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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Fernando Magalhães

Não, Sr. João Neves, não sereis uma sombra entre dois clarões.

Nem a Física permitiria que o fôsseis, nem a Justiça deixaria de sagrar, na eloqüência lúcida e vencedora do tribuno dominador, o novo clarão ofuscante, a manter, na Cadeira em que vos sentais hoje, a perpetuidade das fulgurações.

Cada clarão ilumina uma época. Álvares de Azevedo nasceu com a Nação, e morreu ao iniciar-se o decênio fecundo e exuberante, em que a paz começou a derramar os seus benefícios, a sabedoria a ensaiar os seus surtos, a liberdade a afirmar a sua realização, o cativeiro a vencer o seu tráfico, a guerra a cantar as suas glórias, e, nos mares e nos trilhos, o gênio arrebatado a marchar para a conquista das distâncias.

Coelho Neto conheceu o Brasil alegre e tranqüilo. Por esse tempo, cansado de tanta doçura, que a autoridade desperdiçava renunciante e magnânima, o País sacudiu-se em conjurações convulsivas e sangrentas. Os últimos restos de polimento cultural do Império humilde dispersavam-se ao sopro das primeiras ortodoxias dissolventes. O materialismo aquartelado acamaradou-se com a boêmia e com a livroxada, pela irreverência galhofeira e pela doutrina jactanciosa. De um lado o romantismo etílico, do outro a demagogia conspirante, fermentavam as revoluções soltas. O romantismo anestesiava, a demagogia acutilava. Tinha de ser indolor o traumatismo republicano, que Coelho Neto ajudou a preparar.

A hora que passa, mesmo sem o nebuloso conceito goethiano, e que a vossa visão de experimentado homem público tem sabido decifrar, é a fase eruptiva e torrencial dos fenômenos despenhados pela turbulência e pela vertigem. Essa hora não se caracteriza pela espiritualidade. O que há, é distonia totalitária, a que nada escapa. Nem a Arte, nem a Ciência, nem a Literatura resguardam o mundo da contaminação sociocrática onde as iniciativas caminham para as subversões, os heroísmos decorrem das catástrofes, as coerências capitulam nas tiranias, os estadistas derivam do messianismo. Hora do convencionalismo absorvente, lucrativo, que ressuscita os velhos moldes do estadismo concentrado, corrilheiro, sob o disfarce do benefício coletivo, imposto como suplício, como ruína, como degradação, como extermínio à unidade humana depreciada e inútil, morrendo de covardia e matando por desvario.

Ambiente social de esfacelo. É a alucinação. O pensamento não tem ritmo, não tem forma, não tem exatidão. Por isso, não terá eternidade. Alastra-se o culto do monstruoso, cria-se o amor ao sórdido. Espavorida, a imaginação deserta. Falta espírito à grande tarefa humana. A Arquitetura, promíscua e monótona. A empilha de homens e coisas. A Poesia tange liras de cordas rotas, ufana de vulgaridade, soberba na confusão. A plástica é patológica: mora nos museus de anatomia. As linhas não têm horizonte, nem proporção, e o colorido prefere os tons vivos e berrantes, que já uniformizam os códigos partidários. E até a palavra, mendicante, desarticulada, medrosa de sanções rudes, perdeu a espontaneidade e a bravura, submissa às folhas datilografadas e às ordens superiores.

Dos três que integram a história da Cadeira que conquistastes, Coelho Neto é o espectador da transição. Vida mais longa do que a que tendes, somada à que teve o poeta primaveril. Afortunado quem privou com o vosso antecessor, o mais idealista, o mais incansável, o mais animoso dos homens de Letras. Da sua obra, fizestes, Sr. João Neves, estudo modelar de crítica e de apreço. Assim, terçando motivo rigorosamente literário, vós – o expoente – provais quanto merecem e têm direito, as individualidades da vossa esmerada categoria, ao convívio acadêmico, selecionador e acertado no que pese ao canibalismo dos que investem, preocupados e renitentes contra a nossa prosperidade.

Coelho Neto viveu entre a sua sensibilidade e a sua fantasia, sôfrego, imaginativo, angustiado, ansioso, suportando a maldade e a desilusão como transes expiatórios do seu aperfeiçoamento. A sensibilidade veio-lhe do berço, e mesmo o derradeiro sofrimento, morrediço, enevoado e lento, jamais apagou do seu olhar resignado a recordação e a solicitude. Na sua casa simples, perfumada de evocações, o amor à faina não desmerecia nem diante das grandes dores. A sua mesa de trabalho, de onde a ponta de sua pena abençoada tirou, por longos anos, a fartura de sua gente, foi ninho de glória e pouso de morte. Dele abeirou-se quotidianamente para pensar; a ela se chegou duas vezes para chorar; e, por fim, nela dormiu as primeiras horas da bem-aventurança.

Não consegue compreender, para amainar, as paixões e as lutas contemporâneas, quem não acumula dentro de si um tesouro de ternura. Por conta desta provisão de sentimentos, às vezes pareciam adversos o estilista e o homem. Revendo a mocidade do escritor, e colhendo em A Conquista os estouvados companheiros de juventude, ninguém encontra nele o Coelho Neto metódico, equilibrado, vivendo dentro da ordem dos seus livros, seus papéis e seus hábitos. A vida era-lhe uma arrumação catalogada, tal como as suas estantes enfileirando livros e suas gavetas classificando objetos. A grande biblioteca obedecia ao seu gesto certeiro. Dirigia as suas finanças, movimentava as suas edições, organizava a sua tarefa. Ao mesmo tempo provia e previa. Naquele recanto, aberto aos amigos, de onde não desapareciam os ausentes, vivos, embora imóveis, entre flores nunca emurchecidas, passou grande parte de uma existência útil, em que a energia de um homem brando e pobre cultivou um lar feliz, agasalhou uma prole numerosa, compôs uma obra imperecível, iluminou uma geração desamparada. Valho-me de sua lembrança, onde não percebo uma só névoa, para reviver aquela bondade assustadiça, interrogando atormentada e acolhendo reconhecida, na fidalguia de sua conversação encantadora.

Ele nunca faltou. Viveu cronometricamente para o dever e para o coração. Matinal, era companheiro das madrugadas claras.

A manhã sonolenta entrava-lhe pela janela, e via-o magriço, encurvado, desenhando rapidamente o talhe impecável das letras, enchendo tiras sem hesitação nem arrependimento, compondo a página de romance, o artigo de jornal, o sumário da lição. Na disciplina está o segredo da sua fertilidade. Habituou o cérebro a pensar modelarmente, e modelarmente habituou a mão a escrever. Casavam-se o apuro da idéia e o da escrita. Inteligência, criação, caráter, denunciavam-se nos rascunhos nítidos, amontoados em torno do autor de o Rei Negro.

Esse o seu melhor romance. Tem na precisão e na medida toda a alma do artista, expressivo no verbalismo, irrepreensível no vernáculo, pródigo na terminologia legítima. O vocábulo, restaurado e desentranhado ganhou em Coelho Neto a verdadeira acepção no sentido e na sonoridade, com o feitio clássico e a elegância gramatical, velhos ornamentos que tanto constrangem os efêmeros inovadores das originalidades medíocres. Tal o poder ficcionário de Coelho Neto, que mesmo o romancista fantasioso vence o narrador das crônicas do seu bando turbulento, embora a cidade, que o fizera deixar a província melancólica, lhe desenvolvesse a arte de crítica palpitante, com que pôde fixar o cenário das agitações e das propagandas, tanto do gosto extravagante da vadiagem letrada da época.

Extensivo no romance, sintético nos contos em que foi mestre, Coelho Neto divulgou as dores humanas para consolá-las. No seu naturalismo comedido, a realidade não o afastou da compostura e do respeito, assegurando-lhe o senso do interesse moral das personagens, inevitavelmente ressurtas de sua ideação surpreendente.

Foi além de uma centena de volumes o seu esforço ciclópico. Nem um só inferior. Sempre muito junto da perfeição, pela pompa do estilo e pela heráldica da linguagem. Estes atributos acresciam-lhe a oratória exortante e animadora, na sua predicação deslumbrante de patriotismo e de filantropia. Rabiscou, menino, os primeiros ensaios. Velho, dilacerado, triste, escreveu as derradeiras maravilhas, narrando a história lacrimosa de sua grande mágoa, naquela agonia em que pai e mãe, unidos na amargura, esperavam encontrar o filho, arrebatado no esplendor da mocidade, como se fosse possível “distinguir no fundo do oceano a sombra que, um dia, deslizou sobre a superfície das águas mansas”.

O tempo, a fama, a consagração glorificaram-lhe o nome.

Quando um homem sai do retraimento para a popularidade, não deve esquecer a lição da primitiva reserva. Assim sentiu Coelho Neto, na noite de sua apoteose, ao lhe conferirem o principado da prosa brasileira. Assim se reconheceu, quando foi de plenipotenciário especial ao Uruguai. Constrangiam-lhe as ovações, apesar dos triunfos que a tribuna pública e a parlamentar lhe trouxeram. Mas as honrarias pesavam-lhe. Ele era o que mais podia ser, ele era ele próprio, e o seu nome dispensava acessórios. Coelho Neto – dissessem e digam – bastaria e basta. Ministro, deputado, complicando-lhe a personalidade, descontariam suficientemente o prestígio do artista e a glória do pensador. Talvez por isso, seis anos de Parlamento só lhe oferecessem oportunidades para volume de reduzido porte, onde o idealismo do assunto emudecia no tumulto das ambições.

Sem saber como, recebeu o sufrágio eleitoral. Também sem saber como, não mais o mereceu. O povo responde, inocente pela irreflexão ou pela conveniência dos que o conduzem. E o voto, orgulho desacreditado das democracias bastardas, por seus vícios, acaba estuprando incestuosamente a vontade popular.

Paulo Setúbal, que tanto nos falta, Sr. João Neves, apresentando o vosso Por São Paulo e pelo Brasil –, destacou o trecho épico da vossa vida, vivida na tarde garoenta e fria da lendária Piratininga, quando “mais do que um general, porque éreis uma batalha vitoriosa”, descestes das alturas, entre aclamações festivas a romper pelos recantos da cidade, que gritava alvoroçada: João Neves, João Neves!

Eu vos conheci também em condições de menor vulto, mas de inegável semelhança.

Foi crítico o ano de 1929. A Democracia inadvertida definhava no Brasil pelo desentendimento sintomático de seus homens comprometidos. Nos círculos autorizados da política e dos negócios, encrespavam-se as primeiras vagas.

Vindo do Sul, onde Gaspar e Moacir, sós, chegam para afiançar a força demolidora da palavra antagônica, estreastes em altivo comando, nas hostes da Aliança Liberal, nascida pacatamente na montanha bucólica e salutar, mas constrangida a seguir pelo país vasto, rolando com os seus rios, uivando com os seus ventos, arremetendo com as suas montanhas, desdobrando-se com as suas planícies, e estrondeando a vitória no prélio das armas.

Armas valem mais do que urnas. E assim o foi compreendendo o orador triunfante. Em tais alturas, a palavra sonora, pregoeira dos lances soberbos que se prometiam, devia empolgar a admiração popular. Tínheis o aspecto menineiro e o tom profético, executando um legado imperativo e racial, o legado da eloqüência que ainda brota dos lábios emudecidos, por onde romperam as revoltas e as invectivas da gente pampeira que, no extremo brasileiro, derrotando a tirania estranha, em cinco anos de bravura, foi a atalaia do Brasil.

Nunca me pude furtar à fascinação da vossa facúndia. Leio e releio, constantemente, os vossos discursos memoráveis. E só a feitura empolgante da vossa frase consegue mitigar a saudade, a gemer na romaria pelas vossas páginas. Há nesse livro um penhor de sinceridade. Certamente não podia ter sido pacífico o ano de 1929: nele, como nos grandes combates, já está assinalada a lista dos mortos e dos desaparecidos. A impressão de sobressalto e de exaltação foi efêmera, como é natural e justo, numa paisagem movediça e variada, numa multidão nômade e policrômica, num tumulto babélico e insatisfeito.

De tudo que o tempo já deliu, ficou a vossa figura de orador exímio, torrencial, lógico, penetrante, aliciador, arengando filípicas e olintinianas, encarnação desse Demóstenes, que, opositor e adversário, investia aplaudido pela turba contra o macedônio invasor e que, hoplite e cortesão, viu desolado e decaído o desastre do Cheroneu.

É de lamentar, exigir a praxe acadêmica um discurso lido. Estou certo que, se permitissem a improvisação e a espontaneidade, essa sala, ainda mais frenética, levantaria em troféu o orador muito acima da sua tribuna. No encargo conferido de vos receber e de vos comentar, de forma alguma, com o meu julgamento, poderei discutir os vossos atributos de escritor. Portanto, não me levareis a mal, se insistir no apreço à vossa “Campanha da Aliança Liberal”. Outros espécimes da vossa produtividade apresentam-se com o mesmo arrebatamento, estrepitoso e fanfárrico, numa orquestração de tubas, de rufos, de estrugidos, em ímpetos invencíveis, tentando conquistar domínios e lauréis.

Fostes, nesta oratória de corredeiros despenhantes, uma voz apocalíptica a serviço de uma idéia quase virginal. Apesar dos arroubos retumbantes, a vossa obra de proselitismo transmite uma confiança absoluta no destino. Não vos abandonava o firme desejo de vencer: as torrentes não respeitam diques. Em contraposição, o prefaciador da “Campanha da Aliança Liberal”, progênito de lutas ancestrais e exaustivas, encobria na generalização a sua estratégia maneirosa: e, como se não tivesse datado os seus conceitos, deu-lhes frescura para qualquer oportunidade, elegância para qualquer emergência.

Tudo fiz para me afastar, nesta homenagem rendida e afetuosa, da labiríntica floresta que atravessais. Sois, todavia, marcadamente um homem de Estado, combatido, combativo, desimpedido, novo na idade e veterano nas competições. E como nunca me propus a dizer nem do que não entendo, nem do que me intimida, recolho-me para o que ainda pudesse dizer, em continência à sua força e à sua inflexibilidade.

Refugio-me igualmente na intimidade desta Companhia, onde vos espera o lugar que vos pertence. Na Academia, estiveram os grandes oradores do Brasil. E falo só dos oradores professos. Nabuco, Patrocínio e Rui orfanaram-nos. Com o nosso silêncio, oferecíamos-lhes o que tínhamos de melhor, sem profanar as vozes espectrais. Hoje, afinal, restabelecemos o fulgor da palavra onipotente, e a João Neves entregamos a herança preciosa.

Há uma advertência: os maldizentes andam à espreita. Numa época de tartamudos, os oradores são maltratados. A moda é desprezar as regras do bem dizer. Onde fora honra falar, hoje é recurso ler: os parlamentares reduzem à fome os taquígrafos, confidentes dos solecismos e das trivialidades tribunícias.

A incapacidade de expressão gera o azedume dos entaramelados, espécie de psitacídios que muito pensam, mas nada falam. Atiram-se, entretanto, de encontro aos que, humanamente, se exprimem com acerto e com desembaraço e chegam-se aos culminantes da oratória para denunciá-los como verbalistas, palavrosos, fofos e nocivos.

Nega-se a nossa História nesta aleivosia. O Parlamento, a cátedra, o Fórum disputavam os melhores oradores, adestrados nas humanidades lustrais, onde se desenvolveram os grandes políticos, os grandes mestres, os grandes juristas, nascidos em plena cultura clássica, educados no estudo da boa linguagem, ridicularizada hoje pela atrevida desenvoltura da xenofobia agreste.

No Império, a palavra romântica e liberal é uma orquestração. Montezuma, nacionalista guerrilheiro; Bernardo de Vasconcelos, fúlgido e reacionário; o velho Rebouças, histórico e precioso; Vergueiro, revoltado e humanitário; Teófilo Otoni, aurora da democracia; José Bonifácio, o Moço, uma constelação; todos penetraram na alma contemporânea com seus arrebatamentos e suas esperanças.

Perduram os rumores desta era lúcida, e destaca-se a diferença entre os fins do segundo reinado, e os funerais da Primeira República. Defrontem-se as duas Constituintes: a de 1891 e a de 1934. Em 91, os debates e os princípios emprestaram à Carta americanizada e comtista, uma transcendência que resistiu a 40 anos de desobediências impunes e de remendos interpretativos. Em 91, primavam os oradores; em 34, venceram os ledores... Os de 91 haviam se moldado no rigor do preparo secundário; os de 34 tinham o pecado original das equiparações, dos favores, das dispensas e dos decretos... No fundo, uma divergência enorme, por conta de poucas letras: em 91, o classicismo; em 34, o classismo...

Sabeis, porque o dissestes, que nenhum homem de expressão foge ao magnetismo de seu tempo e de seu meio. Quisestes, desta forma, traduzir verbalmente o complexo de sentimentos, divulgados à larga, com êxtase e orgulho, na comovida oração ao gênio de Silveira Martins, atleta da tribuna, pelo seu porte titânico, sua voz trovejante, seus tropos abismosos, seus gestos ciclópicos, sua cabeça olímpica. Desenhando o perfil do conterrâneo imortal, sem o querer, talvez, traçastes uma genealogia intelectual, de onde brotou a vossa magia impressionante, e, para maior e melhor crença na força das exortações, repetis o remate de Steed: “Digam o que disserem, o governo do mundo ainda é dos que sabem falar...”

Entranha-se esta sentença no vosso espírito arrojado, onde se processou o milagre da intrepidez, quando, indiferente ao perigo, voando epicamente em asa frágil, pousastes no coração de um povo conquistador e bravo, que vos consagrou o símbolo da lealdade e da vitória. Era a entrada em Jerusalém.

Desta consagração cívica irrompeu um fogaréu de libertação. Cedo desmaiaram sonhos e aspirações. Em três meses, a jornada bandeirante cobria-se de crepe. E nem mais um só eco votivo. E partistes, não para o triunfo, mas para o exílio – “o vinho dos fortes, o revelador dos caracteres”. Ali aprendestes que “nenhum homem público deverá subir ao governo sem os certificados da oposição”. Assim o dissestes, mal volvido do desterro. Longa e cruel a duração deste noviciado...

Demorei-me, sr. João Neves, atento aos últimos trechos do vosso discurso. Nele tentais fugir ao pecado de querer contaminar, pelo veneno da política, o santuário da Arte, embora os artistas enfrentem também os problemas sociais, e baixem do seu ideal até o homem sofredor e a terra desolada. Contrariais duramente a intransigência dos catecismos escravagistas, quer os da esquerda, quer os da direita, suprimindo a liberdade de opinião para agrado das ditaduras de partido ou de classe. E proclamais: “Nunca os regimes autoritários foram companheiros do esplendor mental.”

Forças, não tive, para penetrar nesta imprevista convicção, contrária às cadeias da intolerância humana. Mas uma balsâmica tranqüilidade sobe do remate da vossa previsão oracular, devassando um futuro fugitivo, no qual, sem receio e sem vacilação, o vosso engenho constrói a sociedade “firme no seu teor cristão e humanista, e no seu amor às liberdades superiores”.

Os homens da vossa estrutura profetizam ilimitadamente. Mas no egoísmo dos que participam das gerações destinadas à fatalidade, à desolação, e ao desassossego, não será demais que cada qual comece, desde agora, a suplicar da sinceridade dos responsáveis o cumprimento das promessas.

Entretanto, é alívio ouvir de um homem da vossa têmpera, batido das atribuições que atropelam a vida pública, estas esquecidas palavras de fé e de fraternidade. Jamais me exercitei no profetismo, nem tratei de economizar credulidade bastante para me distrair com os vaticínios. Supunha-me neste engano quase consumado, até sentir a realidade spengleriana, de vossa adoção, como participante de um mundo em derrocada e de outro em revolvimento. E agora sei que, aguardando o dia da redenção, apelais para os “heróis, os estóicos e os santos”...

O patriotismo não se cultiva na ostentação imperativa. As prerrogativas privadas não desbaratam as virtudes sociais. O princípio da autoridade e a noção da ordem encontram-se mais no desinteresse e na obediência do que na arrogância do mando e no peso das emendas. Ainda bem que não invocastes os truculentos e os opressores. E rezais aos santos e aos estóicos, os da regra do sacrifício, os que nunca experimentaram o sabor das boas prebendas.

E ao considerar, Sr. João Neves, que tão serenamente evitais o vozerio reivindicador em busca do paraíso das simplicidades, vós – general das manobras espetaculares no êxito das revoluções contra a penúria do sufrágio e a difamação do liberalismo –, vós egresso das pelejas, ajoelhado nos altares para que no Vale de Josafá nos valham os santos e os estóicos... diante desse panorama radioso, eu bendigo a vossa vinda a esta Casa de meditação, que vos acolhe honrada e alegre. E já agora creio na força da revelação conversiva que abateu a espada do ímpio para acordar a consciência do apóstolo.

Boa é a nova que nos trazeis. Outros rumos, outros propósitos. E que grande programa: entregar o Brasil aos santos e aos estóicos!...

Como vai ser linda a nossa terra generosa, e como vai ser feliz a sua gente sofredora!...