da sua religião não tem dúvidas em reconhecer que, mais do que a força das armas ou a bravura dos que se bateram contra os invasores, o elemento de vitória foi essa unidade religiosa  que os jesuítas conseguiram implantar nos tempos incertos dos primeiros anos de colonização.

De tudo isso se encontra admirável registro na obra de Celso Vieira.

A abundância de seus conhecimentos das várias tribos indígenas, a narrativa dos episódios que marcam as lutas pelo domínio dos portugueses com pormenores que mostram o cuidado do Autor na pesquisa histórica - fazem o leitor devorar as 300 páginas dessa obra monumental, a despeito do estilo característico do Autor.

É com profunda emoção que, depois de acompanhar em todos os transes essa vida prodigiosa de sacrifícios e construções, lê-se a página em que Celso Vieira nos narra o transporte do féretro de Anchieta para Vitória.

Não posso furtar-me a ler-vos essa página na qual, após narrar a morte de Anchieta, Celso Vieira nos conta:

Um brado repercutiria, propagando-se a notícia, desde o planalto brumoso aos sertões adustos. Os lamentos das tribos amigas evangelizadas pelo missionário em 44 anos de peregrinações, desvelos, sacrifícios, combates, os seus prantos bárbaros como os seus cantos de guerra encheriam as selvas, abalando-as com o mesmo ímpeto dos vendavais. Caíra o grão-pajé dos cristãos, emudecera a grande voz que havia protestado as origens brasileiras em nome da liberdade contra a velha opressão do homem pelo homem.

Alçada a cruz, processionalmente os índios de Reritigbá levaram-lhe o corpo fechado em uma caixa de cedro até à vila de Vitória, por uma distância agreste de 14 ou 15 léguas, indo com eles o padre João Fernandes revestido de alva e estola. Nesse pequeno féretro, leve como um berço, repousava meio século de heroicidade cristã. Por intercolúnios, labirintos, arcários degraus tapetados de musgo, através das florestas, ia descendo e ecoando o séquito. Guerreiros brônzeos, carpideiras seminuas, piás ingênuas lamentavam o eclipse daquela força miraculosa. Na câmara-ardente do ocaso, longe, dir-se-ia que a hora vesperal gotejava sangue... Depois, ao anoitecer, o cortejo seguia entre massas, que eram troncos, fantasmas, que eram palmeiras, vultos colossais e montanhosos, denteadas bocas de caverna... Ouvia-se a espaço o coaxar dos batráquios, um grito de ave noturna varando a solidão, o choro de alguma fonte oculta nas matas sob o limo das pedras carcomidas. Penoso era o caminho de tantas léguas, mas não sentiam fadiga ou sono os caminhantes. Ramos em flor pendiam sobre o ataúde, exalando o perfume silvestre. À passagem de um rio em canoa, cessou a fúria das ondas na presença do corpo de Anchieta e sobre o leve despojo, simbolicamente, resplandecia o Cruzeiro do Sul.

Uma bela página! Um cântico poético em louvor ao gigante que construiu um dos pilares da brasilidade!

ASPESCTOS DO BRASILE E ESTUDOS E ORAÇÕES

Essa foi a bagagem literária com que Celso Vieira conquistou os vossos justos votos e tomou assento entre vós.

Não o paralisaram, porém, as glórias acadêmicas. Pode-se mesmo dizer que elas lhe serviram de estímulo para uma vasta produção na qual continuou como comentarista, como biógrafo, como esteta a distribuir a mancheias os ricos frutos de sua imensa cultura.

Do comentarista lêem-se com prazer seus livros Aspectos do Brasil e Estudos e Orações. O primeiro é uma coletânea de trabalhos sobre vários assuntos. Em todos eles o Autor se mantém fiel ao seu amor pelas letras clássicas, que o faz preferir o bom vernáculo português a uma proposta língua brasileira. No comentar fenômenos sociais, como a igualdade de raças, ou fatos históricos, como os relativos à vida de Frei Caneca - o protomártir da idéia republicana no Brasil -, Celso Vieira é sempre o mesmo burilador da palavra forrado de idéias nobres, em cuja defesa não raro usa de acrimoniosa ironia, ou, então, se eleva a uma altitude de mística religiosidade.

Estudos e orações, editado mais tarde, é um livro que vale por uma consagração da Academia ao seu Presidente durante o ano de 1940, pois que foi editado em conseqüência de sua resolução unânime mandando reunir em volume orações e estudos de Celso Vieira no decurso do ano em que a presidiu.

Foi o próprio Autor que selecionou os trabalhos a formarem esse volume.

Em verdade é uma coletânea de ensaios, pois que, tanto em seus discursos como em suas conferências, Celso Vieira é, sobretudo, um ensaísta.

Sua conferência, por exemplo, feita no Departamento de Imprensa e Propaganda em abril de 1940 sobre "Os destinos dos povos no destino das línguas", é um admirável ensaio que nos transmite uma esplêndida síntese da história da língua portuguesa e sua evolução na literatura brasileira.

Curvando-se, afinal, ante o fato indiscutível de que as fontes da língua portuguesa corrompem-se mais depressa no Brasil do que na península européia, proclama e louva o esforço dos que resistem à invasão corruptora dos solecistas, dos iconoclastas, dos pornógrafos – hoje muito mais numerosos, divulgados e aceitos do que à época em que Celso Vieira fez a sua conferência em defesa da língua. Porque, se é certo que a língua portuguesa transplantada para nosso imenso país deveria sofrer as influências do meio, receber o enxerto de vocábulos novos e até mesmo desvio no significado de seu conteúdo e na sua prosódia, uma coisa é a evolução natural da linguagem que, como tudo que é vivo, evolui, outra é a sua deformação no linguajar do povo e incorporada à literatura pelos que assim buscam popularidade.

Certo seria pedante ou, pelo menos, anacrônico escrever nos dias atuais pelo estilo dos portugueses quinhentistas. Mas, por mais que se estime a simplicidade, esta não implica vulgaridade.

Nesse particular, se, por vezes, Celso Vieira se mostra excessivamente rigoroso no burilar de seus escritos, o que se verifica  em trabalhos como esse, em que ele estuda a história da língua portuguesa, é um grande sentimento de defesa do vernáculo contra o seu abastardamento proposital por escritores que tentam originalidade.

Devemos ser-Ihes gratos por esse sentimento.

É o que de novo se encontra em seu estudo sobre "Manuel Bernardes, clássico e místico", lido nesta Academia na sessão comemorativa do 3o centenário do grande clássico português, realizada em 23 de dezembro de 1944. A Academia o indicou para fazer a grande conferência que ele imprimiu depois em opúsculo. Indicação justa, dados os pendores vernaculistas de Celso Vieira.

Nesse trabalho o Autor segue inicialmente a técnica de Castilho, citado no Curso de Literatura Portuguesa, de Camilo Castelo Branco. Essa técnica é a do confronto entre os dois artífices contemporâneos da língua: Vieira e Bernardes. É, noutro terreno, a técnica já usada por Plutarco nas suas famosas biografias de Varões ilustres.

Do confronto que Celso Vieira faz, as razões do contraste, que ele encontra, entre Vieira e Bernardes são as do ambiente. Vieira, no meio tropical brasileiro, fala para multidões e nisso se compraz por temperamento. Bernardes, no suave clima de Portugal, também por seu temperamento esquizotímico, mergulha na cela e fala apenas a Deus, ou dá asas às suas fantasias.

Celso Vieira, em uma das passagens de seu magnífico trabalho, alude à filiação oratória de Rui à de Vieira, na "majestade neoclássica de seus discursos".

Essa é, sem dúvida, uma observação que não escapa a quem estuda o estilo oratório de Rui Barbosa, como de certo não deixará de encontrar em Vieira uma sensível influência da oratória de Cícero.

Nos três encontra-se aquele mesmo gosto de jogar com as palavras de uma mesma frase, alternando-lhes a ordem em uma ginástica espiritual que reforça o seu conteúdo.

Nos três se nota freqüentemente uma atitude de dramática invectiva contra os juízes, contra Deus ou contra o acusado "que malbarata a liberdade que é um bem coletivo" na expressão de Rui para, causado o pasmo dessa primeira atitude, render justiça a todos e defender a causa ou o direito pelos caminhos de um raciocínio ponderado.

Há tantas semelhanças na expressão oratória desses três artífices da palavra que, a acreditar na reencarnação, dir-se-ia que o mesmo espírito animou os três oradores com séculos de distância!

No desenvolvimento do estudo sobre Bernardes, cujo misticismo é posto em relevo, Celso Vieira realça todos os aspectos da obra a quem, segundo o Autor, seus contemporâneos consideravam "o mais douto dos homens de Portugal". Um desses aspectos é o seu amor às citações infindáveis, o que, segundo Celso Vieira, não o impedia de colecionar "ditames especulativos ou epigramas picantes".

E eu me pergunto, ao ler esse comentário, se esse não é também o aspecto marcante da obra de Celso Vieira.

Ninguém, de fato, estaria em melhores condições do que Celso Vieira para estudar um clássico da língua. Essa era uma de suas paixões. Lá diz ele: "Poucos lêem os clássicos, mas na realidade os clássicos perduram, enquanto os outros desaparecem. Ai dos escritores, dos efêmeros que os não conhecerem..."

BIOGRAFIAS DE TOBIAS E JOAQUIM NABUCO

O biógrafo, já estudado em suas obras sobre Varnhagen e Anchieta, volta novamente ao seu trabalho esmiuçador sobre a vida de Tobias Barreto e de Joaquim Nabuco, publicadas com dez anos de distância.

O trabalho sobre Tobias Barreto é uma síntese muito bem-feita na qual, em pouco mais de 80 páginas, Celso Vieira nos dá um retrato do gigante contraditório e surpreendente que foi Tobias Barreto.

Tudo aí é passado em revista: o poeta, o ensaísta, o filósofo, o polemista arrebatado, o professor, o criminalista. Nesse trabalho, Celso Vieira nos revela uma qualidade que seu estilo não nos permitiria atribuir-lhe: uma admirável capacidade de resumir as idéias mestras do biografado e salientar-lhe as belezas ou as contradições.

Já na biografia de Joaquim Nabuco, embora perfeita por todos os seus aspectos, não há essa preocupação de sintetizar. Ao contrário. Tal como na de Anchieta, o Autor se alonga na descrição dos cenários físicos ou ambientes políticos em que atuou Nabuco.

O trabalho pertence à grande cópia de estudos e biografias que o centenário de Joaquim Nabuco provocou. Depois da minuciosa biografia que Carolina Nabuco fez de seu pai, pareceria difícil escrever sobre esse grande estadista qualquer coisa de original. Mas um homem com tamanha projeção na vida pública oferece tantos aspectos ao estudo de sua personalidade, que sobem a dezenas os livros sobre Nabuco. Até eu enveredei por esse tema e tentei o seu perfil psicobiográfico.

O acadêmico Luís Viana, com uma grande capacidade de pesquisa, forneceu um dos mais originais estudos sobre Nabuco, conseguindo, pelo manuseio de documentos de várias fontes, revelar fatos inéditos na vida desse grande biografado, como aquela crise de melancolia com idéias de suicídio que tanto emocionaram seu velho pai, o Conselheiro Nabuco de Araújo.

Como membro de uma comissão julgadora nomeada pelo Ministério da Educação para examinar trabalhos apresentados em um concurso instituído por lei do Congresso com altos prêmios, pude ler nada menos de onze monografias sobre Nabuco. Cada qual explorava um aspecto da vida do estadista. Dessa comissão fazíamos parte Carolina Nabuco, como presidente, Múcio Leão, Josué MontelIo, Otávio Tarqüínio e eu.

Curioso é que, tendo nós todos chegado de modo espontâneo a julgar em 1o lugar determinada monografia e a classificar as duas outras a serem premiadas, temos o desconsolo de saber que até hoje - cinco anos depois - nenhum dos prêmios foi pago e nem o governo publicou nenhum dos trabalhos premiados.

O trabalho de Celso Vieira foi feito por encomenda de uma casa editora de São Paulo para ser lançado ao público no ano do centenário de Nabuco. Suas principais fontes informativas foram Minha formação, do próprio Nabuco, e o excelente livro de sua filha, a Sra. Carolina Nabuco.

Mas Celso Vieira põe muito de seu na narração dos fatos que marcaram essa grande vida, já na descrição dos ambientes sociais e políticos em que tais fatos se desenvolveram, já no desdobramento das idéias motivadoras das atitudes de Nabuco.

Todo o livro é escrito naquela correção de linguagem de que sempre usou Celso Vieira, com a vantagem de ser contida nos habituais arroubos do Autor devido à objetividade biográfica visada pelo trabalho.

É claro que, dados os seus próprios pendores, Celso Vieira põe mais ênfase nas oscilações pelas quais passou Nabuco em sua religiosidade, à qual retornou e se manteve fiel até o fim da vida.

A despeito da multiplicidade de estudos sobre Nabuco, a obra de Celso Vieira é de leitura útil pela visão panorâmica que nos dá de uma grande vida, toda ela entregue a grandes causas.

VÁRIOS ESTUDOS

Como membro desta Academia, Celso Vieira foi dos que mais lhe freqüentaram a tribuna em trabalhos sobre autores e vultos nacionais e estrangeiros, tais como Santos Dumont, George Santayana, Carlos Malheiros Dias, Américo Facó, Ataulfo de Paiva, Medeiros e Albuquerque, além de apreciações sobre Canaã, de Graça Aranha, sobre poetas cearenses, e um bem lavrado estudo sobre a lenda de Nossa Senhora de Fátima.

Tal assiduidade aos trabalhos duráveis desta Academia mostra bem o que dele eu já disse: – as glórias acadêmicas não o deslumbraram a ponto de paralisá-lo.

Ao contrário. Estimularam-no para um trabalho constante marcado pelos livros que continuou a publicar e pelos registros da Revista da Academia.

O GÊNIO E A GRAÇA

Seu último livro publicado foi O gênio e a Graça, editado em 1951.

Acredito que para o próprio Autor esse livro deveria ter sido considerado a sua obra-prima, porque nele se encontram os traços principais de sua obra literária: erudição, principalmente clássica; riqueza verbal, que se aduba nesse classicismo para dele desenterrar freqüentemente vocábulos de pouco uso; arroubos de imaginação nas tonalidades mais constantes no Autor, que eram as do misticismo religioso; capacidade de síntese na biografia de autores, cujas idéias, lutas e paixões nos transmite naquele seu gênero romanceado e florido.

Sem dúvida, o livro contém tudo isso, mas por isso mesmo é o de mais difícil leitura.

Nos dois primeiros estudos desse livro harmonioso no seu conjunto - o sobre Dante e o sobre Camões -, em uma abundância excessiva e quase asfixiante de erudição clássica, o que o Autor põe em relevo, em um passeio realmente original pelas obras desses dois gênios, é a figura da Mulher.

Em Dante é a Beatriz, em vários aspectos do amor que lhe dedicava o poeta e que Celso Vieira nos conta e de que encontra vestígios em inúmeras passagens da obra do gênio.

Em Camões é Vênus, como deusa do Amor, nas suas várias expressões mitológicas que o Autor entrevê em vários cantos de Os Lusíadas.

Recentemente, em uma esplêndida aula inaugural do curso de Crítica, que aqui esta Academia organizou, o Professor Amoroso Lima - um de vossos mais belos ornamentos -, numa admirável síntese de 60 minutos nos deu uma visão panorâmica da história da Crítica. Nela aprendi que a crítica moderna se atém exclusivamente à obra com abstração do autor. Nela procura todas as influências de seu momento, o que a faz mergulhar por todos os ramos das ciências sociais e até das naturais.

Em verdade, nas várias formas de arte, é possível encontrar o tipo de cultura do momento e, conseqüentemente, a influência do ambiente. Mas como essa influência se faz através do Autor, não me parece possível abstraí-lo totalmente do exame crítico de sua obra.

Talvez a minha incapacidade dessa abstração resulte do vício profissional do psiquiatra que estuda em alguns de seus pacientes as suas manifestações artísticas, sobretudo as da forma, nesse interessante capítulo que é o da arte psicopatológica. Transposto esse estudo para o das produções da chamada arte moderna, encontra-se uma certa identidade de mecanismo que, na arte psicopatológica, é o das frustrações e na outra o do choque de culturas. Mas parece-me impossível eliminar o exame do autor de uma e de outra dessas formas de arte para tentar conhecer das suas motivações íntimas.

Se, obedecendo às regras que aqui, com tanta clareza, o Prof. Amoroso Lima fixou como presidindo a crítica moderna, alguém tentasse compreender a obra de Celso Vieira - sobretudo no seu último livro - dificilmente encontraria as influências do ambiente.

Examinada a obra em si e por si, no seu texto e na sua contextura, dir-se-ia trabalho de outra época, tão diferente da atualidade que Antero de Figueiredo, no prefácio desse livro, iguala Celso Vieira "ao agostiniano Frei Tomé de Jesus, ao jerônimo Frei Heitor Pinto, ao carmelita Amador Arrais, ao domínico Frei Luís de Sousa, ao oratoriano Bernardes, aos jesuítas Vieira e Lucena".

Se a obra em si apresenta esses traços de ancianidade, há que fatalmente buscar através dela a personalidade do Autor e o porquê desse alheamento às influências ambientais do presente.

Por que, por exemplo, nos estudos sobre Dante e Camões domina a figura da mulher em um Autor que em outros trabalhos se mostra tão pouco amável para com as qualidades femininas?

Por que esse Autor mergulha nos clássicos e com eles vive e lhes absorve o estilo a ponto de com eles ser comparado?

Ignoro a vida íntima do Autor e creio ser ainda cedo para pesquisá-la. Mas da sua obra transparece uma tremenda frustração afetiva que o isola do mundo real da atualidade e o conduz a um mundo artificialmente construído com os vestígios do Passado. Dir-se-ia que nessa obra transparece uma grande ânsia de amor de um misógino solitário, que dá livre curso na sua obra àquilo que lhe está recalcado profundamente e só vem à tona do consciente nesses arroubos sentimentais que, para melhor disfarce, vestem-se do estilo do passado e se travestem em figuras mitológicas.

Se nos excelentes estudos sobre Cervantes, a velhice de Chateaubriand, Eça de Queirós e Olavo Bilac não vem ao primeiro plano a figura da mulher, deles não se exclui totalmente e neles se realçam as aventuras do Amor.

Para um Autor que cultivou com estranhado zelo a pureza da língua nos moldes clássicos, O Gênio e a Graça, último dos seus livros publicados, é, sem dúvida, uma chave de ouro.

De tal Autor pode-se repetir o que Antero de Figueiredo escreveu ao prefaciá-lo: "Celso Vieira, historiador, ensaísta, crítico, orador, conferencista, articulista, é além disto (se não anteriormente a isto) um mestre da língua lusitana, em sua estrutura, riqueza, propriedade verbal, limpidez, flexibilidade, ritmo e cor, sob o timbre sutil do Bom Gosto".

OS CONTRASTES DA SUCESSÃO

Eis o grande trabalhador intelectual a quem a vossa generosidade me faz suceder em uma série de contrastes que, certamente, realçam o valor daquele a quem sucedo.

Ao espiritualista, cuja Fé transparece em todos os seus escritos, destes por sucessor um materialista, agnóstico e incréu.

Ao paciente cultor das coisas do passado, humanista amante do grego e do latim, segue-se um professor que prega o predomínio da Ciência como melhor preparo dos jovens para a compreensão da vida no mundo moderno.

Ao estilista cuidadoso, que trabalha a frase com o cinzel de sua cultura clássica e põe na forma o lavor de um esteta, sucede o comentarista descuidado, que escreve como fala e deixa que o seu pensamento flua livre das peias da forma, a que dá menos atenção do que ao conteúdo.

São contrastes sensíveis no confronto entre o sucedido e o sucessor e que de novo notareis quando ouvirdes aquele que delegastes para receber-me e cujo alto valor de homem-ciência não privou nem do culto espiritualista da vida nem do amor aos clássicos, nem do gosto pelo estilo em bom vernáculo, numa arquitetura de pureza impecável.

Tudo isso me confere um intenso sentimento de humildade ao sentar-me nesta poltrona, em uma idade em que os defeitos da inteligência e da cultura não mais se corrigem e em que nada se pode prometer, além de continuar a amar a Beleza em todas as suas formas de expressão.

Neste particular sinto-me, freqüentemente, de tal modo arrebatado que não noto o peso dos anos da minha acidentada vida e me empolgo pelo Belo com a leveza de verdes anos!

E aí está mais um contraste que esta solenidade comporta: - é que na festa imediatamente anterior cantou-se aqui o vigor da mocidade e larga parte da solenidade foi consagrada ao tema do confronto de jovens que cedo revelaram o seu valor!

Não desejo empanar o brilho de tão magnificente apoteose à mocidade, pois que o valor, como disse Corneille pela boca de Cid, “não espera o número de anos".

Nem é, porém, na só verdez dos anos que ele está, e sim no imo de quem os tem, na maneira de senti-los e de afrontar a vida. Ninguém o disse melhor que Cícero no seu diálogo sobre a velhice, quando põe na boca de Catão a seguinte sábia sentença:

Todas as idades são pesadas para aqueles que não encontram em si próprios nenhum recurso para viverem bem e serem felizes. Aqueles, ao contrário, que não esperam o bem senão de si próprios, não podem olhar como um mal tudo o que é uma conseqüência inevitável da Natureza. Deste gênero é, principalmente, a velhice.

Em verdade, ao passarmos em revista todas as fases da vida, em qual delas encontraremos a real felicidade, senão nesse julgamento benévolo da realidade?

Diz-se que a infância, na sua inocência e despreocupação, é a idade ideal. Considerar-se-á feliz a criança? Quem lhe constrói a felicidade não é ela própria, e sim os que dela se ocupam e a vêem de seu ponto de vista pessoal de adultos.

É na minha especialidade que vamos notar, na personalidade neurótica do adulto, os efeitos dessas frustrações da infância, involuntariamente criadas pelos pais e desapercebidas da própria criança, que todos supõem feliz.

Na puberdade e na adolescência, o conflito entre a personalidade que quer expandir-se e afirmar-se e o ambiente que a quer conter gera essa inquietação interior, com manifestações freqüentes de um desespero que está longe de ser a felicidade.

A juventude parece ser a idade mais amável. A personalidade já se vai afirmando. Não há ainda o peso das responsabilidades. Mas a inquietação da adolescência nela se prolonga por um infinito de interrogações e de dúvidas: - sobre o futuro a traçar, sobre o amor, sobre o mundo, num misto de ambições e de temores!

A maturidade vem quando se criou a estabilidade afetiva e material. O homem conquistou a posição que o Destino lhe deu na vida material e no amor. Tudo parece em perfeito equilíbrio. Mas a defesa desse equilíbrio é um ônus para os que não confiam em si próprios. Os encargos da vida se acumulam. Se o homem não encontra em si mesmo os recursos para viver com fé e coragem e ser feliz - a vida é dura e áspera e dificilmente ele chegará à velhice com a alma serena com que cumpre entrar nessa fase harmoniosa da vida, em que não há mais ambições, nem dúvidas, nem insegurança, mas na qual os longos anos vividos ensinaram a encontrar beleza em tudo quanto a vida nos dá.

Pode-se repetir o que Cícero atribuía a Catão naquele diálogo famoso, dizendo que não é verossímil que a Natureza, que soube tão bem coordenar as outras fases ou atos da vida, descurasse do último, que é a velhice, como faria um poeta negligente com a última estrofe de um poema.

Em verdade, se a Natureza faz do arrebol matinal um espetáculo grandioso, em que a claridade do Sol se anuncia por uma sinfonia de cores que, em crescendo, despertam para a Vida, ele não é menos belo - na suavidade com que vai descerrando as cortinas da noite, em cores que se vão atenuando brandamente do rubro sangüinário ao roxo tranqüilo que precede as trevas noturnas.

Levante e Poente - tudo é belo na Natureza e na Vida quando se tem capacidade de sentir-lhe a beleza!

Esta é uma casa em que se cultiva a Beleza na sua mais pura forma, que é a do espírito.

Não trago cansados para ela os olhos de minha alma, mas, ao contrário, ávidos de novos estímulos!

Venho encontrá-los entre vós, que os forneceis em abundância com os fulgores de vossos talentos criadores!

Na serenidade das suaves cores com que se vai descerrando a cortina da minha noite e que marcam exteriormente o meu próprio ocaso, sinto-me iluminado interiormente por um perpétuo arrebol matinal de entusiasmo pelo Belo! Considerar-me-ei feliz no vosso convívio, nesse culto eterno da eterna beleza da Vida!

9/9/1955