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Discurso de posse

Patrimônios do Brasil: a Academia Brasileira de Letras e o Estado Democrático de Direito

 

I

“Na casa de meu avô, tudo parecia impregnado de eternidade”.

Manuel Bandeira. Evocação do Recife. 1925.

Foi este sentimento - o de eternidade - que tive ao entrar aqui, nesta Casa, pela primeira vez.

Faz mais de cinquenta anos. Vim com meu avô: Horácio Saldanha. Pernambucano como Manuel Bandeira. Intelectual e empresário.

Amigo de Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Olegário Mariano, Gilberto Freyre, pernambucanos. E tantos outros.

Viemos para a solenidade de posse de seu amigo, nordestino também, sergipano: Gilberto Amado.

Tudo então foi alumbramento. Alumbramento de eternidades feito.

Retenho ainda a foto dos acadêmicos, alguns em pé, outros sentados no sofá, em volta de Gilberto Amado.

No meio à multidão de convidados, eu estava, por coincidência, ao lado do fotógrafo.

Ali.

Ele tirou a fotografia.

Eu a guardei dentro de mim.

E a revelo agora.

Ficou-me eterna.

Fotografou a eternidade desta Casa.

E, ao mesmo tempo,

meu afeto por meu avô.

e sua presença intelectual em mim.

Assisti, então, a um ritual igual a este.

Estamos em um ritual, bem sublinhou Claude Lévi-Strauss, ao experimentar no alfaiate o fardão para sua posse na Academia de Letras da França.

Ritual, que, ao se repetir, atualiza-se e perpetua-se no tempo.

Faz-se instituição.

Esta cerimônia, este intenso agora, não é, pois, evento isolado.

Nem celebração individual.

Não é, mesmo sendo, um eterno hoje.

Faz parte de um conjunto de ritos entrelaçados.

Outros por tecer.

Participar deste ritual - da apresentação da candidatura até o vestir deste fardão e pronunciar este discurso de posse - me reencontra com a eternidade desta casa.

 

 

II

Mas em que instituição estou chegando?

Em um patrimônio cultural.

A Constituição de 1988 ampliou o conceito de patrimônio.

Incorporou a proposta da Comissão Afonso Arinos.

Da qual, com honra, participei,

Liderada, na cultura, pelo vigor inovador e perspectivas infindáveis de Cândido Mendes de Almeida.

E pelas antecipações de Eduardo Portela.

Acrescentamos, ao tradicional patrimônio material, de pedra e cal, o patrimônio imaterial, dos saberes e fazeres.

Mais tarde, o Presidente Fernando Henrique avançou. Glauco Campello, então presidente do Iphan, regulamentou o registro dos patrimônios imateriais.

Não podia ser diferente.

O vetor básico da Constituição de 1988 foi a ampliação da cidadania. O acesso de todos os brasileiros a todos os direitos e deveres.

Foi a cidadania plena.

A Constituição de 1988 foi, é, e deve ser o comando da ampliação do Brasil.

A ABL é patrimônio material. Este prédio é tombado.

É imaterial também pelos saberes e fazeres, seus rituais, personagens e criações de seus acadêmicos.

A sensibilidade e impaciência do unívoco pernambucano Marcos Villaça, com o decisivo apoio do Presidente José Sarney, deu, antecipadamente, sopro e vida ao conceito de patrimônio imaterial.

E o iniciou como prática do Iphan.

O momento simbólico foi o tombamento do Terreiro de Casa Branca, em Salvador. Inexistia ainda o registro.

Escolhido como terreiro-basílica, terreiro-catedral, como terreiro patrimônio do Candomblé.

O patrimônio cultural incluiu, de vez, o patrimônio popular.

Mas Pernambuco não parou por aí.

A inovadora lei Raul Henry, do governo Jarbas Vasconcelos, ampliou mais. Criou o patrimônio vivo.

O que é patrimônio vivo?

Simples. Os próprios artesãos, grupos detentores do saber e do fazer são considerados patrimônios também.

São registrados, por exemplo, como patrimônios vivos de Pernambuco: Jota Borges, Lia de Itamaracá, O Homem da Meia Noite, Maracatu Leão Coroado. Entre outros.

A ampliação constitucional do patrimônio cultural elevou a reponsabilidade da Academia Brasileira de Letras na defesa e difusão de nossa brasilidade.

O que tanto faz, e tão bem, com sabedoria transatlântica, Nélida Piñon.

Aloísio Magalhães, mais um pernambucano, - aviso, governador Paulo Câmara, serão muitos - dizia que a Biblioteca Nacional, o Museu de Belas Artes, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Museu Nacional, são instituições, agentes, vozes, através das quais participamos do mundo.

A Academia de Letras nos comunica com o mundo.

Ela, somos nós no diálogo global.

A globalização não é processo de mão única.

Se for, é colonialismo cultural.

Mimetismos externos não nos fazem eternos.

Ao contrário, nos fazem campos férteis para a eternidade alheia.

O que nos faz eternos é nosso “frever”, cantaria Alceu Valença pelas ladeiras de Olinda. Teus coqueirais. O teu sol. O teu mar.

O que nos faz eternos são nossos pertencimentos,

sínteses, sincretismos, mestiçagens, diversidades

raciais, sexuais, religiosas, musicais, ideológicas, literárias ou quaisquer outras.

A cultura brasileira não é eliminatória. É somatória, dizia Aloísio Magalhães.

O que não nos evita de grandes irresponsabilidades. Todo país tem seu Museu Nacional.

Nós, não mais.

Temos cinzas.

Estas cinzas nos silenciaram. Somos menores no diálogo cultural global.

É preciso transformá-las outra vez em luz, caráter e identidade.

Para voltarmos à mesa das responsabilidades.

Nosso futuro não pode ser um museu queimado e esquecido.

Em inglês, patrimônio se traduz por landmark. Mark of the land. Marco da terra.

O marco informa o proprietário da terra, da cultura. Marco esculpido em pedra, à beira-mar, nos ventos ensolarados de Porto Seguro, Bahia.

Orienta os viajantes que passam.

Onde estamos? Em que direção caminhar?

A ABL é landmark para cultuar a língua e a literatura.

Marco que nos identifica no presente e nos sonha no futuro.

Mas sozinhos não bastam.

Estes ritos, esta instituição, o patrimônio cultural de uma nação só nos engradece quando envolto em outro patrimônio:

O Estado democrático de direito.

O patrimônio maior que nos faz mundo.

A democracia viabiliza a linguagem patrimonial.

Eis aí, senhoras e senhores, o roteiro deste discurso.

Inclui a ABL na ampliação de patrimônio cultural, determinado pela constituição de 1988.

Terminarei incluindo o estado democrático de direito, nosso patrimônio político maior.

Estão entrelaçados.

Mas antes, vou cumprir o ritual.

Vou homenagear meus antecessores

Mas não se preocupem.

Não vou repetir o grande Evandro Lins e Silva.

Tendo chegado atrasado à conferência de um amigo, antes mesmo de sentar, perguntou aflito, ao ouvinte do lado:

“Ele já acabou? Já acabou?”

O ouvinte, com a paz dos resignados, respondeu: “Já. Já. Há muito tempo. Mas ele ainda não se deu conta”.

Não se preocupem.

Sobretudo, diante da celebração em seguida que minha mulher Vivianne e a Academia prepararam com carinho para vocês todos.

 

III

Celso Lafer gosta de alertar: triunfar sem perigo é vencer sem glória.

Candidatar-se à Academia é sempre perigo.

Porém, a expressiva votação que me concederam, muito honrou:

a mim e a minha mulher,

a meus filhos e a meus netos,

a meus irmãos e aos amigos.

Provocou em mim a alegria do bom espanto e a imediata assunção da grande responsabilidade.
 

Homenageio Rosiska Darcy de Oliveira, minha amiga de sempre, e Miguel, seu esposo.

Existe um ditado que diz: “Estar certo antes do tempo é errado”.

Rosiksa nunca nele acreditou.

Sempre correu o risco de se antecipar ao tempo.

Sempre foi antes.

Às vezes, muito arriscou. Mesmo saídos, levaram o Brasil dentro deles.

Fizeram de seus ideários, vida vivida. Um privilégio.

Na defesa das liberdades durante um Brasil silenciado.

Na defesa das múltiplas diversidades de que somos feitos.

Rosiska abriu caminhos e se fez líder de geração.

Honra ter sua voz ativa me recebendo neste ritual.

Homenageio também meus antecessores da cadeira número três.

Artur de Oliveira, patrono, cronista, professor e poeta. Um introdutor do Parnasianismo.

Filinto de Almeida, com sua esposa Júlia Lopes de Almeida. Muitos acreditam ela maior do que ele. A ABL não aceitava mulheres. Escreveram juntos sob mesmo pseudônimo.

Homenageio Aníbal Freyre. Jornalista, professor e sergipano. Ministro da Fazenda. Consultor geral da República. Ministro do Supremo.

Foi do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, casa do melhor pensamento do Brasil. Sob o bom comando de Arno Wehling.

Homenageio, enfim, Herberto Sales. Jornalista, contista, memorialista, romancista e baiano. Cascalho, seu romance foi líder da literatura regionalista.

Mas me concentro em:

Roberto Simonsen e Carlos Heitor Cony.

Simonsen, na década de 40, procurou responder à pergunta: quais os melhores rumos para a economia do Brasil?

Nada mais atual.

Cony, na década de 60, procurou responder: quais os melhores rumos para a liberdade de expressão no Brasil?

Nada mais atual.

Estamos em esquina decisiva da história.

Quais seriam nossas respostas hoje para estes mesmos problemas?

O que eles nos ajudam hoje?

 

IV

No empresário Roberto Simonsen o horizonte não foram suas empresas, funcionários ou o mercado.

Foi mais: o desenvolvimento econômico do Brasil.

Como empresário, não acreditava, como alguns hoje, que o custo Brasil fossem apenas os outros: o governo, as leis ou os trabalhadores.

Sentia-se também responsável pelo custo e risco Brasil. Não lavou as mãos.

Homem do pensar e do fazer. Uniu ideal e práxis.

Líder, ajudou a criar as Federações de Indústria de São Paulo, e o Sesi e Senai para formação dos técnicos que não tínhamos.

Intelectual público e professor, ajudou a criar em 1928, com a família Mesquita, a atual Escola Livre de Sociologia e Política, atual FESP.

Precisamos, dizia “combater a importação de modismos, o mero transplante de modelos alienígenas”.

Escreve um clássico: “História Econômica do Brasil” com o material de suas aulas.

É o primeiro economista a entrar nesta Academia.

Abriu portas para outros, grandes: Roberto Campos, Celso Furtado e Edmar Bacha.

Político, disputou o Senado por São Paulo, vencendo a Candido Portinari, do Partido Comunista.

Foi constituinte em 1934.

Aliás, meu outro avô, o pernambucano Joaquim de Arruda Falcão, de quem me orgulho, também foi constituinte em 34.

Nesta década, além de Simonsen e Falcão, Clodomir Cardoso, maranhense, governador Flavio Dino, avô de Merval Pereira, foi senador também.

Será que os três se encontraram ali no Palácio Tiradentes?

Minha amizade com Merval, líder de geração, pela coragem da palavra, nasceu antes de nós mesmos.

Através de nossos pais e avós.

Nascemos destinadamente amigos.

Simonsen polemizou.

Depois da Segunda Grande Guerra, os países, tiveram que reorganizar suas economias.

O Brasil também.

A pedido de Getulio Vargas, em 1944, Simonsen apresenta proposta com novos rumos para nossa economia.

Deveríamos ser menos agrário e exportador de matérias primas e mais industrial.

Nascia a industrialização como projeto nacional.

Defendeu o planejamento estatal para alocar tecnicamente os insuficientes recursos nacionais.

Propôs o que chamaríamos hoje de nacional-desenvolvimentismo. Ou neodesenvolvimentismo. Ou produtivismo.

Em março de 1945, Eugenio Gudin propõe outros rumos para o desenvolvimento.

O debate se instala.

Gudin, influenciado pelos teóricos americanos e ingleses, acreditava que o livre mercado seria alocador mais racional dos recursos. E não o planejamento estatal.

Propunha o Brasil abrir-se a capitais estrangeiros privados.

Um debate, caso gerador, diria Paulo Freire, até hoje.

De um lado, o que hoje seria considerado ortodoxia monetária, além de privatizações, estado mínimo, o estado regulador, a abertura dos mercados ao capital estrangeiro.

De outro, o planejamento, o estado empresário, a indústria incentivada, os investimentos públicos, um nacionalismo estratégico e um estado racional.

Quem estava certo?

Álvaro Lins, grande crítico literário pernambucano, dizia: crítica se faz com substantivos e não com adjetivos.

Explicar em vez de qualificar.

Não se compreende esta querela se ficarmos restritos à solidão da intepretação econômica.

No fundo, nem Simonsen, nem Gudin, dispensavam a presença do estado na economia.

Indispensável, para ambos, era estar no e com o Estado.

Seja para implementar o planejamento estatal, seja para implementar o mercado competitivo.

Estiveram. Várias vezes.

O que os diferenciava era a combinação entre poderes e funções do estado de que necessitavam.

A ambos a história deu oportunidade de vencer.

O desenvolvimentismo foi, por décadas, apoiado, subsidiado, financiado, planejado pelo estado.

Transformou-se em Planos de Metas e em Ministério do Planejamento.

Mas, não produziu empresas estatais com produtividade, competitividade ou inovação necessárias.

O monetarismo, por sua vez, alerta André Lara Rezende, também não teve destino melhor.

“No Brasil, desde os anos 50, com Gudin e seus discípulos, a tentativa de estabilizar a inflação crônica através da contração de crédito e da liquidez, conforme recomendava a ortodoxia baseada na Teoria Quantitativa da Moeda, provocou crises bancárias, desemprego e recessão, sem conseguir derrotar a inflação. Foi também muito provavelmente fator importante para a derrota do liberalismo ilustrado”.

Raymundo Faoro, diria diferentemente.

A origem deste mútuo insucesso é a permanência do patrimonialismo e corporativismo, excludentes e anticompetitivos.

Tão permanente que vem de longe, dizia Faoro: “Não adianta trocar de capitão-mor”.

E completava

“No Brasil criam-se instituições e depois inventa-se o povo”.

O amálgama desta aliança política que pretende sustentar políticas econômicas mesmo diferentes, não raramente, tem sido a corrupção. Como parceria público-privada.

Que chega até hoje com o Mensalão e Lava Jato.

Mas agora, na hora máxima, houve o necessário destemor

pelo livre convencimento dos jovens juízes,

pela autonomia dos procuradores e policiais,

pelo devido processo legal exigido pelos advogados

pela liberdade de pesquisa de professores e

pela liberdade de imprensa.

E no futuro?

Evaldo Cabral de Melo, recentemente, nos lembrou a noção de grandeza para Charles de Gaulle, de la grandeur.

A grandeza nacional seria a capacidade de sustentar uma grande querela.

Sustentá-la e não necessariamente vencê-la.

Grandeza como querela entre ideais, propostas, mobilizações que, ao apontar, assegura o futuro.

Roberto Simonsen sustentou grande querela que se renova até hoje.

Foi empresário além de sua empresa.

Foi grande.

 

V

Sigo o ritual . Chego a Carlos Heitor Cony.

Escritor de todas imaginações e jornalista de todos ofícios.

A ambos se aplica o que disse Otto Maria Carpeaux: “Cony sabia escrever o que queria dizer”.

Foi múltiplo escritor.

De romances, biografias, ensaios, crônicas, artigos, contos.

Livros infantis e policiais.

Roteiros de cinema e de televisão.

Sem falar em prefácios, críticas, apresentações.

Biografias, ou quase biografias, de Juscelino, Vargas e Wolf Klabin.

Publicou mais de 40 livros.

Foi também múltiplo jornalista.

Ocupou quase todos os ofícios possíveis dentro de um jornal:

Repórter, editorialista, diretor, editor, articulista, tudo.

Centenas, milhares de artigos publicados.

E se não bastasse, Cony indefine as fronteiras do escrever.

Desconhece padrões. Mistura, impaciente, as formas tradicionais de jornalismo e literatura.

Só não se aventura, que eu saiba, na poesia.

No resto, ventania permanente.

Tantos Cony!

Capazes de convergir e divergir entre si.

De si, com o outro, concordar ou discordar.

Quando um aparece, o outro parte.

Reparte-se

Faz do ontem, o amanhã.

Brinca, mistura e fragmenta o tempo.

Faz da solidão, a convivência.

De suas dúvidas, as certezas.

De suas fraquezas, a coragem.

De sua fé religiosa, o agnóstico.

Do amante entusiasmado, o triste observador.

Da alienação partidária, a militância política.

Faz de sua infância, o afetuoso romance “Quase Memória”, sobre seu pai.

Foi seminarista.

Seu livro “Informação ao Crucificado” é a história de seu interrompido auto-de-fé.

Muito bem sublinhado por Arnaldo Niskier, seu colega de Manchete que o recebeu aqui na Academia.

Dificilmente se distingue o Cony vivido, do Cony imaginante.

Leitura da vida, leitura do mundo, diria Domício Proença.

Cony foi a multidão de si mesmo. Transbordou-se.

Era capaz de escrever um romance em apenas 9 dias.

Foi um antiflaubert.

Seria vã a tentativa de entender esta multidão.

Seu texto flui, coloquial, corrente, cristalino, sem pedras no caminho, nem profundezas incompreensíveis.

Mesmo quando na contramão.

Tal qual a truta do magistral quinteto de Franz Schubert, que sobe rio acima, para na cabeceira desovar, reproduzir, criar, escrever.

A Truta, que meu pai Corintho Falcão ensinou-me a amar. E através dela, a música clássica. Obrigado meu pai.

Alberto da Costa e Silva agora me sugere a Missa em Si Menor de Bach.

Mas a dúvida permanece. Em que Cony mergulhar?

Sempre que selecionava um texto, seu próximo artigo, seu próximo livro, me hesitava.

Para compreendê-lo, é necessário atentar para o que dizia:

“Gosto de repetir a máxima que aprendi na lógica de Aristóteles:

Afirmar um, não significa negar outro. Negar um, não significa afirmar outro “.

Diante de um leitor que pergunta se ele é de direta ou de esquerda, responde:

“Convencionou-se rotular as coisas e seres (...). Se fôssemos gasosos ou líquidos não teríamos necessidade de ser da direita ou da esquerda”.

Mesmo antes de Bauman, Cony já desejava ser “líquido”.  

Cony é fluxo. Às vezes, refluxo.

O líquido cotidiano foi o tema de sua página dois na Folha.

Escrevi também na página dois da Folha. Antes.

No final dos anos setenta, o Brasil ia mudar. A redemocratização ia avançar. Os intelectuais foram ativamente para a mídia.

Aceitei o convite de Otavio Frias Filho, a quem homenageio, para escrever justamente na Página 2. Mais de 400 artigos.

Entrei, sem mais sair, na magia da comunicação de massa, promontório de onde interpreto e compreendo o Brasil.

Continuado na televisão pelo honroso convite de Dr. Roberto Marinho, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto para dirigir a Fundação Roberto Marinho. Sob a prudência de Pedro Carvalho.

Quando me perguntam quais livros escrevi, avanço logo: Telecurso 2000, Globo Ecologia e Canal Futura, que com colegas da Fundação, criamos. Isto é, escrevemos.

Houve, porém, um momento em que Cony foi grande parte do Brasil.

Em 1964, quando a força das armas substituiu a democracia.

Cony teve medo, mas protestou.

“Sem medo e com coerência, continuo afirmando: isto não é uma revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os disfarces legalistas que outrora mascaravam os pronunciamentos militares. É um coice. É a força bruta”.

Sua coluna no Correio da Manhã foi a oposição libertária. Foi a reação ao medo.

Transformou a maneira dos cariocas se cumprimentarem.

Como lembra Veríssimo, a saudação era:

“Já leu seu Cony hoje?”

Mas, de onde surge o protesto, o grito, de Cony?

Não lhe havia militância prévia.

Tenho possível hipótese.

Até os cinco anos de idade, Cony não falava. Era mudo.

Seu pai o levou a todos médicos. Nada.

Era incapaz de acordar suas manhãs, diria Antônio Carlos Secchin.

Um dia, porém, seu pai o leva para ver a chegada do Zepelim, em meio a uma multidão.

Quando aquele imenso monstro se aproxima, nunca visto, foi o medo chegando pelo céu.

Neste momento Cony conseguiu se expressar. Deu um grito. Começou a falar.

De repente, do medo, não mais do que do medo, se fez o grito.

Talvez alguns considerem esta analogia pseudopsicológica.

Pode ser.

Mas vejam o que encontrei. Diz Cony:

“Estudei toda a vida, construí um estilo de existência, estou escrevendo uma obra pela qual pretendo ser julgado um dia – e não vou sacrificar isto tudo porque um marechal desarquivou seu fuzil modelo 1918 e vem falar de patriotismo de caserna (...).

O que posso fazer, faço:

Berro contra isso”

Ou melhor, escreveu.

 

VI

Com esta menção sobre a voz que venceu o medo, volto ao meu tema inicial: a ampliação do patrimônio cultural.

Comecei propondo a ABL como patrimônio cultural.

Termino propondo o estado democrático de direito como patrimônio político.

Ambos dentro do comando de nossa constituição: ampliar a cidadania plena.

Cultura é a capacidade de cada um escolher seu melhor futuro.

Matéria-prima da democracia, tão importante quanto segurança, emprego, saúde, educação e justiça.

Nenhuma economia funciona sem eficiente infraestrutura: rodovias, saneamento, transportes, energia e tanto mais.

Assim também a democracia. Não funciona sem adequada infraestrutura para a livre circulação de direitos e deveres culturais.

Direito é energia.

Move igualdades e liberdades. Não pode faltar.

Como energia, focalizo o direito de ler, de leitura e a literatura.

Por todos os meios: livro, jornal, laptop, celular, internet, rádio, TV, exposições de arte. Analógicos, dialógicos, presenciais.

Ler vendo, ler lendo, ler ouvindo, ler acessando.

Sou dos que acreditam que mesmo em era visual, nunca se leu tanto no mundo. Apenas, lê-se diferentemente.

Sejam grandes romances, instalações, twitter, facebook ou whatsapp.

Vencemos o analfabetismo que nos impedia de tecnicamente ler. Não devemos nos entregar à outra escuridão.

Aquela onde alguém escolhe por nós o que nós mesmos podemos escolher.

Foco nestes direitos como infraestrutura indispensável ao patrimônio cultural por dois motivos.

Primeiro porque, quando se faz a defesa da liberdade de expressão, em geral, enfatiza-se mais o emissor - o autor - do que o receptor, o leitor.

O direito de expressão é direito relacional. Entre a liberdade do emissor e a escolha do receptor.

Um energiza e dá vida ao outro.

Mas, Austregésilo de Athayde, de Caruaru, nordestinado, diria o pernambucano Marcos Accioly, cimento que une esta instituição já com 120 anos, dizia:

“O direito não é do jornalista, é do povo”.

O segundo motivo porque enfatizo o direito de ler e ver e acessar é porque vivemos, no Brasil e no mundo, momentos de patrulhamento cultural.

Onde instituições, comunidades ou grupos sociais, sob o manto da legalidade, buscam terceirizar suas responsabilidades.

E transferi-las para o governo. Para a Escola. Para a Justiça. Que podem ficar tentados a aceitar.

Um patrulhamento que, inclusive, se fez tecnológico com os algoritmos e as bolhas que nos confinam em nós mesmos. E nos desconfiam em nós mesmos.

Quase sempre, usam ou ideologias políticas ou motivos argumentáveis: proibir as mentiras das fake news.

Proibir crianças e adolescentes de lerem livros que consideram inadequados ou perigosos.

Ou assistir exposições de arte mais radicais.

Lembro da juíza de família Andrea Pachá dizendo-me. “Não devem os pais buscar no Judiciário as decisões que por dever lhes cabem. Nem deve o Judiciário aceitá-las”.

Lembro também o jurista Diego Werneck que outro dia me perguntava:

Será que estes pais e autoridades não querem que seus filhos possam ser melhores que eles?

Sejam limitados a ler apenas o que eles já leram?

Sejam apenas iguais a eles?

A ver o que apenas viram?

Será que os jovens têm de gostar apenas do que os mais velhos gostam?

E se não tivéssemos lido os livros que nossos pais foram proibidos de ler?

Ou de termos vistos o sexo que tapavam?

Há sempre uma metamensagem em cada comunicação.

A mensagem do patrulhamento é a educação como prática do egoísmo geracional.

Popper dizia que quando você encontrar uma descoberta científica, diga logo: É falsa! É falsa!

Não devemos ter medo nem mesmo da ciência eventualmente verdadeira.

Não avança ou acumula a verdade.

O medo como arma educacional só produz a efêmera paz de ser retrógrado.

Captura nossa capacidade de raciocinar.

Que nos faz humanos.

A democracia só se fortalece na prática do livre convencimento.

Existe, sim, riscos de curto prazo. Que, porém, não se resolvem com patrulhamentos.

Mas pelo diálogo, explicação, orientação, respeito ao interlocutor, e por mais e mais e mais plurais leituras.

Felizmente, na proporção em que ocorrem ameaças de escrever biografias, de interpretar e reinterpretar a história, da liberdade de ensinar e pesquisar, de acesso a exposições de arte, a sociedade tem desenvolvido defesa jurídica ativa.

Onde não nos tem faltado o Poder Judiciário.

Chamado a decidir sobre estas liberdades que integram o patrimônio da cultura e da democracia, o Supremo tem sido Porto Seguro.

Por isso, a defesa e a ampliação do patrimônio cultural se confundem com a necessidade de um Poder Judiciário:

politicamente independente,

administrativamente eficiente,

e economicamente igualitário.

A proibição de ler às vezes se traduz na ilusão da intepretação unívoca do texto.

Acreditar que a interpretação literária ou mesmo jurídica é unívoca é autoritarismo intelectual.

Talvez, a mais sutil forma de autoritarismo. Autoritarismo imaterial.

Aquele que é, sem parecer ser.

Plutarco: “A pior forma de injustiça é ser injusto, mas parecer justo”.

A OAB, com vigor, sempre combateu e esteve atenta a este manto diáfano.

Sem novas e diferentes leituras da atual crise global da democracia, como sempre lembra o Presidente Fernando Henrique, colocamos em risco o processo civilizatório.

É, pois, na homenagem a nossos patrimônios,

à Academia Brasileira de Letras e às vozes acadêmicas de Roberto Simonsen e Carlos Heitor Cony, que falaram pelo Brasil,

e ao Estado Democrático de Direito e o Poder Judiciário que assegura a energia que a cultura precisa,

que encerro e lhes agradeço. 

 

23/11/2018.