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Lafayette Rodrigues Pereira

 

                                       MACHADO DE ASSIS

                             Estudo comparativo por Sílvio Romero

O anúncio de que o Senhor Sílvio Romero publicara um estudo crítico sobre o Senhor Machado de Assis despertou em nós um vivo sentimento de curiosidade. Conhecemos a vítima, um espírito elegante com as delicadezas de um filho da cidade de Minerva, fino observador das fraquezas e ridículos do seu tempo, engenhoso e hábil em urdir contos e histórias que encantam e prendem pelo interesse e vivacidade do entrecho e pelo desenho firme e límpido das figuras.

Conhecemos também o sacrificador bárbaro que veio lá das regiões cimeiras. Estudou retórica em alguma escola de província; fez um grosso pecúlio de teorias, de fórmulas, de cânones, pilhados aqui, ali, que, embora ele os diga novos, têm, pelo tom e jeito com que são expostos, uns ressaibos, uns olores de Quintiliano, de Vida, de Soares Barbosa. Sem embargo de longa residência na cidade, conserva ainda muito da primitiva vegetação; fala uma língua dura, de umas gramáticas impossíveis, contaminadas da ferrugem de aldeia. Queima-lhe a alma despeitos porque Atenas olha com um certo ar de desdém para os bárbaros, e devoram-no ódios e cóleras implacáveis contra todas as superioridades.

E lemos o livro; lemo-lo de princípio a fim, e, ai! Podemos chegar à última página; tanta coisa rebarbativa, teorias e fórmulas; digressões e digressões, virulências, explosões de vaidades mal disfarçadas, um estilo que não é estilo, barbarismos e solecismos, mau gosto perpétuo, e demolições por toda parte, e, em meio das ruínas, incólume, hirto e duro como um monólito, o culto de Tobias Barreto, a fênix da poesia, da eloquência, da filosofia, da história, enfim, de todas as ciências divinas e humanas!

Intitula-se o livro – Machado de Assis – grosso embuste! Machado de Assis é o pretexto. O objeto do livro é Tobias, é a glorificação do Teuto sergipano. Bem sabia o Senhor Romero que se houvesse dado ao livro a sua verdadeira denominação – Tobias Barreto – não teria leitores. A botica em tempo reivindicaria os seus direitos. Daí a fraudulenta substituição de Tobias Barreto por Machado de Assis. A crítica também tem as suas pias fraudes.

A primeira necessidade lógica que sente o Senhor Romero ao iniciar o seu estudo é a de classificar Machado de Assis, de dizer a que escola pertence. É clássico, é romântico, é realista, é naturalista? Mania de retórico das velhas retóricas.

Esta questão de classificar em escola clássica, escola romântica, escola realista, é um tema cediço, um lugar comum com que se entretêm os espíritos estéreis, amigos de fórmulas vãs, e incapazes de análises penetrantes e profundas dos fatos literários.

As obras de imaginação, a poesia, o drama, o romance, reproduzem idealizado o que enche a alma humana e faz a trama da vida e da sociedade em cada ciclo do tempo. Todo este mundo de afetos, de paixões, de ideias, de interesses muda, transforma-se de períodos em períodos, uns mais longos, outros mais curtos. Não é só o fundo, a substância que muda; muda também a expressão, as formas, o teor.

Cada um desses períodos tem, pois, a sua literatura.

As classificações são sempre artificiais; mutilam, pervertem, desnaturam os fatos para subordiná-los a divisões, a classes de pura simetria. Tomemos, para exemplo, a poesia que se chama clássica. Os poetas do século XVI são metidos no quadro dos clássicos; no entanto, eles só têm analogias de formas com os verdadeiros clássicos; trabalharam em fundo que é tudo moderno, tudo do seu tempo. Não são clássicos: reproduziram o pensar e o sentir do seu século.

Veio o romantismo: traduziu nas suas mil variadas formas o estado da alma e do espírito humano no período que vai dos começos do século até mais ou menos 1850.

Mas quanta coisa de fundo e forma não se encontra em pleno romantismo que bem poderia denominar-se clássica! De 1850 por diante, os imitadores, o rebanho servil, em vão esforçaram-se por continuar o romantismo. O fundo tinha desaparecido; ficaram as formas vãs e ocas.

A humanidade civilizada entrara em novo período.

O microscópio dos naturalistas e físicos destruiu todas as grandes crenças, todas as nobres aspirações, todos os ideais do homem; reduziu Deus a um absoluto cego, fatal, mecânico, inconsciente; e muito logicamente fez do homem uma besta, apenas racional, sob o domínio exclusivo da animalidade.

É esta a quadra que vamos atravessando.

E ela deve espelhar-se na sua literatura. E, com efeito, ela tem a sua literatura. E essa literatura ainda não achou o seu verbo, procura assuntos e não os encontra ou não sabe tratar; tenta fortuna em todos os sentidos, até no monstruoso, no horrível, no hediondo, no torpíssimo; corre agitada, inquieta atrás do novo e só descobre o extravagante.

Naturalistas, Parnasianos, Decadentes, Nefelibatas, e outros de singulares denominações são caçadores sem ventura de nova ideia, do novo signo; fatigam-se, despendem muito talento, bracejam nos desvios, pelos quais se perdem, e afinal sentem que perseguem falsas imagens.

No entanto, importa reconhecê-lo: um ou outro feliz gênio tem nas profundezas do coração, nas obscuridades da consciência e no conflito das paixões e dos interesses, surpreendido sentimentos, ideias e coisas originais, singulares, verdadeiros produtos do século, fenômenos que são mais uma revelação da complexidade, da riqueza e dos mistérios da natureza moral do homem.

Mas no meio de tudo isto, o que é Machado de Assis?

Diz o Senhor Romero: foi romântico, mais tarde passou para os realistas, mas conserva ainda umas echappées para o romantismo. Então, como classificá-lo?

É um transitório, um anfíbio, um neutro. E nesta classe de anfíbios mete o Senhor J. Nabuco e outros e o próprio... Tobias Barreto. Vão lá dizer ao Senhor J. Nabuco que ele é um transitório, e o ilustre publicista, mesmo por ser um homem de espírito, dará uma resposta a Jourdain.

Certamente o Senhor Machado de Assis foi um romântico e não podia deixar de sê-lo. A sua inteligência desabrochou e a sua imaginação aventurou os seus primeiros voos, quando aqui estávamos ainda em pleno romantismo. E porque foi romântico, não se segue que não pudesse ser chapado naturalista.

Garrett em sua mocidade foi, segundo a classificação usada, um terrível clássico. A Lírica de João Mínimo é felino puro, é Horacio condensado. Mais tarde, quando voltou do exílio, trouxe Camões, Dona Branca, poemas redondamente românticos e com os quais iniciou a nova era em Portugal. Ficou-lhe não há dúvida, algum quid clássico, mas por isso ninguém o meteu entre os anfíbios. E qual é o romântico que não deixe lá de quando em vez escapar uma nota de clássico? Ainda em Lamartine há estrofes que Soares Barbosa, isto é, o Senhor Romero com perfeita justiça, reivindicaria para o clássico.

Machado de Assis não é romântico, não é realista, não é parnasiano, não é decadente. É um espírito culto, imaginoso, cáustico, que traduz em versos bem feitos as suas aspirações e descreve em cenas animadas a vida do seu tempo e traça figuras que reproduzem a realidade com que estão em contato segundo os processos que lhe parecem mais adaptados ao intento. Ora pinta o que está vendo, o que não é ser realista, porque assim o fizeram clássicos e românticos, ora, entregando-se aos caprichos da sua fantasia, remonta ao ideal ou para embelezar a natureza, ou para exagerar-lhe as asperezas, as escabrosidades, o horrível. Mas é sempre um homem do seu meio. Não cuida em ser romântico, realista ou qualquer outra coisa. Luta, pensa e escreve como um homem do seu tempo.

E os Soares Barbosas, presentes e futuros, que rompam as ilhargas para classificá-lo.

Obedece ao Senhor Machado de Assis ao influxo que o Senhor Romero denomina nacionalístico? É uma questão que o crítico levanta a propósito de asserções ao Senhor J. Veríssimo, de que discorda. Machado de Assis é brasileiro, descendente de brasileiros, aqui nasceu, aqui se educou e, é aqui que tem sempre vivido. Ninguém escapa à ação do seu meio. É, pois, inquestionável que a sua obra deve trazer o cunho, o sainete do brasileirismo.

A este propósito, escreve o Senhor Romero: “Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana, que constitui o tipo diferencial da nossa etnografia”.

Eis aí, o Senhor Romero a incorrer em um vício que a velha retórica estigmatizava – o de querer explicar o obscuro pelo mais obscuro.

Qual é a raça horizontalmente americana de que a do Senhor Machado de Assis é a sub-raça? Não haverá também uma sobre raça?

Mas, afinal, para ser entendido, o Senhor Romero que ama as digressões, ainda, para narrar a gênesis das roscas e retortas do seu pensamento e do de Tobias, devia nos dizer quais os caracteres do espírito e do coração dessa sub-raça.

É a força ou a fraqueza?

É a atividade ou a inércia?

É a audácia ou a covardia?

É a lealdade ou a perfídia?

É a tendência para o real ou o amor da quimera? É uma sensibilidade exagerada, uma imaginação doentia?

Mas... nenhum predecessor do Senhor Romero estudou o assunto, nem lhe fez a teoria. E por isso nada tinha a nos dizer a respeito.

 

                                                  III

No caracterizar o estilo do Senhor Machado de Assis, dá o Senhor Romero nova prova de mau gosto e da falta de senso e sagacidade do crítico, e mostra ignorar os segredos da arte de escrever.

Antes de tudo, para não desdizer dos hábitos de pedagogo, enumera as qualidades que pode ter o estilo e que aí estão à mão em qualquer compendio de retórica: “a personalidade, o desenho, o colorido, movimento, correção, simplicidade, propriedade, representação, variedade, singeleza.”

E depois deste elenco, submete o estilo do Senhor Machado de Assis ao seguinte processo de eliminação:

“O período não lhe sai amplo, forte, vibrante...; variegado, longo, cheio...; imaginoso, fluente, cantante...; seguro, articulado, movimentado...; terso e transparente...; abundante, corrente, colorido, marchetado...”

Cada escritor tem o seu estilo, porque o estilo é uma resultante inelutável do temperamento intelectual e moral, de modo de ver e compreender. O estilo é o que o escritor tem de mais íntimo e individual e por isso Buffon dizia que “o estilo é o homem”. Diferem, pois, grandemente os estilos. E cada um pode ser perfeito no seu gênero.

Dizer que um escritor é mau estilista, porque não possui certos predicados que distinguem o estilo de outro, é apenas cometer um erro de lógica.

Com este processo, que é o do Senhor Romero – Tácito, Machievello, Montesquieu, Labruyère, seriam uns medíocres, porque nenhum deles tem a amplidão, o número e a sonoridade de Cícero, o esplendor, a grandeza e a majestade de Bossuet, a abundância de T. Lívio e a facilidade de Thiers.

Que importa que Machado de Assis não reúna as excelências do estilo dos escritores que o Senhor Romero nomeia, se ele possui em alto grau as qualidades do estilo que lhe é próprio e que tanto convém aos gêneros que cultiva?

Em matéria de estilo, o Senhor Romero reduz Machado de Assis a este mínimo:

“Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rutilo, nem grandioso, nem eloquente. É plácido, igual, uniforme e compassado. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada.”

A ostentada benevolência do Senhor Romero para com Machado de Assis, vai ao ponto de querer explicar defeitos que lhe atribui ao estilo, por um vício físico, que á a entender que ele sofre nos órgãos vocais.

Isto não é só uma crueldade de mau gosto, é ainda um perfeito dislate.

Que relação de causa e efeito descobre o Senhor Romero entre um defeito físico e o talento de escrever?

O estilo de Demóstenes como orador é incomparável pela força, pela veemência, pela rapidez. E Demóstenes sofria um grau eminente do defeito físico que o Senhor Romero atribui a Machado de Assis.

A crítica que resvala por estas misérias é simplesmente parva.

As pessoas de alguma cultura literária, familiarizadas com os escritos do Senhor Machado de Assis, reconhecem que é ele um dos nossos estilistas de melhores quilates. A estrutura do seu período é singularmente bela. As palavras e as orações organizam-se e concatenam-se me uma ordem lúcida, como pede o gênio da língua, e a lógica do pensamento. É conciso e não pobre no dizer. A frase é às vezes, notável pela força da expressão, não tanto pela imagem, como pela aliança insólita ou pelo contraste das palavras. O pensamento, cheio e sombrio, corre desembaraçadamente em uma língua folgada e não contrafeita. Não tem pretensão ao grandioso, ao sublime, ao campanudo, ao retumbante, mas sabe dizer com precisão, propriedade e agudeza o que pensa e o que sente.

Quem reúne dotes tais, é certamente um escritor de grande distinção. Mas não é só isso. Não raro, pela bela organização do período, pela nobreza das palavras, pela propriedade e precisão da expressão e por um certo polimento, o Senhor Machado de Assis toca a essa graça, a essa flor de elegância, que os atenienses chamavam aticismo e os romanos urbanidade.

Não é para estranhar que delicadezas como estas escapem ao senso crítico do Senhor Romero.

É Machado de Assis um humorista? Para dizer que não o é, escreveu o Senhor Romero longas e fatigantes páginas, repassadas de um narcotismo da mais pura essência.

Quer à fina força definir o que é o célebre humour dos ingleses. Pede a Hennequin, a Taine e a Scherer mão forte para o desempenho da tarefa, um trabalho digno de Hércules. São encantadores, são finos, são delicados os fragmentos que transcreve daqueles escritores. Mas, se se deve antes de tudo dizer a verdade, nada adiantam para quem não sabe ou não sente o que é o humorismo britânico. Brilhantes subtilezas, contrastes e antíteses, mais artificiais do que reais, bordados e arabescos à fantasia, belas variações e nada mais.

Com os escritores que cita, o Senhor Romero dá L. Sterne como o humorista inglês por excelência, e por sua conta e risco exclui dentre os humoristas e Cervantes e a Rabelais, naturalmente porque não são ingleses.

Pois bem: ouça o que dizem a respeito os próprios ingleses:

We now perceive that this author (Sterne) apparently so original in his form, was one of the most unblushing plagiarists that ever wrote, borrowing incessantly from Rabelais and Burton, and  owing, indeed, nearly the whole for his imagery to those authors.”

“…the writings, and particulary the character of Sterne be found to possess a strong resemblance to the national idiosyncrasy of the French people and genius. (Outlines of English Litterature by T. B. Shaw, cap. XIV).

Eis aí: os próprios ingleses dão Rabelais como um dos pais do humorismo. Portanto a coisa não é tanto inglesa como pretende o Senhor Romero.

Addison em um dos seus ensaios (Spectator, nº 35), escreveu alguma coisa sobre humorismo: diz que é mais fácil definir o que ele não é, do que o que é. E para exprimir o seu pensamento recorre a uma alegoria e construí a seguinte árvore genealógica.

Truth was the founder of the family, and the father of Good Sense. Good sense was the father of wit, who married a lady of collateral line called Mirth, by whom he has issued Humour.”

Observa que o humourat differents times appears as serious as a judge, and as a jocular as a merry-andrew, but as he has a great deal of the mother (mirth) in his constitution, whatever mood he is in, he never fails to make his company laugh.”

Addison era um moralista acérrimo, queria o humour, mas sempre sob o governo da razão. O falso humour, dizia ele, ri perpetuamente, ao passo que todos que estão junto dele se conservam sérios.

Mas, para que invocar Taine, Scherer e Addison?

Todos que têm alguma cultura literária sentem bem o que é o humour. É mais ou menos esta capacidade de perceber os desconcertos, os ridículos, o lado cômico, as baldas, os sestros, as fraquezas, os falsos juízos e opiniões, os costumes e práticas desarrazoadas do homem e da sociedade, unida ao talento de fazer tudo isto ressaltar por um gesto, por uma palavra, por uma proposição, pela alegoria, pelo conto e até pela caricatura, sem ódio nem paixão e com uma espécie de desinteresse, pelo menos aparente. É mais uma malícia de espírito do que uma perversidade de coração: uma coisa que faz rir, que “never fails to make company laugh”, mas que não provoca, nem revela a indignação e cólera.

Se é esta a noção comum de humour, ninguém em boa-fé pode contestar a Machado de Assis os dotes de humorista. Nas suas últimas produções há muito humorismo, e de bom quilate. O público, que segundo Voltaire, é sempre o melhor crítico, de há muito lhe conferiu os foros de excelente humorista, e não lhes há de rasgar o pedantismo de uma crítica estreita e de regrinhas.

Também não quer o Senhor Romero que Machado de Assis seja um homem de espírito.

Ah! Espírito e humorismo, só os tem Tobias, o eterno, o infalível Tobias.

A admiração do Senhor Romero por Tobias tem sido uma verdadeira fatalidade para a glória do homem. Se Tobias voltasse ao mundo, perseguiria o Senhor Romero em todos os tribunais e instâncias pela terrível obstinação com que teima em arruinar-lhe a fama, desenterrando papéis que apodrecem no esquecimento, e expondo-os de novo à luz da publicidade, papéis que encerram trabalhos efêmeros, esboços, ensaios, verdadeiros exercícios de composição.

Há uma certa piedade para os mortos que no fundo não é senão uma perversidade, já o disse alguém.

Acumula o Senhor Romero citações e citações para apontar aos incrédulos humorismos e pilherias de Tobias.

Por certo essas citações deparam um ou outro humorismo feliz, uma outra boa pilhéria. Mas a troco de tão pouco, quanta sensaboria, quanta insipidez! Facécias de mau gosto, jocosidades aldeãs, pilhérias que resvalam pela chocarrice, grosserias...

Não; não reproduziremos as citações. Respeitamos a memória do morto. Só aos seus amigos é lícito profaná-la.

                                                                     (Vindiciae, 1899)