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Manuel Bandeira

 

             EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

 

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração,

Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

 

Turbou, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

                      Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

 

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria.

                                                                           (Cinza das horas, 1917.)

 

                   DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

 

Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

 

E nestes versos de angústia rouca,

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

 

- Eu faço versos como quem morre.

                                                                       Teresópolis, 1912.

                                                                            (Cinza das horas, 1917.)

 

                         A CAMÕES

Quando n’alma pesar de tua raça

A névoa da apagada e vil tristeza,

Busque ela sempre a glória que não passa,

Em teu poema de heroísmo e de beleza.

 

Gênio purificado na desgraça,

Tu resumiste em ti toda a grandeza:

Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça

O amor da grande pátria portuguesa.

 

E enquanto o fero canto ecoar na mente

Da estirpe que em perigos sublimados

Plantou a cruz em cada continente,

 

Não morrerá, sem poetas nem soldados,

A língua em que cantaste rudemente

As armas e os barões assinalados.

                                                                            (Cinza das horas, 1917.)

 

        A ANTÔNIO NOBRE

Tu que penaste tanto e em cujo canto

Há a ingenuidade santa do menino;

Que amaste os choupos, o dobrar do sino,

E cujo pranto faz correr o pranto:

 

Com que magoado olhar, magoado espanto

Revejo em teu destino o meu destino!

Essa dor de tossir bebendo o ar fino,

A esmorecer e desejando tanto...

 

Mas tu dormiste em paz como as crianças.

Sorriu a Glória às tuas esperanças

E beijou-te na boca... O lindo som!

 

Quem me dará o beijo que cobiço?

Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...

Eu, não terei a Glória... nem fui bom.

                                                                             Petrópolis, 3-2-1916.

 

                                                                           (Cinza das horas, 1917.)

 

VERSOS ESCRITOS N’ÁGUA

Os poucos versos que aí vão,

Em lugar de outros é que os ponho.

Tu que me lês, deixo ao teu sonho

Imaginar como serão.

 

Neles porás tua tristeza

Ou bem teu júbilo, e, talvez,

Lhes acharás, tu que me lês,

Alguma sombra de beleza...

 

Quem os ouviu não os amou.

Meus pobres versos comovidos!

Por isso fiquem esquecidos

Onde o mau vento os atirou.

                                                                           (Cinza das horas, 1917.)

 

                  CHAMA E FUMO

Amor - chama, e, depois, fumaça...

Medita no que vais fazer:

O fumo vem, a chama passa...

 

Gozo cruel, ventura escassa,

Dono do meu e do teu ser,

Amor - chama, e, depois, fumaça...

 

Tanto ele queima! e, por desgraça,

Queimado o que melhor houver,

O fumo vem, a chama passa...

 

Paixão puríssima ou devassa,

Triste ou feliz, pena ou prazer,

Amor - chama, e, depois, fumaça...

 

A cada par que a aurora enlaça,

Como é pungente o entardecer!

O fumo vem, a chama passa...

 

Antes, todo ele é gosto e graça.

Amor, fogueira linda a arder

Amor - chama, e, depois, fumaça...

 

Porquanto, mal se satisfaça,

(Como te poderei dizer?...)

O fumo vem, a chama passa...

 

A chama queima... O fumo embaça.

Tão triste que é! Mas... tem de ser...

Amor?... -  chama, e, depois, fumaça:

O fumo vem, a chama passa...

                                                                  Teresópolis, 1911.

                                                                         (Cinza das horas, 1917.)

 

                     DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.

Como dói um pesar em cada pensamento!

Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .

 

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento

Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...

Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

 

Assim deverá ser a natureza um dia,

Quando a vida acabar e, astro apagado,

Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

 

O demônio sutil das nevroses enterra

A sua agulha de aço em meu crânio doído.

Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

 

Minha respiração se faz como um gemido.

Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,

Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

 

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,

Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:

E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

 

Vejo nele a feição fria de um desafeto.

Temo a monotonia e apreendo a mudança.

Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

 

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!

                                                                                Teresópolis, 1912.

                                                                      (Cinza das horas, 1917.)

 

                      RENÚNCIA

Chora de manso e no íntimo... Procura

Curtir sem queixa o mal que te crucia:

O mundo é sem piedade e até riria

Da tua inconsolável amargura.

 

Só a dor enobrece e é grande e é pura.

Aprende a amá-la que a amarás um dia.

Então ela será tua alegria,

E será, ela só, tua ventura...

 

A vida é vã como a sombra que passa...

Sofre sereno e de alma sobranceira,

Sem um grito sequer, tua desgraça.

 

Encerra em ti tua tristeza inteira.

E pede humildemente a Deus que a faça

Tua doce e constante companheira...

                                                                     Teresópolis, 1906.

                                                                           (Carnaval, 1919.)

 

           OS SAPOS

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

 

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

- “Meu pai foi à guerra!”

- “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”

 

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: - “Meu cancioneiro

É bem martelado.

 

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos.

 

O meu verso é bom

Frumento sem joio.

Faço rimas com

Consoantes de apoio.

 

Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A fôrmas a forma.”

 

Clame a saparia

Em críticas céticas:

“Não há mais poesia,

Mas há artes poéticas...”

 

Urra o sapo-boi:

- “Meu pai foi rei” – “Foi!”

- “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”

 

Brada em um assomo

O sapo-tanoeiro:

- “A grande arte é como

Lavor de joalheiro.

 

Ou bem de estatuário.

Tudo quanto é belo,

Tudo quando é vário,

Canta no martelo.”

 

Outros, sapos-pipas

(Um mal em si cabe),

Falam pelas tripas:

- “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”

 

Longe dessa grita,

Lá onde mais densa

A noite infinita

Verte a sombra imensa;

 

Lá, fugido ao mundo,

Sem glória, sem fé,

No porão profundo

E solitário, é

 

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio...

                                                                                                 1918.

                                                                              (O ritmo dissoluto, 1924.)

 

MENINOS CARVOEIROS

Os meninos carvoeiros

Passam a caminho da cidade.

- Eh, carvoero!

E vão tocando os animais com um relho enorme.

 

Os burros são magrinhos e velhos.

Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.

A aniagem é toda remendada.

Os carvões caem.

 

(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,

dobrando-se com um gemido.)

 

- Eh, carvoero!

Só mesmo estas crianças raquíticas

Vão bem com estes burrinhos descadeirados.

A madrugada ingênua parece feita para eles...

Pequenina, ingênua miséria!

Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!

 

- Eh, carvoero!

 

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,

Encarrapitados nas alimárias,

Apostando corrida,

Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados!

                                                                                    Petrópolis, 1921.

                                                                                   (Libertinagem, 1930)

 

                          PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi,

Tosse, tosse, tosse.

 

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.

- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...

- Respire.

 

...................................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

                                                                      (Libertinagem, 1930)

 

                         POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o

cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

 

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de cossenos secretário dos amantes exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

                                                                                   (Libertinagem, 1930)

 

 

                         PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos

Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor de coração me dava

Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

 

Levava ele pra sala

Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,

Ele não gostava:

Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

 

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

                                                                                   (Libertinagem, 1930)

 

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

 

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconsequente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

 

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

 

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcaloide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

 

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

- Lá sou amigo do rei -

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

                                                                                   (Libertinagem, 1930)

 

 

NOTURNO DO MORRO DO ENCANTO

Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.

Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade, enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia de seu manto.

Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que nem tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.

Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.
 

                                                                              Petrópolis, 21-2-1953

                                                                              (Estrela da tarde, 1960)