O IDEAL ABOLICIONISTA
Compare-se com o Brasil atual da escravidão o ideal de Pátria que nós, Abolicionistas, sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regímen, a imigração européia traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul.
Essa é a justificação do movimento Abolicionista. Entre os que têm contribuído para ele e cedo ainda para distribuir menções honrosas, e o desejo de todos deve ser que o número dos operários da undécima hora seja tal que se torne impossível, mais tarde, fazer distinções pessoais. Os nossos adversários precisam, para combater a idéia nova, de encará-la em indivíduos, cujas qualidades nada têm que ver com o problema que eles discutem. Por isso mesmo, nós devemos combater em toda a parte tendo princípios, e não nomes, inscritos em nossa bandeira. Nenhum de nós pode aspirar à glória pessoal, porque não há glória no fim do século XIX em homens educados nas idéias e na cultura intelectual de uma época tão adiantada como a nossa, pedirem a emancipação de escravos. Se alguns dentre nós tiverem o poder de tocar a imaginação e o sentimento do povo de forma a despertá-lo da sua letargia, esses devem lembrar-se de que não subiram à posição notória que ocupam senão pela escada de simpatias da mocidade, dos operários, dos escravos mesmos, e que foram impelidos pela vergonha nacional, a destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores, sobre o fundo negro do seu próprio país mergulhado na escravidão. Por isso eles devem desejar que essa distinção cesse de sê-lo quanto antes. O que nos torna hoje salientes é tão-somente o luto da pátria: por mais talento, dedicação, entusiasmo e sacrifícios que os Abolicionistas estejam atualmente consumindo, o nosso mais ardente desejo deve ser que não fique sinal de tudo isso, e que a anistia do passado elimine até mesmo a recordação da luta em que estamos empenhados.
A anistia, o esquecimento da escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a garantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a base necessária para reformas que alteiam o terreno político em que esta existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver-se e crescer em meio inteiramente diverso.
Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram, como seus advogados, os maiores espíritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela; aceitem os moços, desde que entrarem na vida civil, o compromisso de não negociar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do Destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la. As posições entre nós desceram abaixo do nível do caráter; a maior utilidade que pode ter hoje o brasileiro, de valor intelectual e moral, é educar a opinião (feliz do que chega a poder guiá-la), dando um exemplo de indiferença diante de honras, distinções e títulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim os que se sentem com força, inteligência e honradez bastante para servir à pátria do modo mais útil, essa mesquinha vereda da ambição política; entreguem-se de corpo e alma à tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do livro, da associação, da palavra, da escola, os princípios que tornam as nações modernas fortes, felizes e respeitadas; espalhem as sementes novas da liberdade por todo o território coberto das sementes do dragão; e logo esse passado, a cujo esboroamento assistimos, abrirá espaço a uma ordem de coisas fundadas sobre uma concepção completamente diversa dos deveres, quanto à vida, à propriedade, à pessoa, à família, à honra, aos direitos dos seus semelhantes, do indivíduo para com a nação, quanto à liberdade individual, à civilização, à igual proteção a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade que lhe dá o interesse e participação - e de fato o entrega tacitamente à guarda de cada um - em todo esse patrimônio da nossa espécie.
Abolicionistas são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres do trabalho livre, os que sofrem a escravidão como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à nação toda, os que já sufocaram nesse ar mefítico, que escravos e senhores respiram livremente; os que não acreditam que o brasileiro, perdida a escravidão, se deite para morrer, como o romano do tempo dos Césares, porque perdera a liberdade.
Isso quer dizer que nós vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão a que a chama o seu lugar na América; mas, entre nós e os que se acham atravessados no seu caminho, quem há de vencer? É esse o próprio enigma do destino nacional do Brasil. A escravidão infiltrou-lhe o fanatismo nas veias, e, por isso, ele nada faz para arrancar a direção daquele destino às forças cegas e indiferentes que o estão, silenciosamente, encaminhando.
(O Abolicionismo, 1883.)
MASSANGANA
O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber... Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instintiva ou moral, definitiva... Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal. A terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... Nunca se me retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha vida. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuídos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa de morada, e de rendeiros, ligados ao proprietário pelo benefício da casa de barro que os agasalhava ou da pequena cultura que ele lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por trás, em uma ondulação do terreno, a capela sob a invocação de São Mateus. Pelo declive do pasto árvores isoladas abrigavam sob sua umbela impenetrável grupos de gado sonolento. Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água quase dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o açúcar para o Recife; ela alimentava perto da casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré.
Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira de ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados, majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de bois...
Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos antes dela nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a ideia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e querido de diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há espíritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que outros tivessem criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporto cativeiros contrários e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixada como herança. Foi na pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.
As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin escreveu esta variante do pensamento de Cristo sobre a infância: “A criança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar.” Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a simbólica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscências miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras tiragens da alma. Pela perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão causada. Assim eu via a Criação de Miguel Ângelo na Sistina e a de Rafael nas Loggie, e, apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do primeiro paraíso que fizeram passar diante dos meus olhos em um vestígio de antigo Mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha romana, mas o muezzin íntimo, o timbre que soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é o Millet inalterável que se gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno clichê do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa!
Meus moldes de ideias e de sentimentos datam quase todos dessa época. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as primeiras hastes da alma aparecem tão frescas como se tivessem sido calcadas nesta mesma manhã... O encanto que se encontra nesses eidola grosseiros e ingênuos da infância não vem senão de sentirmos que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada... Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião e a natureza, assim com os grandes fatos morais em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li A cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.
Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer senão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc demitis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrisson ou um John Brown: a saudade do escravo.
É que tanto a parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. Este pareceu-me, por contraste com o instinto mercenário da nossa época, sobrenatural à força de naturalidade humana, e no dia em que a escravidão foi abolida, senti distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível.
Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela. Também eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo. Tal aproximação entre situações tão desiguais perante a lei seria impossível nas novas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente um instrumento de colheita. Os engenhos do Norte eram pela maior parte pobres explorações industriais, existiam apenas para a conservação do estado do senhor, cuja importância e posição avaliava-se pelo número de seus escravos. Assim também encontrava-se ali, com uma aristocracia de maneiras que o tempo apagou, um pudor, um resguardo em questões de lucro, próprio das classes que não traficam.
[...]
A noite da morte de minha madrinha é a cortina preta que separa do resto de minha vida a cena de minha infância. Eu não imaginava nada, dormia no meu quarto com a minha velha ama, quando ladainhas entrecortadas de soluços me acordaram e me comunicaram o terror de toda a casa. No corredor, moradores, libertos, os escravos, ajoelhados, rezavam, choravam, lastimavam-se em gritos; era a consternação mais sincera que se pudesse ver, uma cena de naufrágio; todo esse pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou três gerações em torno daquele centro, não existia mais depois dela: seu último suspiro o tinha feito quebrar-se em pedaços. A mudança de senhor era o que havia mais terrível na escravidão, sobretudo se se devia passar do poder nominal de uma velha santa, que não era mais senão a enfermeira dos seus escravos, para as mãos de uma família até então estranha. E como para os escravos, para os rendeiros, os empregados, os pobres, toda a gens que ela sustentava, a que fazia a distribuição diária de rações, de socorros, de remédios... Eu também tinha que partir de Massangana, deixado por minha madrinha a outro herdeiro, seu sobrinho e vizinho; a mim ela deixava um outro dos seus engenhos, que estava de fogo morto, isto é, sem escravos para o trabalhar... Ainda hoje vejo chegar, quase no dia seguinte à morte, os carros de bois do novo proprietário... Era a minha deposição... Eu tinha oito anos. Meu pai pouco tempo depois me mandava buscar por um velho amigo, vindo do Rio de Janeiro. Distribuí entre a gente da casa tudo que possuía, meu cavalo, os animais que me tinham sido dados, os objetos do meu uso. “O menino está mais satisfeito, escrevia a meu pai o amigo que devia levar-me, depois que eu lhe disse que a sua ama o acompanharia”. O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam pertencer-me depois dela. Eu bem senti o contragolpe da sua esperança desenganada, no dia em que eles choravam, vendo-me partir espoliado, talvez o pensassem, da sua propriedade... Pela primeira vez sentiram eles, quem sabe, todo o amargo da sua condição e beberam-lhe a lia.
Mês e meio depois da morte de minha madrinha, eu deixava assim o meu paraíso perdido, mas pertencendo-lhe para sempre... Foi ali que eu cavei com as minhas pequenas mãos ignorantes esse poço da infância, insondável na sua pequenez, que refresca o deserto da vida e faz dele para sempre em certas horas um oásis sedutor. As partes adquiridas do meu ser, o que devia a este ou àquele, hão de dispersar-se em direções diferentes; o que, porém, recebi diretamente de Deus, o verdadeiro eu saído das suas mãos, este ficará preso ao canto de terra onde repousa aquela que me iniciou na vida. Foi graças a ela que o mundo me recebeu com um sorriso de tal doçura que todas as lágrimas imagináveis não mo fariam esquecer. Massangana ficou sendo a sede do meu oráculo íntimo: para impelir-me, para deter-me e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria sempre de lá. Mors omnia solvit... tudo, exceto o amor, que ela liga definitivamente.
Tornei a visitar doze anos depois a capelinha de São Mateus onde minha madrinha, Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede ao lado do altar, e pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava da opulenta fábrica, como se chamava o quadro da escravatura... Embaixo, na planície, brilhavam como outrora as manchas verdes dos grandes canaviais, mas a usina agora fumegava e assobiava com um vapor agudo, anunciando uma vida nova. A almanjarra desaparecera no passado. O trabalho livre tinha tomado o lugar em grande parte do trabalho escravo. O engenho apresentava do lado do “porto” o aspecto de uma colônia; da casa velha não ficara vestígio... O sacrifício dos pobres negros, que haviam incorporado as suas vidas ao futuro daquela propriedade, não existia mais talvez senão na minha lembrança...
Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capela aqueles que eles haviam amado e livremente servido.
Sozinho ali, invoquei todas as minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas agrestes, que entretêm a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes dilatava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava ao lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores... seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação para com eles, que lhe pertenciam... Deus conservara ali o coração do escravo, como o do animal fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação. Esse perdão espontâneo da dívida do senhor pelos escravos figurou-se-me a anistia para os países que cresceram pela escravidão, o meio de escaparem a um dos piores taliões da história... Oh! Os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor! Eram essas as idéias que me vinham entre aqueles túmulos, para mim, todos eles, sagrados, e então ali mesmo, aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade...
(Minha formação, 1900.)