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José Américo de Almeida

OS SALVADOS

Findo o almoço - podiam ser 9 horas - Dagoberto Marçau correu à janela, que é uma forma de fugir de casa, sem sair fora de portas, como se movesse uma grande curiosidade. Mas, debruçado, apoiou o queixo na mão soerguida e entrefechou os olhos, num alheamento de enfado ou displicência.

Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente, ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado.

Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.

Entrava afobado, comia, ou, antes, engolia, de cabeça descaída, o repasto invariável e ou saía de golpe ou ficava a espiar para fora.

A presença do filho recém-chegado, em férias, não lhe modificava essa impressão. Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais, como uma sombra intrusa.

Lúcio voltou da cachoeira com a toalha enrolada na cabeça, como um turbante.

Levantou o braço num gesto de quem mais parecia dar do que pedir a bênção. E foi, por sua vez, sentar-se à mesa.

Não se defrontavam, sequer, nesse ponto de comunhão familiar, onde as almas se misturam numa intimidade aperitiva. Forravam-se, assim, ao constrangimento dos encontros calados ou das conversas contrafeitas e escassas.

A casa-grande, situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre o cercado e o açude.

Num repentino desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das mangueiras meãs enfileiradas ladeira abaixo, para a estrada revolta.

Parecia a poeira levantada, a sujeira do chão num pé de vento.

Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos - esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.

Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.

Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam onde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.

Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo

Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.

Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica - com os fardos das barrigas alarmantes.

Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.

Meninotas, com as pregas da súbita velhice, careteavam, torcendo as carinhas decrépitas de ex-voto. Os vaqueiros másculos, como titãs alquebrados, em petição de miséria. Pequenos fazendeiros, no arremesso igualitário, baralhavam-se nesse anônimo aniquilamento.

Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos só no olhar. Pupilas do sol da seca. Uns olhos espasmódicos de pânico, assombrados de si próprios. Agônica concentração de vitalidade faiscante.

Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos. E, em vez de comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva.

Lúcio almoçava com o sentido nos retirantes. Escondia côdeas nos bolsos para distribuir com eles, como quem lança migalhas a aves de arribação.

A cabroeira escarninha metia-os à bulha:

- Vem tirar a barriga da miséria ...

Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e de uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.

A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram mal-vistos nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmente pejorativo.

Lúcio responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques rivais. A cada zona correspondiam tipos e costumes marcados.

Essa diversidade criava grupos sociais que acarretavam os conflitos de sentimentos.

Estrugia a trova repulsiva:

Eu não vou na sua casa,
Você não venha na minha,
Porque tem a boca grande,
Vem comer minha farinha...

Homens do sertão, obcecados na mentalidade das reações cruentas, não convocavam as derradeiras energias num arranque selvagem. A história das secas era uma história de passividades.

Limitavam-se a fitar os olhos terríveis nos seus ofensores. Outros ronronavam, como se estivessem engolindo golfadas de ódio.

E nas terras copiosas, que lhes denegavam as promessas visionadas, goravam seus sonhos de redenção.

Dagoberto olhava por olhar, indiferente a essa tragédia viva.

A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica

O feitor alvitrava a admissão dos retirantes:

- Paga-se pouco mais ou nada ...

Mas Dagoberto escarmentava a convergência molesta. Desafogava a fazenda da superpopulação imprestável, consignada à caridade pública.

À vista do bueiro fumegante que sujava o céu estivo, a matula espetral detinha-se esperançosa. E ficava a espiar a casa do engenho como uma grande essa armada no negrume do teto velho.

Alguns faziam menção de subir. Mas logo desandavam, aos tombos, na mobilidade incerta.

De quando em quando, um magote vingava o socalco. Chegavam mastigando em seco, para enganar a fome, nas mais grotescas atitudes da miséria.

Dobravam-se os joelhos, não como pedinchões. Genufletiam moídos de fadiga.

Não se carpiam, como se estivessem realizando um destino irremediável. Nem, sequer, lavavam com lágrimas as caras poentas.

Escorraçados, retrocediam, arquejantes, sem uma queixa.

E, desengonçando-se, de déu em déu, numa marcha esquecida, o rebotalho errante ia atulhar as feiras, malignar as cidades.

Dagoberto despercebia-se do desfile macabro. A seca infundia-lhe um sentimento contrastante.

Era uma inquietação serôdia, como a brasa remanescente que procura acender o cinzeiro.

Num período de vida em que o homem realiza o que sonhou, ele voltava a sonhar. Amor - pólvora que se acaba com a primeira explosão, Amor que sabe a frutos apodrecidos. Era como o caminheiro que, fatigado da jornada, estuga o passo para chegar antes de anoitecer.

Beirava uma idade em que o instinto sexual instigado se difunde por todos os sentidos e é mais imaginação que materialidade, como a saudade do que se não gozou. Crise das uniões retardatárias.

Havia coisa de 18 anos, inveterava-se na viuvez desconfortada, por uma jura indiscreta:

- Mas eu não encontro outra mulher assim...

E gabava-lhe com minúcias de formas os caracteres da beleza e as prendas ocultas:

- Mulherão! mulherão!

Os dias do campo decorriam-lhe recreativos. Mas, à noite, quando as portas se cerravam, cerrava-se-lhe o coração.

A solidão entretinha intimidades desiguais. Admitia o feitor em suas confidências:

- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

- Qual o quê! O senhor encruou ... Se duvidar, com esse calibre é capaz de passar a perna em seu Lúcio.

A mata fronteira, o padrão majestoso, estava acesa uma cor de incêndio.

Havia uma semana, surdira um toque estranho na monotonia da verdura. Dir-se-ia um ramo amarelido à torreira da estação.

Dominava ainda a esmeralda tropical. Mas, com pouco, emergia o mesmo matiz em outro trecho vizinho, como um efeito de luz, um beijo fulgurante do sol em árvore favorita. E, logo, o pau-d’arco assoberbou a flora, como um banho de ouro na folhagem.

Nessa manhã luminosa a mata resplandecia com uma orgia de desabrocho em sua pompa auriverde.

Sem a percepção da paisagem, com a sensibilidade obtusa e entorpecida aos primores da natureza, Dagoberto inquietava-se, pela primeira vez, perante o ouro que frondejava. Parecia-lhe que o sol tinha baixado sobre a selva fulva.

Era, talvez, a cor que lhe suscitara o interesse chambão. As pétalas áureas ...

E semicerrou, novamente, os olhos descuriosos. (...)

(A bagaceira, 1928)

 

CORRESPONDÊNCIA

 Paraíba, 10 de Novembro de 1925.

Meu caro Inojosa:

Gostei muito de sua conferência - O Brasil Brasileiro. Não são simples frases, mas conceitos oportunos e estimulantes.

Já estou enfarado da literatura pela literatura. A inteligência só serve como reguladora de energias. Estamos em tempo de passar do sonho à ação. E, ainda utilizando os padrões do progresso material e cultural de outros povos, devemos construir obra nossa, isto é, atender às exigências de nosso ambiente físico e social, como condição de continuidade e de permanência dessas conquistas.

V. vai mito bem por aí, com a orientação deliberada e o talento que Deus (com licença da palavra...) lhe liberalizou.

Só tem direito de reivindicar as prerrogativas da mocidade brasileira u’a mocidade assim.

Aprecio, também, especialmente, a moderação de seu modernismo.

Aceite, com muitos agradecimentos, um afetuosos abraço do (2)

Confrade e amigo

José Américo de Almeida

 

Paraíba, 25 de junho de 1928.

Amigo Joaquim Inojosa:

Acabo de receber sua delicada carta.

Esperei-o, durante todo o domingo, para mais longa troca de idéias sobre o movimento que nos interessa. É pena que tivesse saído à noite, perdendo, assim, a oportunidade de sua gentil visita.

Não fui vê-lo à estação porque não tive notícia prévia da hora do seu embarque.

A União publicou seu belo e forte discurso que repercutiu nas rodas entendedoras, de forma mais simpática.

Quando tiver uma folga, irei até aí para rever os confrades e participar do grato contato do seu espírito moderno.(3)

Meus respeitos à sua Exa. Senhora.

Aceite um abraço afetuoso do

José Américo de Almeida

 

 Tambaú, 24 de fevereiro de 1966

Caro Joaquim Inojosa:

Recebi sua carta e fiquei pensando. O apanhado do nosso encontro está muito bem lançado, mas me coloca numa posição que, definida por mim, me deixa de certo modo contrafeito São coisas que poderão ser expressas por outras pessoas, sem reivindicação de minha parte.

Gostaria assim que você eliminasse a segunda página o período que começa por Por isso considero... e o que começa por Jamais me deixei...

Agradeço-lhe, bem como ao nosso Ivan, a oferta do livro do Wilson Martins, muito útil para se formar um conceito do modernismo em São Paulo.

Desculpe a demora desta resposta. Cheguei ao Rio incapacitado até para escrever uma carta.

Faço votos pelo êxito do seu próximo livro que terá, como sempre, a marca de sua consciência de escritor.

Abraços do

José Américo de Almeida

 

 João Pessoa (Tambaú) 15 de nov. De 1966

Caro Joaquim Inojosa:

Ora, meu caro Inojosa, fiquei surpreendido em saber que Ivan, chegado agora, não recebeu minha carta em que juntara outra para você, por ignorar seu endereço.

Logo que saiu aqui seu artigo a respeito de minha candidatura à Academia, tive pressa em escrever-lhe agradecendo essa sua contribuição, das mais relevantes, para o efeito moral de minha vitória. Não ignora como sei medir o seu valor. Apreciei o seu trabalho não só por esse cunho de autoridade, como pela força da análise e oportunidade dos argumentos. (5)

Até abril ou maio. Estaremos sempre juntos.

Cordialmente,

José Américo

        (Joaquim Inojosa, José Américo de Almeida: algumas cartas, 1980)