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Discurso de posse

Exmo. Sr. Representante do Presidente da República;
Eminentíssimo Senhor Cardeal D. Sebastião Leme;
Senhores ministros de Estado;
Senhores embaixadores e ministros;
Minhas senhoras, prezados confrades, meus senhores.

Existe um velho baldão, já hoje investido em foros de verdade, que se vasa nesta frase feita: “as academias inventaram o discurso”. Ora, na atual conjuntura do apregoado, desejo recordar, meus senhores, que ao contrário, foi o gosto dos discursos que suscitou a Academia.

Academio, bem o sabeis, homem provecto e honrado, com moradia faustosa rodeada de jardins, às portas de Atenas, costumava agasalhar alguns filósofos e letrados que se entretinham em longas e cerradas controvérsias. Numa dessas, Platão, com Aristóteles, Teofrasto e outros discípulos, discutindo ensinamentos socráticos e talvez, mais do que o devido, inflamados pelos vinhos capitosos da Trácia – entraram em bulha, pondo em perigo as alfaias, móveis e utensílios do imprecavido anfitrião. Passado o tumulto, Academio, para forrar-se a incômodos e prevenir os possíveis riscos que correriam seus bens, apontando o jardim aos filósofos, decretou, que de então em diante, à sombra das árvores, ao lado das vinhas fecundas, ouvindo a marulhada, os Mestres do pensamento ático acendessem, à vontade, os fogos do espírito, desgastando a força dos raciocínios em lentos passeios até o cabo Sinium. Assim, Academio, amigo dos oradores, esboçou casualmente a sábia instituição que lhe imortalizou o nome. Quando a cultura clássica, renascente depois de longos tempos das sombras em que se acoita, suscitou no século XVII a célebre agremiação de cultores das boas letras, evocou-se o nome de Academio restaurando-se nas margens do Sena o seu jardim florido e culto de Atenas.

Não foi, porém, a Academia de Platão o primeiro cenáculo da inteligência na história da cultura humana. Convívios espirituais sempre os houve entre homens; a milenar tradição acadêmica não é em si o condão exclusivo duma era, mas o carisma típico e inerente à humanidade civilizada, a qual sempre se exprimiu em discursos, às vezes em acesos debates, acumulando o patrimônio das idéias coevas, na expectativa dos frutos que pudessem dar no futuro.

Eis, meus senhores, por que estamos aqui reunidos nesta solenidade; já que o discurso é naturalmente a criadora voz das academias; visto caber ao último que chega, tentar fazer justiça, saudando na sua Cadeira a sombra do antecessor – não tenho sequer o direito de me escusar ocupando imerecidamente a vossa atenção. Contudo, devo agradecer de pleno a benevolência e generosidade dos que me abriram as portas desta Casa. Pudesse, no entanto, não desmerecer da vossa ilustre companhia, e seria muito mais do que eu mesmo espero, na minha célebre vaidade insatisfeita.

Quando Victor Viana foi investido nesta dignidade acadêmica, no discurso de agradecimento que então vos dirigiu, modestamente proclamou receber tamanha honra a beneficio de inventário, convencido de que a mesma se dirigia, precipuamente, à profissão do Jornalismo. “Sou aqui”, dizia o ilustre sociólogo, “antes de tudo, representante da minha profissão principal, e honrado de ocupar uma Cadeira cujo patrono foi jornalista, como jornalistas foram o seu fundador e o grande poeta a quem me coube suceder”. Sociólogo, economista, crítico de arte e de literatura, técnico da administração pública, tudo isso era somenos para Victor Viana, que soltava toda essa rica plumagem, contanto que lhe ficassem as plumas de jornalista.

Assevera o meu preclaro antecessor que o Jornalismo é um gênero literário, acrescentando não ser possível separar o escritor que labuta na imprensa, do jornalista que publica livros. Aos literatos e jornalistas, Victor Viana assinalava missão comum, a mais alta, a mais nobre nas sociedades modernas:. – a defesa da liberdade de pensamento. Pois como instrumento da livre expressão do pensamento, é que o livro e o jornal diferem irredutivelmente. Quando mais substancioso for um livro, como alimento do espírito, mais será vitualha de conserva. O jornal, ao contrário – perdoai-me a audácia da expressão –, é carne verde, substância protéica, de fácil e rápida assimilação. O melhor livro é uma reserva de idéias guardadas em páginas de bronze. Justamente quando o livro se aproxima da bela e perfeita expressão da verdade é que é mais durável, com maior profundeza de humano. O jornal, por maior que seja o seu orgulho, o que menos pretende é ser integralmente justo e veraz. As páginas de um jornal desfolham-se numa ligeira manhã. São o repositório do orvalho tremeluzente da novidade, um ligeiro perfume, realidades compostas sutilmente de efeitos de luz – reduzindo-se, no mais das vezes, a um ponto de vista cambiante e passageiro.

O literato põe tesouros de ternura na vestimenta de suas idéias. O vocábulo sorri, chora, vibra, afrouxa, dilui-se; o autor descobre-lhe relações sonoras e simbólicas com o mistério da Criação, nos seus aspectos multiformes. A paleta do poeta encerra a multidão policromática dos vocábulos. Victor Hugo entesourava palavras como o usurário acumula moedas cantantes e lúcidas. Suas descrições mais poderosamente evocativas fizeram-se com a abundância das tecnologias profissionais: nos Trabalhadores do Mar, a narrativa do naufrágio de “La Durande” é composta de termos náuticos, pesquisados nos manuais de aparelho dos navios.

Dir-se-á que os poetas procuram na abundância do vocabulário o sortimento de sonoridades de que carecem o ritmo e a rima da sua arte. Mas a verdade é que a meticulosa pontualidade da expressão persegue o homem que se manifesta ao público, falando ou escrevendo. Melhor ainda. A propriedade da linguagem é o principal instrumento da clareza do raciocínio; faz parte das profissões e impõe-se até aos que na mais baixa camada da sociedade precisam de explicar, fixar, distinguir o mais ligeiro fato da natureza relativo às preocupações de seu estado. Um sábio sueco que na região do Panamá observou longamente a tribo dos Cunas refere que no seu vocabulário selvagem figuram nada menos de quatorze verbos para exprimir os quatorze movimentos de cabeça do caimão! Não pode haver maior escrúpulo na exatidão da linguagem!

Qual o jornalista que perde o seu tempo, se preocupa, se emprega, se arruína, nessa exibição meticulosamente exata da representação literária dos fatos que descreve? Para fazer o seu jornal vivo e crepitante, bastam-lhe a clareza e a graça, a ajuda do bom gosto natural – a elegância do currente calamo. Nem há tempo para mais. Não. O Jornalismo não é um gênero literário. O Jornalismo é uma função política. A expressão “política” veio-nos do grego e corresponde em vernáculo à “ética do Estado”, ou por outra: à filosofia moral do governo dos Estados. Ora, tudo no Jornalismo moderno corresponde superiormente à ordenação moral e espiritual da sociedade. O simples noticiário de polícia – aparentemente o primeiro degrau da profissão jornalística – põe no seu tecido as paixões, os interesses, as alegrias, os sofrimentos, as dúvidas e as ilusões da existência individual e coletiva diariamente exemplificados, ostentando-se com um ensinamento eloqüente, filho do conhecimento e da prática.

Os jornais são os cinco sentidos das aglomerações humanas. Constituem a atmosfera comum em que vibram as inteligências de um povo, formam a contigüidade das opiniões, estabelecem as fórmulas que uniformizam os conceitos, assim accessíveis a todas as bitolas mentais. No jornal, o mais humilde, o mais modesto sinal tipográfico tem sua significação eminentemente social, e portanto política.

Meus Senhores, correu muita água por baixo das pontes desde a noite da recepção de Victor Viana neste egrégio Cenáculo. O eminente polígrafo falava com a tristeza de quem previsse a próxima derrocada da Ordem em que formou o seu belo espírito e em que viveu descansado e pacífico. Os tempos tocavam o fim. A terceira década do século viu os núncios da irremediável transformação; e a quarta em que vamos, consumou o sacrifício da mais bela, harmoniosa e feliz civilização que a humanidade concebeu no planeta.

“Jornalismo e Literatura”, observava o vosso recipiendário de 10 de agosto de 1935, “têm o dever de cooperar na defesa da liberdade de pensamento.” Já um filósofo alemão, anos antes, denunciava os perigos do “politismo”, isto é, da absorção da pessoa moral e física dos humanos, no Estado. O tempo de Victor Viana tinha passado. Feliz o sociólogo perempto, que não assistiu ao enterro de suas doutrinas.

Quando a minha geração abriu os olhos à vida intelectual tínhamos como certo que a perspectiva no tempo era indispensável às conclusões da filosofia da História. Erro singular. Hoje, passados 25 ou trinta anos, vemos que a história decorre nos nossos dias; completa os seus ciclos vertiginosamente, debaixo das nossas vistas. As instituições se atropelam. Os estados sociais se sucedem tumultuariamente.

Relembremos o brevíssimo trânsito da imprensa livre. Nasceu em 30 de maio de 1631 o jornal de Théophraste Renaudot, contemporâneo da Academia Francesa, também amparado pelo braço poderoso do grande gênio político, o Cardeal de Richelieu. La Gazette teve um precursor em Veneza – Fogli Avvizi, cujos exemplares se vendiam pela moeda da República dos Doges chamada “gazetta”, e daí lhe veio o nome. Contudo a notoriedade da folha volante de Renaudot valeu-lhe a consagração da prioridade, como aconteceu aos irmãos Montgolfier em relação ao nosso Bartolomeu de Gusmão, que os precedeu na invenção dos balões.

Se o ano de 1631 viu nascer o primeiro jornal impresso, que foi o germe da imprensa moderna, não viu por certo nascer o Jornalismo livre. Das revoluções liberais é que irrompe a imprensa livre. Desapareceram a censura, os registros, as cauções, as declarações de responsáveis. Mas as luzes dessa madrugada de liberdade duram pouco. Em França só a III República, com a lei de 1881, firma a liberdade de imprensa.

O caráter utilitário e conservador da imprensa inglesa assegurou-lhe vida mais tranqüila. O Times, o Morning Post e o Morning Advertiser atravessaram incólumes o século XIX, suas guerras, suas revoluções, mudanças de regimes e de instituições, dentro de aparências inalteráveis.

Conta-se que um dos jornalistas do consórcio de Northcliffe, descendo no elevador da Carmelite House, em companhia do famoso açambarcador de jornais londrinos, saudou insistentemente, tirando o chapéu, o rapaz de serviço no ascensor. Northcliffe não se conteve que não observasse o mau gosto daquela singular exibição. Não era propício à disciplina da casa que os jornalistas brincassem com os pequenos empregados. Explicou-se então o interlocutor do patrão, dizendo: “Brincar! Good heavens! Não estou brincando, estou preparando o futuro. Quem sabe se o servente de hoje não será amanhã o redator-chefe do Daily Mail?”

Esse episódio é o ponto que encerra o ciclo da imprensa de opinião, iniciando o da imprensa de informação. A breve evolução veio da Lanterna de Rochefort ao manager londrino, que não organizou suas empresas (obra de seu irmão, Lord Rothermere) nem escreveu os seus artigos (serviço que se atribui a Kennedy Jones). Eis aí a distância que vai do gênio político à capacidade industriosa. E a imprensa, que foi na segunda metade do século XIX a voz essencialmente política, o grande órgão democrático, o ambiente espiritual em que respiravam as instituições políticas e jurídicas adequadas a esse tempo transformou-se, no século em que vamos, num dos seus mais graves problemas sociais, pois que o capital com suas irresponsabilidades morais, a indústria com seus múltiplos tentáculos, e a finança com sua tendência internacional se apoderaram do instrumento da inteligência na formação da opinião pública para aplicá-lo, no interesse de seus negócios, a ganhar dinheiro.

Mas o nosso ilustre antecessor não foi do tempo dessas conclusões melancólicas, e por isso logo nos primeiros períodos do seu discurso de recepção, insistiu na profissão de fé de um sistema de idéias definitivamente extinto: “Jornalismo e Literatura exercem a mesma ação necessária; e neste momento grave da História têm o dever de cooperar na defesa da liberdade de pensamento!”

A liberdade de pensamento, isto é: a liberdade de exprimir uma opinião é um conceito cuja substância se forma na cultura e civilização de um povo, mas cujas normas políticas e jurídicas dependem das instituições do Estado.

A Constituição em vigor, no seu artigo 122, assegura aos brasileiros e estrangeiros o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Em o número 15 declara: “Todo o cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento oralmente, por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei.” Evidentemente, trata-se de um direito garantido, não de uma licença arbitrária. Mas a letra a desse dispositivo admite na normalidade constitucional a censura prévia da imprensa, com o fim de garantir a paz, a ordem e a tranqüilidade pública. Quem é o juiz dessa finalidade? O governo, quer dizer: o Estado Policial. A Constituição manda que a imprensa se regule por lei especial, e logo no frontispício dessa lei afirma que “exerce uma função pública”. Ora, aí não se trata do exercício de funções administrativas por agentes do Poder Público. A “função pública” a que se refere o dispositivo constitucional prende-se à nova concepção dos deveres do Estado na garantia ativa dos direitos individuais. No tempo de Victor Viana, a finalidade da associação política era a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. As tábuas em que se inscreviam tais direitos, desde as famosas declarações norte-americana e da Revolução Francesa, davam corpo jurídico aos atributos políticos do homem livre, vivendo numa comunidade civilizada. Depois de Victor Viana surgiu o Estado, entidade rígida, a qual tomou a si realizar na lavoura dos deveres coletivos a colheita dos direitos individuais.

Surgindo, o Estado moderno substituiu, como fato real, a Nação que se definiu como fenômeno sentimental, incapaz de se manifestar nos problemas quotidianos que tratam da vida, do trabalho, da paz, da liberdade e da felicidade popular. Esse Estado titânico afirmou desde logo a igualdade democrática, quer dizer: a igualdade no ponto de partida – daí em diante os homens se distinguindo e merecendo, na proporção dos serviços prestados ao próprio Estado.

A Constituição da Polônia de 1935, uma das matrizes da Constituição outorgada ao Brasil de 1937, também assegura a liberdade de consciência, de palavra e de associação, mas nos limites determinados pelo interesse público. Essa Constituição prevê uma legislação especial à imprensa, o que pode ser um método de lhe assegurar a verdadeira liberdade, que é condicionada pela ordem legal.

Ora, meus senhores, toda essa controvérsia gira em torno da proposição do Estado como entidade social, emanação da mais imperiosa necessidade material, condensada nas realidades vigentes. O Estado, assim considerado, é o árbitro dos interesses particulares segundo as exigências do interesse coletivo. Seus objetivos alargam-se indefinidamente através do horizonte limitado das gerações e projetam-se na perenidade nacional.

Entre Victor Viana e seu sucessor – estamos vendo – quebramos uma esquina da história da civilização. Mas os povos nessas eventualidades – e o fato não é novo ao espírito humano – não fazem a conversão simultânea e unanimemente em passo de parada, como os antigos regimentos da Guarda Imperial Alemã evoluíam a passo de ganso, em Potsdam. Os povos submetem-se às novidades dos tempos, seguindo suas contingências, necessidades e conveniências. Adaptam-se às determinantes da existência material que é afinal o receptáculo das aspirações do espírito. Não basta que as reformas surjam no caminho das nações. A grande questão, que é o verdadeiro elemento de todos os problemas políticos, é a viabilidade, a oportunidade ou a inoportunidade da adoção das novidades.

Meus Senhores, a quem cabe discernir o viável do inviável no destino dos povos? As leis talhadas em mortalhas acompanham a decomposição do corpo; não glorificam o espírito. Não é a lei, não são os regimes e instituições que adivinham e constroem a sorte das nações. Esse papel histórico tem sido através dos tempos disputado pela mais nobre forma da inteligência humana, e a sua sombra funesta: a primeira é a política; a segunda é a demagogia.

A civilização atual suscitou nova modalidade de demagogia: a dos técnicos. A consciência da técnica é a última superstição da ciência. A especialização é a compartimentação do cérebro, é o encerramento das idéias em células estanques, limitando a inteligência ao seu objeto direto e invariável. Ora, a política é a adivinhação, a improvisação, o sentido do geral o gosto do passional, e por tudo isso o contrário da disciplina do espírito, cuja absorvente aplicação leva aos píncaros da ciência. O técnico é, pois, a negação do político; o político floresce na praça pública, o técnico isola-se no laboratório. Mas a civilização da máquina havia de sugerir o seu grande instrumento que é a técnica, como capaz da habilidade universal de resolver os problemas de governo das sociedades humanas; e por isso apresentou o técnico como o substituto do político. Se na realidade não se deu a substituição impossível, contudo ficou o equívoco do sujeito e sua sombra, da realidade e sua projeção obscura, que é ao mesmo tempo uma negação e um absurdo.

Ora, ninguém pode aplicar as medidas da lógica aos monumentos da política, que se talham na alma e na carne dos povos. Realizar é um verbo impreciso no tempo. Pode ser um equívoco que se desmanche numa palavra; pode ser a muralha de Salomão desafiando os séculos.

O fato é que estamos na época de transformações exigidas por sobressaltos tremendos das sociedades humanas. Muitas estruturas, mal se constroem, desabam logo fragorosamente. Algumas das grandes pedras da edificação social e política que presenciamos sairão do caos aparente, tomarão figura compreensível e nos dirão o segredo de seus fins. A revolução que lavra no mundo é um simum revolvendo as areias do deserto.  Tudo parece uma convulsão do materialismo científico, da luta dos egoísmos de classe, da fúria implacável de dominação. Mas à porta do deserto está a esfinge. Quando a interrogarem na linguagem que desvenda os mistérios da Criação, talvez surja nos horizontes do mundo a manhã radiosa da paz nos espíritos.

Vede bem, meus senhores: a paz nos espíritos é o fim dos fins.

O meu antecessor legou-nos, eminentes confrades, o encargo de defender no espiritual a liberdade de pensamento. No temporal sua herança foi de igual quilate clássico: bons orçamentos, boa moeda, boas finanças!

Victor Viana, sociólogo e economista, encontrou no Jornal do Commercio, o habitat da sua vida de espírito. Floresceu e frutificou com as raízes fincadas na terra fecunda das realidades e certezas do seu tempo. Não foi, porém, uma árvore isolada; foi um vergel. O Jornal do Commercio, monumento da nossa cultura, o órgão secular mais fiel e autorizado da sociedade brasileira, condensou afinal as convicções da época de Victor Viana.

Meus Senhores: a meditação e o estudo da História da Civilização impuseram-me o terror dos julgamentos globais e definitivos. Na evolução das instituições humanas não há erros; há fases, aspectos, tempos, digressões, atalhos. O advento democrático de 1739 trouxe uma florescência de verdades provisórias. Tais verdades foram, a bem dizer, elementos de cálculo, retirados desde que se consumou sua utilidade na construção das idéias. Erram os julgadores apressados, os cérebros adequados às conclusões definitivas, os fanáticos dos sistemas e os demagogos das fórmulas verbais. Do amor à liberdade dos revolucionários da Enciclopédia não terá surgido a opressão capitalista? Karl Marx enquadrou no materialismo histórico a decadência e o fim dessa opressão. Hoje, esse dogma é um iceberg perdido no caminho dos trópicos.

Os fatos irredutíveis encarregaram-se de mostrar, entre os dias de Victor Viana e os nossos, que eram falsas a explicação liberal, como a explicação materialista das sociedades humanas. A vida social não é um idealismo inerme, pasto indefeso dos egoísmos individualistas; mas a vida social também não se reduz ao embate dos fenômenos econômicos, não se limita à repercussão das necessidades materiais, completamente vazia dos tradicionais deveres morais, dos compromissos espirituais da vida coletiva nacional.

Quando Karl Marx esperava que a evolução final do capitalismo desaguasse no incomensurável da sociedade comunista, interferiu a nova concepção do Estado; fez-se espontaneamente a retificação dos fatores do idealismo individual; surgiu uma concepção de desinteresse e sacrifício do fato presente, em benefício das grandes esperanças na sobrevivência da nação.

No seu discurso de recepção, Victor Viana aludiu aos dois temas da ciência financeira do seu tempo: equilíbrio orçamentário e moeda sadia. Hoje quem limitaria os problemas financeiros à ciência das finanças? Hoje todos os problemas financeiros outra coisa não são senão problemas políticos e sociais.

Nos dias que correm, meus senhores, não há bons orçamentos nem moeda sã. O que há é boa política, ordem e justiça social. A própria economia se apresenta tão dependente do sistema político que poderíamos dizer: isoladamente também não existe. A predominância, isto é, o poder “estatal” não demora nem no financeiro nem no econômico. Reabilitou-se na fórmula política, introduziu os elementos na consciência nos fatos materiais, entrou como temperamento na luta entre o individualismo liberal e as imposições materiais das coletividades humanas. Em vez de separar o que é de Deus do que é de César, interpretou o temporal segundo as aspirações do espiritual; e decidiu que o transitório das gerações teria de se submeter ao perene das nações.

Victor Viana conheceu governos com boas finanças e má política. Conheceu governos ricos em nações pobres. Conheceu moedas sadias regulando comércios arruinados. No seu tempo essas incoerências eram possíveis, porque a liberdade política era um credo encobrindo a escravização econômica. Afinal, a humanidade vislumbrou que alguma coisa existia no planeta, além das contingências e dos inevitáveis das necessidades materiais. A consciência humana descobriu que o mundo físico mudaria sob a iluminação do ideal e que as nações só poderiam subsistir tomando como pontos de aferição de seus destinos os fanais que brilham nos caminhos do céu. Eis aí Sursum corda!

Dêem-nos uma estrutura política sólida; dêem-nos autoridade, disciplina, coesão social; e teremos espontaneamente os índices da paz de espírito dos povos, que levam às boas finanças e à moeda sadia. No tempo de Victor Viana, dentro de bons orçamentos do Estado diluíam-se as efervescências das paixões políticas. A política era a diversão dos povos felizes. Hoje, a política global do governo responde por tudo, e o fito dessa política não se pode reduzir ao programa de um partido, mas deve abranger a ordenação total da vida social, tirando dela o santo dos santos que é “a paz nos espíritos”. Sem paz nos espíritos não há orçamentos equilibrados, nem moeda sã, nem comércio exterior, nem vida internacional.

O “liberalismo”, segundo a concepção de Adam Smith, era o Estado de braços cruzados. O Estado, na fórmula abstencionista, desamparava a liberdade de todos, permitindo a opressão de muitos. Evidentemente a lei do mais forte é a lei da natureza, e o capitalismo prosperando à sombra do “liberalismo” definiu-se uma concepção eminentemente materialista da sociedade ocidental. O desvendamento final desse panorama sinistro não foi do tempo de Victor Viana, que morreu na confusão de “liberalismo econômico” com liberdades políticas. Hoje, ao assumir a sucessão do ilustre sociólogo e publicista, posso declarar uma verdade pacífica: o liberalismo econômico perempto restaurou a liberdade política. A confusão das duas vozes é o que ainda retém os inimigos da violência num sistema realmente gerador de injustiças e opressões.

Resta consagrar a generosidade, o desinteresse material, o sentido de humanidade que eram os móveis e os impulsos da mentalidade liberal do século XIX. A civilização que resultou desse singular fanatismo individualista foi uma das mais brilhantes da história do mundo. A justa liberdade e o espírito científico sublimaram a consciência humana e estão mantendo, na crise da transição, o fogo sagrado da verdadeira liberdade. Aparentemente, os regimes de ditadura, de poderes discricionários, estão no apogeu dos tempos; na realidade o que já vem despontando é a democracia jurídica, uma instituição de ordem social, protegendo a dignidade e a personalidade humanas.

O Estado vai ser o eixo da nova época histórica, isto é, vai assumir as funções arbitrais entre os deveres e os direitos da coletividade e do indivíduo. O verdadeiro Estado moderno não será, pois, a propriedade de alguns, mas a salvaguarda de todos. Não será uma tirania que é a antítese da legalidade. Não será um regime de violência que é o oposto à universalidade da Justiça.

Falta-nos estabelecer as fontes da legitimidade dos novos Poderes Públicos. Não se descobriu nada melhor do que o sufrágio democrático, cujos defeitos são, aliás, bem conhecidos. O paradigma das instituições eternas é a Igreja Católica; mas nessa estrutura política intervém o idealismo divino, imutável na fé. O idealismo humano, que reponta com o sentido da imortalidade, é o culto racional da Nação, o amor de um destino comum, sem fronteiras no tempo, mantendo nas gerações que se sucedem uma esperança inesgotável.

O verdadeiro nacionalismo é a tríplice interpretação idealista: – da personalidade, como consciência e inteligência; da família, como sentido de solidariedade na sua continuidade; da Nação, como origem e fim, como perenidade nos tempos, significando a vida de cada um, vertendo afinal no grande estuário da existência eterna da Pátria. E assim vemos que o nosso século fugiu às marcas dos filósofos sectários, e, em vez de ser a estepe do materialismo histórico ou o circo romano em que combatiam as feras à lei do mais forte – será um amanhecer do mais confiante idealismo, o repouso nas grandes forças morais, o triunfo dos compromissos tradicionais das leis humanas e divinas.

Em resumo: os tempos modernos trarão a confirmação de movimentos antigos. A sociedade não deve ser organizada sobre elementos materiais, instrumentos de trabalho, meios de produção que evoluem e se transformam à vista; mas deve fundar-se sobre as exigências e aspirações da alma humana, que é a centelha divina crepitando eternamente no mundo.

Victor Viana, filho do ilustre professor Ernesto da Cunha de Araújo Viana e de D. Teresa de Figueiredo Araújo Viana, nasceu em 23 de dezembro de 1881. Sua honrada estirpe mineira provinha do Marquês de Sapucaí, cujo busto o bisneto teve a glória de inaugurar solenemente na praça pública de Vila Nova de Lima, sua cidade natal.

Seu pai foi o melhor mestre nos cursos colegial e acadêmico de Victor Viana. Incutiu-lhe e ordenou-lhe o amor aos livros, deu-lhe um método de estudo que foi sua segunda natureza no decorrer da existência.

Muito moço, Victor Viana começou a escrever para os jornais: freqüentou as colunas das revistas acadêmicas: Época e Gênesis; passou logo depois a colaborar na Imprensa de Alcindo Guanabara e em O País, ancorando afinal no Jornal do Commercio, em cujas páginas amadureceu a pensamento; e por mais de trinta anos foi seu redator eminente. Desabrochando na alvorada deste século, Victor Viana começou a perlustrar os tempos mais patéticos da história da humanidade, cheio das conclusões cabais de uma civilização convencida de ter atingido o apogeu da glória. Se na Europa chegavam ao fim dois grandes reinados – da rainha Vitória e do papa Leão XIII, – na América, a libertação de Cuba assinalava a revelação do novo-continente como poderio militar. Se os fatos internacionais se desdobravam assim, harmoniosamente, encerrando cada ciclo na perfeição, como elos da mesma corrente, estendendo-se ao mesmo tempo através de mares e terras, assinalando no planeta a predominância da civilização do Ocidente europeu – no Brasil, as novas instituições republicanas, adaptando-se ao ambiente político, criavam uma fórmula artificial, porém estável, susceptível de se aperfeiçoar numa evolução que a índole benigna e a vivacidade de espírito do nosso povo favoreciam. Essa fórmula foi, como sabemos, a oligarquia como poderes quadrienais, os governos federal e estaduais gerando-se na máquina governamental à falta de comícios eleitorais legítimos.

Exatamente em 1900, Campos Sales ia em meio da obra de restauração financeira, corolário da política de fortalecimento da autoridade central, apoiado incondicionalmente nos governadores estaduais. Essa política de força e de prestígio assegurou a ordem pública, ainda periclitante no primeiro quadriênio de governo civil. O terceiro quadriênio, chefiado pelo Conselheiro Rodrigues Alves, partindo da segurança da ordem pública, da restauração financeira e do prestígio da política autoritária, firmados pelo Presidente Campos Sales, traçou o grande programa de base, adaptando o País às exigências da vida moderna. Esse período, agora tão vivamente evocado pelo Sr. Luiz Edmundo, foi o das manifestações dos homens de governo no regime que então fazia suas primeiras armas. O Barão do Rio Branco, apoiado no Visconde de Cabo Frio, punha um tesouro de conhecimentos e experiência a serviço da República, que. soube aproveitá-lo com singular proficiência. Vários presidentes – elementos díspares de uma oligarquia continuada, adivinharam que o supremo interesse do País era a conservação meticulosa do chanceler e de sua política. Nos negócios exteriores, um só ministro a cada regime; a renovação exige-se nos negócios interiores, cujo aperfeiçoamento se faz da variedade das contribuições de muitos homens hábeis e capazes.

Recordemos, com admiração e respeito, alguns nomes dos colaboradores do governo e da política do Presidente Rodrigues Alves: Osvaldo Cruz, Francisco Passos e Frontin, Leopoldo de Bulhões, Lauro Müller e esse extraordinário lutador que ainda está de pé entre nós, como um grande exemplo: José Joaquim Seabra. O Exército ainda era o da velha escola, dos Mallet, Argollo, Costallat, Bormann, sendo os moços de então os Srs. Sousa Aguiar, Hermes da Fonseca, Belarmino de Mendonça, Caetano de Faria. Na Marinha os Noronhas, Proença, Guilhobel, Huet de Bacelar, Alexandrino de Alencar entravam a substituir a grande geração marinheira dos Jaceguai, Custódio de Melo, Saldanha, Wandenkolk.

Estou cometendo, meus senhores, a imprudência de citar alguns nomes a esmo, mas sem esquecer nenhum, de tal forma todos se impõem à minha veneração patriótica. Pelos que deixo assinalados vemos a grande Marinha e o grande Exército desse tempo. Pois foram tais quadras de progresso político e social do Brasil que a Grande Guerra surpreendeu como a tempestade sombria deflagrada no céu azul. Victor Viana sobreviveu por mais seis lustros. Nessas três décadas nenhum fato novo no tumulto do cenário do mundo escapou à argúcia de seu espírito. Pouquíssimos estudiosos, neste país, teriam seguido como ele, dia a dia, o turbilhão revolucionário. Historiador, político, jurista, crítico filosófico, economista, – o meu ilustre antecessor não perdeu um jota da enorme algaravia, que se processava na confusão, ao pé desta torre de Babel. Como um prenúncio funesto, já então doutrinas, interesses, ódios, pretextos, fanatismos, tudo marulhava sobressaltando os povos inertes e abandonados na infinita desgraça do seu apocalipse. Entretanto, para Victor Viana, os últimos anos devem ter sido de estupefação, surpreendendo continuamente o seu espírito formado em compreensíveis instituições políticas e sociais. A indisciplina, a subversão da hierarquia redundaram na depreciação dos valores até então indiscutíveis. Justamente porque o fenômeno não era apenas indígena, chegando-nos do mar alto como ressaca de tempestade longínqua, mais terrível nas suas ameaças misteriosas se devia apresentar à inteligência do meu ilustre antecessor.

Alguma coisa, porém, sobrenadava na confusão das águas. O refúgio de Victor Viana foi a camaradagem do Jornal do Commercio e a infalível amizade de Félix Pacheco. A responsabilidade que a tradição de O Jornal põe aos ombros de seus sucessivos dirigentes constitui afinal um sistema de princípios morais e intelectuais muito chegado a uma filosofia religiosa. Sempre houve, está bem entendido, a forma, o estilo, a apresentação em público do Jornal do Commercio; mas também o pensamento, o fundamento das idéias, o corpo de doutrinas dos redatores e colaboradores do velho órgão se harmonizam no ritmo conservador que a tradição impõe, o qual consiste em somente aceitar as inovações depois de darem provas práticas, isto é, admitir o futuro depois de se transformar em passado. Não digo que o Jornal do Commercio tenha sido sempre a sentinela da vitória. Não é isso. O que repugna à sua índole conservadora é a improvisação, as decepções do pouco mais ou menos, os embarques de imaginação com planos e projetos de fantasia.

Fato interessante, curiosa coincidência: França Júnior, Urbano Duarte, Augusto de Lima, Victor Viana, todos pertenceram, na continuidade de uma época de florescimento intelectual, à colméia secular da nossa imprensa. Esta Cadeira tem, pois, a impregnação de muitas vidas de espírito, que sob diversas modalidades provieram da mesma inspiração brasileira.

Já não existem hoje, no bulício de uma grande metrópole em que se transformou a cidade da Rua do Ouvidor – os convites de letrados e estudiosos, as tertúlias de poetas e cronistas, de jornalistas e boêmios. A grande imprensa de informação impõe matinalmente opiniões estereotipadas sobre todos os assuntos em curso. As edições sucessivas retificam, corrigem, concluem no seguimento dos fatos. O circulo que encerra o homem da rua excluído, isolado, proibido de formar um conceito sobre a coisa pública, quanto mais de exprimi-lo livremente, alarga-se, estende-se cada dia em toda a parte do mundo. Os que governam expandem a mentalidade de usina elétrica. Sua grande função é captar a força misteriosa, distribuí-la. Exercem um mandato da Natureza, são um poder do destino, exato e infalível como uma operação de cálculo. Os homens da rua, as multidões da rua, as nações da rua contentam-se com as declarações oficiais que são as justificativas dos governos na linha de seus destinos.

Victor Viana não foi, não sabia ser, não se conformaria em ser um homem da rua. Homem derradeiro de uma raça desaparecida recebe nesta cadeira vazia a homenagem de um sucessor, que por milagre ainda balbucia na mesma linguagem nativa.

Minhas senhoras e meus senhores.

Eu, que sinceramente creio em Deus e muito amo a minha Pátria, não poderia fechar o meu despretensioso discurso com palavras estranhas aos dias que correm, recordando a sorte melancólica dos que viveram na volta dos tempos.

Victor Viana aqui deixou luz bastante para guiar o seu sucessor, que, honrado em pertencer a tão nobre Companhia, vos afirma a sua inabalável confiança nos destinos do Brasil!