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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Augusto de Lima

RESPOSTA DO SR. AUGUSTO DE LIMA

SENHOR João Luís Alves,

Aprouve à Academia ser eu quem vos dê, em seu nome, as boas-vindas. Esta função protocolar que qualquer dos outros confrades receberia com satisfação só me veio a caber por motivos de preferência com que o nosso presidente justificou a proposta do meu nome, logo adotada por todos. Se bem me lembro, foi esta a suma dos motivos.

A Cadeira que vindes ocupar tem como patrono um poeta e foi criada por outro poeta, que era também romancista, jornalista e magistrado; foi, por morte deste, ocupada por um jurista, professor e magistrado, que nunca escreveu versos; a este sucedeu outro jornalista, professor, autor de crônicas sociais e políticas e de poesias, e, finalmente, vindes vós, jornalista, jurista, professor, parlamentar e homem de Estado. Ora, eu tenho sido algumas destas cousas e tentado ser outras. Fui magistrado, professor, governador, e sou político. Tentei ser poeta, jornalista e historiador.

E aí tendes as razões, talvez um pouco confusas, pelas quais tendo já sido julgado idôneo para receber o saudoso Eduardo Ramos, que, além de tantos outros títulos, possuía também o de poeta, sou-o ainda, com mais forte razão e confusão para receber-vos, a vós que acabais de declarar nunca terdes escrito versos. Creio ter sido também invocado o motivo de ordem regional, de sermos ambos mineiros, mineiro tendo sido Pedro Lessa, e quase mineiro Lúcio de Mendonça, que em Minas passou a primeira e melhor parte da sua vida intelectual. Certo, com boa vontade se encontra analogia nas cousas, à primeira vista, mais dessemelhantes, e razão nos maiores disparates. Não era preciso muito esforço, para explicar a minha afinidade com Eduardo Ramos. Além de alguns outros pontos, de comum entre nós, havia o de ser ele baiano e eu mineiro, vizinhos muito próximos, filhos de dois estados, que, algumas vezes, podem ter arrufos, e arranhar-se, como em ligeiras brigas de irmãos, mas que, afinal, se harmonizam, de boas pazes feitas. Não era também da Bahia Urbano Duarte, a quem sucedi nesta Casa?

Não já afinidades de raciocínio, mas legítimo parentesco espiritual descobriria entre nós, Dr. João Luís Alves, a fina perspicácia do presidente da Academia, se considerasse, além dos princípios que nos foram comuns, da educação mineira, o encontro dos mesmos ideais na política, da mesma disciplina no partido, cujo órgão na imprensa, o Diário de Minas, defendendo as mesmas causas, o mesmo programa, dirigimos, em épocas diferentes, vós no governo Silviano Brandão, eu no governo Venceslau Braz. Mais estreito se revelaria o parentesco na lembrança de que éramos, e somos ainda, professores, embora em disponibilidade, da Faculdade de Direito de Belo Horizonte, de cuja revista, em certo tempo, fomos juntamente redatores.

Foi por essa ocasião, a partir de 1901, que vos conheci na capital de Minas, armado cavaleiro da imprensa política e professor de Direito; comentando o projeto do Código Civil, de Beviláqua; reproduzindo, de 1898, um erudito estudo sobre o infanticídio e propugnando pela até hoje esperada reforma do Código Penal, tão esperada como o Dicionário da Academia. Eis os vossos e meus companheiros da Faculdade nesse ano (1901), segundo a memória histórica de Mendes Pimentel: Afonso Pena, Gonçalves Chaves, Camilo de Brito, Francisco Veiga, Levindo Lopes, Virgílio de Melo Franco, Henrique Sales, Rebelo Horta, Bernardino de Lima, Augusto de Lima, Sabino Barroso, Pádua Rezende, Teófilo Ribeiro, Davi Campista, José Pedro Drummond, Gastão da Cunha, Rodrigo Bretas de Andrade, Estêvão Lobo, Rezende Costa, Edmundo Lins, Mário de Amorim, Ferreira Tinoco, José Antônio Saraiva, Salvador Pinto, Mendes Pimentel e João Luís Alves.

Estes nomes, com exceção do do orador, dispensam anotações biográficas, e acredito não ter sido impertinente, declinando-os neste ensejo à Academia, que os conhece, na sua quase totalidade; porque à Academia, conquanto não seja instituto de história, não é, contudo, estranha a história cultural e política do Brasil. Há quanto a nós dois, Sr. João Luís Alves, um registro que nos interessa de perto e nos comove; é que desses vinte e seis professores, que éramos em 1901, só restamos hoje... dez!
No ano seguinte a esse, proferíeis, no grande estilo da pragmática doutoral, o discurso de grau dos novos bacharéis, excitando-os ao cumprimento dos preceitos da ética profissional na magistratura, na advocacia, na política e na administração.

Eis uma bela síntese-programa, por vós então formulada: “Juiz, aplicai essa força (o direito) com os temperamentos da eqüidade; advogado, invocai-a com lealdade e sinceridade; político, estabelecei-a, sem idéias doutrinárias preconcebidas, auscultando as necessidades do meio social e do momento histórico, se não quiserdes transformá-la em instrumento de anarquia, ou vê-la como letra morta, repelida pela consciência nacional.” Citáveis, depois, algumas palavras do discurso que Renan pronunciara muitos anos havia, no Liceu de Luís o Grande: “Sereis talvez as testemunhas das mudanças mais consideráveis que tenham até aqui presenciado a história da humanidade.”

Profundo vaticínio, realizado nos dias de crise que o mundo está vivendo. Não pensáveis decerto, depois de transcritas essas palavras de um sentido misterioso, que uma tremenda comoção viesse a agitar a terra com sucessos tão extraordinários quais os que presenciamos na guerra universal, e terminada ela, nesta paz nublada e cheia de incertezas e ameaças.

Se muitos outros títulos, já por esse tempo, não vos recomendassem às simpatias da Academia, então de recente fundação, títulos que se podem apreciar nos discursos proferidos na Câmara Mineira, de uma eloqüência discreta, vestindo uma forte dialética; nas vossas lições de direito administrativo, à cuja forma elegante e perfeita dicção prendíeis a atenção dos alunos, e, por fim, nos artigos de polêmica doutrinária e política, travada nas colunas do Diário de Minas; se já não existissem esses títulos, bastaria, por si só, essa oração de paraninfo, modelo tanto de elevação de conceitos e de sabedoria jurídica, como de linguagem animada e correta. Já nessa ocasião, e quando tínheis apenas a idade de Cristo, não seria aplicável à vossa possível candidatura a esta Casa, ainda que fôsseis ministro tão prematuramente, a evocação que vos suscetibilizou, feita pelo malicioso C.A., do episódio em que Renan teria prometido dar o seu solicitado voto ao ministro Freycinet se não fosse candidato o presidente da República. Nem então, e muito menos agora, em que o vosso acesso à Academia foi precedido de volumosa documentação de idoneidade literária, como orador parlamentar, mestre da arte da palavra, colaborador legislativo, eficiente, e comentador vernáculo do Código Civil.

Com tal patente e tão meritória fé de ofício a pasta de ministro não poderia ser embaraço a que chegásseis ao vosso posto nesta milícia. Não fosse da índole das Academias, pela tradição de sua origem de corte, namorar as letras com particular galanteria nos bordados de ouro das fardas e no esplendor das dignidades de alta gerarquia. E por que não poderíeis aqui entrar também como ministro, se nessa eminente posição houvéreis conquistado novos títulos à palma acadêmica? Entre os que vos chamaram com o seu voto, não haverá quem pouco curioso dos anais parlamentares, das revistas jurídicas e nada freqüentador das galerias do Senado e da Câmara, vos terá preferido pelos vossos brilhantes discursos desenvolvendo o programa de Governo, especialmente o do banquete, que recebestes como ministro? Se não foi como ministro que vos propusestes candidato, e que a Academia vos elegeu e hoje vos empossa, não deve ela, contudo, ser indiferente a esta insigne função de Estado, em que sois investido, porque uma parte dela se exerce na esfera das artes e das letras, e é por vosso órgão que o poder público, de acordo com o pensamento constitucional, colabora, por meio de animação aos artistas e escritores, na realização do Belo, que nas Acrópoles modernas, dignas deste nome, como na antiga, é uma das condições basilares da harmonia e da paz social. Sois o ministro da instrução, e a Academia, além de ser pelos seus estatutos e em virtude de lei órgão das letras nacionais e de cultura da língua pátria, é depositária de um legado, cujos rendimentos se destinam à difusão do ensino primário no Brasil.

Convinha à Academia que fôsseis poeta, romancista, dramaturgo, comediógrafo, autor de contos ou de ensaios de puras letras? Certo que convinha, patentes como tendes revelado nos vossos discursos, nas dissertações jurídicas e nos artigos de jornal, belas qualidades de imaginação, apurado gosto e estilo. Mas fostes vós mesmo que o dissestes, sem que vo-lo perguntasse a Academia, que jamais perpetraste nada disso, depois de afirmardes, com certa malignidade, que poucos se evadem, quando ainda pungibarbas, à tentação de manifestar o amor, quase nunca platônico, em versos e prosas que a idade madura vem a maldizer e renegar. Que não fizestes versos, bem o verifiquei do rigoroso inquérito que fiz junto aos vossos contemporâneos da Ordem, do Monitor Sul-Mineiro e da Peleja, em cujas colunas o cintilante Cormenin, vosso pseudônimo, jamais publicara senão prosa.

Se não praticastes este gênero literário, o do verso, talvez haja um pouco de temeridade em insinuardes, sem a autoridade da experiência própria, que a poesia dos primeiros buços, em regra geral, não tenha senão fins pecaminosos. Nesta austera companhia, onde avultam alguns poetas, que noutras cousas, além da poesia, não quiseram ou não puderam avultar, são raros, entretanto, os que não versejaram na primeira mocidade. Não digo todos, mas a maior parte deles visavam mais a glória literária do que a conquista de amoricos. Alguns, os parnasianos, contrariavam, na impassibilidade, que era o característico da escola, a qualquer suspeita de realismo erótico; outros, puros idealistas só viviam pela fantasia, rendilhando idéias no tecido inconsútil de imagens irreais; não poucos, invocando a musa revolucionária, empunharam a teoria da Abolição, da República e do Socialismo, e deste número era um dos vossos antecessores, o veemente poeta das Vergastas, que, como muito bem dissestes, foi o verdadeiro fundador desta Casa. Havia ainda o grupo dos panteístas, dos filosóficos, dos simbolistas. Mas eram todos, afinal, sonhadores, ainda quando escreviam, como Raimundo Correia, os sonetos – “Plena Nudez” e “Beijos do Céu”, que dois colegas nossos, recitando-os, presente o nosso santo e saudosíssimo confrade Dom Silvério, entenderam naturalmente que, como obra de arte, não feririam a susceptibilidade moral e teológica dos ouvidos arquiepiscopais.

Convenho em que não fizestes poesia metrificada e rimada. Não tivestes lazer suficiente para esse trabalho de paciência, porque cedo vos empolgou o estudo do direito, e não tardou que, logo depois de formado, fôsseis seduzido por essa feiticeira – a Política, que, embora descendente de Palas Atena, costuma, entre nós, afetar desdém pelos freqüentadores do Parnaso. Não obstante faltar-vos a técnica literal do verso, não podeis dissimular ser uma alma de poeta, porque sois um emotivo, e nos vossos trabalhos oratórios se divisam imagens, ritmo e disposição de forma e pensamento, como só os costumam possuir os artistas do verso. Somente a vossa musa, em vez de ser uma das nove, varia entre Minerva e Têmis. Eis como vos exprimíeis em relação a um eminente senador, depois presidente da República, no vosso discurso de 28 de setembro de 1917, e eu tenho as vossas palavras como um documento de autopsicologia estética:

O nobre Ministro do Interior do Governo Campos Sales é daquela raça de juristas que têm honrado a cultura jurídica do Brasil, como Nabuco, Teixeira de Freitas, Lafayette, Carlos de Carvalho e tantos outros, para só falar dos mortos, daqueles que fazem do cultivo do direito um verdadeiro sacerdócio de todas as horas de sua vida, daqueles que amam o direito pelo direito, daqueles que encontram na solução dos problemas jurídicos, postos ao seu espírito, as emoções vivas que encontra o estatuário, revendo a obra-prima da sua estátua; as mesmas emoções que encontra o compositor, conseguindo pôr no papel as notas musicais das harmonias que lhe passam no espírito; as mesmas emoções vibrantes que encontra o matemático, resolvendo um grande problema de astronomia.

Estas palavras quentes eram proferidas a propósito do esperado Código Civil. Em outra passagem do mesmo debate sobre esta matéria, fizestes a poesia do direito, que comparastes às estrelas do mar Egeu, iluminando o abismo equóreo, onde se sumira a lira de Safo. Aqui estão as vossas palavras:

Se entrei no debate e abusei da atenção do Senado, fi-lo porque estava convencido, parafraseando um conceito luminoso de Pietro Cogliolo, de que a palavra da ciência jurídica, apesar da triste deliqüescência dos tempos, ainda vibra e conforta; como as estrelas do mar Egeu indicavam o lugar onde submergira a lira de Safo, assim ela indica, às gerações novas, que recebem com fé e guardam com amor, o lugar onde as sociedades e os povos encontraram a nova energia para defesa de seus destinos – o Templo do Direito.

Não era preciso que um poeta dissesse – “não fazem mal as musas aos doutores” – para que sempre se tenham considerado irmãos, na sua origem, o direito e a poesia: tão sabido é que as leis primitivas de todos os povos tinham a forma de versos, e eram às vezes grandes epopéias; e que os chefes políticos eram, ao mesmo tempo, magistrados, sacerdotes e poetas! As influências literárias atuam beneficamente sobre a política, como forças superiores de ideação; porque, de ordinário, ao contrário do que se pensa sem maior reflexão, na arte prevalece mais a estática, ou a conservação, que é a alma imutável das cousas; na política – a dinâmica, ou o movimento e a renovação.

Richelieu, criando a Academia Francesa, modelo desta, quis fundir a política e a literatura, como um escudo protetor de união contra as surpresas reacionárias da filosofia. Mas o século XVIII não logrou esse ideal, dando-se o contraste de reinar a revolta na filosofia e a obediência na literatura, e o que é ainda mais esquisito: o mesmo indivíduo, Diderot, era revolucionário de idéias e escrevia tragédias burguesas, e tinha faceirices, como a de aconselhar aos escritores embeber a pena no pó das asas das borboletas; do mesmo modo, La Harpe, libérrimo campeão em política, não se afastava em literatura do Código Boileau, apesar de ter sido este o verdadeiro Luís XIV das letras, construtor da Versailles espiritual, chamada “Arte Poética”, ou, como o intitulara o próprio Luís XIV, “Contrôleur général du Parnasse”.

Eu proporia que se não falasse mais em literatura de ficção, para caracterizar os homens de letras; porque, considerando bem, não há disciplina humana mais cheia de ficções do que estas duas – o direito e a política. Não é a poesia que faz do branco – preto, e do redondo – quadrado, mas o direito nos casos soberanamente julgados. Não é nos romances que se proclama a soberania do sufrágio universal, representada pela trigésima parte dos habitantes de um país. Estas e outras ficções são, entretanto, necessárias, tão necessárias à nossa contingência política, como os dogmas à religião. É delas que se faz a ordem social. E o patriotismo, em rigor, que vem a ser, senão uma ficção, que nos faz amar extensões de território que nunca vimos nem nunca veremos? Talvez fosse por isso que o espírito insaciável, mas positivo, de Edmond Sherer assim se expandiu:

Il se peut que le patriotisme soit un charme pour beaucoup de gens; quant à moi, j’en suis péniblement affecté, je l’avoue, comme d’un manque d’élévation et de grandeur.

Os políticos podem ser sinceros e há muitos que o são, como nós, Sr. João Luís Alves: mas, obrigados à reserva e à discrição, que derivam da própria essência dos partidos. É inegável que os documentos políticos dificilmente poderão descobrir a parte mais profunda e verdadeira da alma. Neles, e no melhor sentido demológico, mais se procuram exprimir, que os próprios, os sentimentos, as tendências, e até os preconceitos dos outros. É nas obras chamadas de ficção que, por isso mesmo, o autor, sem ter que prestar contas a ninguém, desvenda a sua alma, travestindo-a nos personagens por ele criados, em cuja boca põem, articuladas com destemida clareza, palavras e frases, que, por discrição, na vida real, não ousaria pronunciar como próprias. É que, na política, o terreno oferece incertezas de direção, e não são raros os reveses e as surpresas: o que haveis reconhecido, quando falastes aos bacharelandos, em 1902:

A política vos acenará com as glórias da tribuna parlamentar e os serviços prestados à Pátria no seu governo; mas, para conquistá-las, não vos iludais, amargos serão os dias de luta, tristes os desenganos, muitas as perfídias. As ambições contrariadas criarão obstáculos às vossas mais puras intenções e as próprias paixões populares levantarão barreiras aos vossos atos mais sinceramente patrióticos.

E citáveis os versos de Musset:

La politique, hélas! voilà notre misère,
Mes meilleurs ennemis me conseillent d’en faire.

Apesar desse quadro de cores tão carregadas, não resististes às tentações do conselho, não dos vossos “melhores inimigos”, que por inveja não vos tolerariam a glória e os louros da batalha, mas dos vossos melhores amigos, que eram também os amigos melhores da nossa terra. E bem cedo vos fizestes político. Aí estão nos vossos trabalhos parlamentares, que reunistes em volume, e em muitos outros, que ainda ficaram nos anais, os troféus dos bons combates que pelejastes, terçando armas com as primeiras figuras do nosso parlamento. Entre as homérides, havia também algumas escaramuças, como esta em que vos empenhastes com o antigo presidente desta Casa, que pedia, e vós negáveis, um interventor no Estado do Amazonas. Chegou a haver certa irritação de impaciência, como se vê do seguinte extrato:

O Sr. Rui Barbosa – Por que então sofismas desta ordem?
O Sr. João Luís Alves – Agradeço a Vossa Ex.a mais uma vez esta classificação de sofista.
O Sr. Rui Barbosa – Não é necessário ser sofista para usar de sofisma.
O Sr. João Luís Alves – Agradeço a Vossa Ex.a tão sutil distinção.
O Sr. Rui Barbosa – Não é sutil distinção, porque todos nós podemos cometer erros.
O Sr. João Alves – O erro não é um sofisma, é um argumento de má-fé.
O Sr. Rui Barbosa – Nem sempre.
O Sr. João Luís Alves – Sempre, o argumento errado de boa-fé é paralogismo.
O Sr. Paulo de Frontin – Esta é a distinção filosófica.
O Sr. Rui Barbosa – Perdoe-me Vossa Ex.a: o paralogismo não é senão uma espécie de sofisma, a que por distinção se dá o nome de paralogismo.

E mais adiante:
O Sr. Rui Barbosa – Aqui está o que se chama um sofisma, e sofisma pueril.
O Sr. Luís Alves – Agradeço a V. Ex.a. Não é sofisma nem pueril.
O Sr. Rivadavia Correia – É lógico.
O Sr. Rui Barbosa – Agradeça como quiser.
O Sr. João Luís Alves – Pois então não agradeço.
O Sr. Rui Barbosa – Pois não agradeça.
O negócio aquecia-se, como se vê: mas não chegou a ter maiores conseqüências, senão ficar provado que o vosso egrégio contestante negara a existência constitucional de interventor para um Estado, mas a afirmara para outro. E vós continuastes a negar tal entidade, apenas com a restrição, que muito honra a vossa tolerância, da nota recentemente aposta ao texto desse primoroso discurso. Se o Congresso, o Judiciário e o Executivo não repeliram essa criação da jurisprudência política, por que havíeis de ser vós e os vossos livros mais realistas que o rei, isto é, a República?

É lícito sofismar no Parlamento? Sim, responderia Hamilton, não o constitucionalista americano, mas o parlamentar inglês, o de um só discurso, autor da Lógica Parlamentar. Hamilton era um céptico e cultivava o sofisma com a paixão do virtuose. Aprendera a lógica em Bacon e professava a doutrina que Platão atribuía a Górgia. Excedeu, porém, a todas as onze variedades de sofismas reconhecidos por Aristóteles, e elevou-as a um número fantástico. Eis o que pensava na sua política epicurista: – “Para um parlamentar, que não quer ser malogrado, a cousa séria e sólida é sempre o poder.” Assim dizia e assim praticava. Entrou na política sob os auspícios dos wigs; aí ficou, vindo os tories, e quando os wigs subiram de novo, nem um minuto pensou em deixar o lugar.

No parlamento inglês, diz o tradutor da Lógica Parlamentar, Joseph Reinach: “quand un ministère change, l’opposition et le parti gouvernant changent de place; Hamilton, lui, quel que soit le cabinet, reste toujours assis du même côté du sac de laine, du côté de la Trésorerie.”
A política, dizia Hamilton com a sua franqueza desabalada, não é senão um jogo: “não se joga para perder mas para ganhar; o seu fito é a administração pública”. Se tal doutrina fosse hoje pregada, até as pedras se levantariam das calçadas e os prelos se inflamariam às labaredas da indignação do jornalismo. Mas o livro de Hamilton é do começo do século passado, de 1808, e não fez escândalo, porque acontecimentos de mais vulto o abafaram. Era o ano do bloqueio continental, em que a luta implacável contra Napoleão estava no seu cúmulo; quando Wellington, que não era senão Wellesley, acabava apenas de embarcar para Portugal, e de Portugal vinha, fugindo de Junot, D. João VI para o Brasil. A Lógica Parlamentar foi, pois, um desastre de livraria, apesar de ser um breviário genial de dialética. Prevalecesse tal escola, e o parlamentarismo inglês, tão solidamente austero, perderia a sua força moral perante o mundo. Mas Bentham, embora o utilitarismo da sua escola filosófica, desmascarou os sofismas e restabeleceu a verdadeira lógica.

Holtzendorff, porém, faria melhor, se já vivesse nesse momento histórico, para antepor à doutrina cínica do parlamentar inglês o princípio por ele proclamado de que “a política é um meio de realização do direito”. Mais longe ainda foi a doutrina dos vossos antecessores Lúcio de Mendonça, Pedro Lessa e Eduardo Ramos. Do primeiro fez época a fórmula vermelha do “homicídio legal” que ele opunha aos insurretos contra o governo Floriano, que, no seu conceito de jurista, encarnava, mais que o princípio da autoridade – a própria ordem constitucional. Para defender esta, nada de contemplações, nem de eqüidades sentimentais, assim pensava o já então ministro do Supremo Tribunal. Com a mesma vivacidade e veemência, mas sob outro aspecto, defendia o seu sucessor Pedro Lessa a ordem jurídica – não já pela autoridade contra os dirigidos, mas destes contra aquela. Excessos e abusos de poder – eis os inimigos permanentes dos direitos individuais, pensava o professor e depois o juiz. Só há um poder capaz de salvar as liberdades públicas, de que todos os governos são inimigos instintivos – é o Poder Judiciário: e nessa corrente de idéias chegou quase às fronteiras da ditadura judiciária, como ele próprio reconheceu, segundo acabais de testemunhar.

Contra os decretos do Legislativo e do Executivo, poderes precários de curto período funcional, ficaria com ação e efeitos onipotentes e anulatórios o instrumento do Habeas corpus, emanado de um poder vitalício, cúpula dos outros poderes, máximo intérprete da Constituição, e de fato irresponsável, até em marcar as fronteiras entre o direito e a política. Era demais, e por isso, conservador como demonstrastes que ele era, voltou à harmonia e igualdade de poderes, transigindo assim com a autoridade, que dantes suspeitara.

De Eduardo Ramos, o jurista baiano, muito havia que louvar, mas na justa medida, no equilíbrio superior com que, na imprensa e no pretório, combatente e sacerdote, verberou os excessos de poder e exaltou os princípios da justiça. Vós também o tendes feito com galhardia e brilho. O direito tem sido a vossa bússola, mesmo através da política. Tendes proclamado os seus princípios, como professor, advogado e parlamentar: desde a cátedra de Direito Administrativo, em que descrimináveis serenamente – na teoria do contencioso – as esferas dos direitos e interesses do Estado das dos direitos e interesses individuais; – até a tribuna parlamentar, onde a vossa palavra e a vossa ação se acharam sempre ao lado das construções do direito: – do direito constitucional – nas importantes questões de estado de sítio, intervenção nos Estados, organização judiciária, anistia, etc.; – do direito civil – nas discussões do Código Civil e nas inúmeras questões que relatastes na Comissão de Justiça; – do direito comercial – nos debates sobre letras cambiais, em que proferistes magistrais discursos, de ação decisiva nos debates; – do direito financeiro fiscal – na série de esforços exaustivos, que se traduziram vitoriosamente no atual protecionismo aduaneiro.

O vosso lema era o conselho que dáveis, em 1902, aos alunos bacharelandos: – “Qualquer que seja o vosso destino, como juiz, como advogado, como político, o problema sempre posto ao vosso espírito será o problema do direito.”
Há uma reserva apenas no apreciar o vosso direito fiscal, e eu peço licença para mencioná-la: – é quanto ao rigor com que o antigo Secretário das Finanças de Minas, hoje Ministro do ensino nacional, consentiu em que se exigisse, pena de seqüestro, a pesada taxa de 27 e meio % a uma fundação destinada a combater o analfabetismo e a premiar a cultura do nosso idioma. O fato recomenda, aliás, o zelo dos interesses do Estado da parte do seu administrador financeiro. A questão era controvertida; não éreis juiz, éreis parte, isto é, a fazenda pública: in dubio pro fisco. Nesse sentido também decidiram, embora, a meu ver, sem razão, o juiz de Minas e o daqui. Não é esse, pois, senão um novo motivo de aumentar o conceito da Academia pelo vosso valor moral, o que é de se registrar, porque não são somente os valores literários, isolados, que ela estima e acolhe, senão também os que fazem realçar as virtudes e revelam boa educação e elegância espiritual.

Eram esses mesmos valores, que se integravam no caráter de cada um dos que ocuparam, antes de vós, a Cadeira de Fagundes Varela, a começar pelo seu fundador, aquele bravo paladino da moral e do direito, que nas colunas do Colombo, periódico publicado na vossa quase natal cidade – a Campanha, acendeu os primeiros fachos da propaganda republicana em Minas, e que no Supremo Tribunal Federal imprimiu, fortemente, em cada um dos feitos que relatou, o cunho da sua altivez pessoal. Eu conheci Lúcio de Mendonça e entretive com ele estreitas relações pessoais e intermitente, mas sempre amistosa correspondência epistolar, de que possui alguns exemplares o Arquivo da Academia. Conservo de modo indelével na memória o seu severo perfil e a sua atitude de intransigência de caráter ao lado dos altos predicados literários postos em tão saliente relevo pelo vosso antecessor, por sua vez tão brilhante e justamente apreciado em vossa oração.

Fugindo ao rigor literal dos estatutos, que não reputam membros efetivos da Academia, embora eleitos, os que, como Eduardo Ramos, não tenham sido ainda recebidos, traçastes contudo algumas linhas sobre a sua obra literária. Era justo e fizestes bem; porque, longe de ser estranho a esta Casa, Eduardo Ramos, embora extra-numerário, sempre lhe pertenceu pelo espírito e pelo coração. No geral conceito dos nossos veteranos, era até considerado como um dos melhores colaboradores na fundação definitiva da Academia. Graças à sua iniciativa parlamentar, foi ela reconhecida pelos poderes públicos, que lhe deram habitáculo e lhe permitiram isenções e regalias, com que pôde amenizar as agruras dos anos noviços. A eleição de Eduardo Ramos, aliás bem tardia, só foi precisa para materializar a sua presença numerária. Pelas letras, já era há muito dos nossos, e as suas letras foram das melhores na tribuna parlamentar, no magistério superior, no foro, na imprensa e na poesia.

Não disponho de tempo, o que deveras sinto, para falar do político, do jurista, do colaborador da Constituição da Bahia, da sua liderança na Câmara e do papel proeminente que representou no nosso meio social e político. Repetirei aqui a minha admiração pelo homem de letras, e vou começar pelas palavras que dele escreveu o nosso antigo presidente Rui Barbosa:

Ninguém entre nós, nos nossos dias, meneou melhor os segredos da ironia, ninguém lhe deu mais lustre às elegâncias, ninguém lhe rendilhou com mais engenho e graça, ninguém teve mão mais hábil em aligeirar o epigrama, em polir a alusão, em acerar o remoque, em centelhar o chiste, em despedir o sarcasmo, em jogar todas essas armas sutis da malícia e do paradoxo, da originalidade e do ateísmo com que, desde Sócrates, o espírito e a filosofia, últimos recursos dos vencidos na luta do merecimento com a mediocridade, se batem contra os impostores, os sofistas e os chatins da ciência, da virtude e do poder.

Para glória de um escritor nada mais era preciso, além dessa sentença, gravada pelo mestre dos mestres no pórtico de um dos livros do cronista baiano – Prosas de Cassandra. Em outro, Retalhos e Bisalhos, como digna moldura do quadro de arte, escreveu o Sr. Medeiros e Albuquerque:

As crônicas, que estão neste volume, só as podia escrever um grande escritor, condescendendo em tratar de cousas aparentemente fúteis, mas sob as quais pôs graciosamente todo um mundo de pensamentos.

Desses dois livros e do anterior, que podia ser reproduzido integralmente em edição definitiva, se pode dizer, como já se disse dos de Flaubert, que neles as palavras têm alma, e conservam, fora da idéia ou do objeto que representam, vida, harmonia e cor, verdade indemonstrável, mas aberta a todos os temperamentos enervados, e que Baudelaire chamava “a linguagem das coisas mudas”.
Alguns assuntos nesses livros são teses de uma alta filosofia, esfloradas no tacto sutil de uma ironia paradoxal. Outros são desenhos ou iluminuras de quadros sociais cambiantes, nos quais se exercita em delicados epigramas um espírito penetrante e arguto. Em toda parte, porém, presidindo a essas operações do pensamento artístico, há uma irrepreensível correção de atitude, realçada pela linha aristocrática e elegante de um gentil-homem de raça.

Sempre o mesmo apuro de linhas, a mesma toilette do estilo, e a par de outras lindas figuras de ornato, que dão às produções de Eduardo Ramos muita palpitação, muita vida e irresistível encanto. Conforme a exigência do assunto, assim se aparelhava o escritor. Aqui se enseja a tela, para o trato dos objetos que impressionam pelo colorido; e à sua palheta não falta nenhuma das cores ou meias cores. Ali quer-se dar a impressão do perfeito imutável ou modelar; impõe-se o mármore ou o bronze. Venha o cinzel, venha o escopro, venha o buril; e o artista escritor talha, insculpe, lavra e alinha. Quereis um modelo de primeiro gênero? Lede na Autobiografia a admirável passagem da “Primeira separação”, onde se sucedem quadros de encantamento pinturesco; e que simplicidade em toda essa descrição. Parece que se está vendo o começo da partida saudosa:

A canoa foi desencalhada da vasa da margem ao impulso possante daqueles homens de pele bronzeada, e, ganhando fundo, saltaram eles para dentro, em um movimento ágil, que a fez bambolear por algum tempo na oscilação mole de seu bojo cilíndrico, de menos a menos, até se fixar em equilíbrio.

Toda essa memória é talvez o trabalho mais primorosamente pessoal de Eduardo Ramos; é em mais de um aspecto semelhante a também admirável La Vie en fleur, de Anatole France, livro aparecido ultimamente.

Quereis agora ver o estatuário? Não é inferior ao que Antônio Vieira figura no seu imortal “Sermão do Espírito Santo”. Eis a escultura de Eduardo Ramos:
O cartão fotografado dava o retrato de um curioso cavalheiro do tempo de Henrique IV, de escarpins rasos, de fivelas, pernas, atacadas por um tecido de malhas, provavelmente de seda, até o alto das coxas, de onde partiam calções curtos e bufantes de fazenda listrada, cingidos ao cós por uma larga faixa de couro claro, ligeiramente ressaltada à frente pela compressão de um punhal oblíquo e agudo. O tronco desenhava-se forte, sob um justilho recamado de pérolas, sobre as quais triunfava um rosto de barba em ponta e soberbo bigode riçado, emergindo de um farto colarinho branco de canudilhos.

Não pode ser mais completa a escultura.
Saindo do mármore para outras matérias-primas que os hábitos de civilização têm introduzido na vida social, eu ouso dizer que ninguém melhor que o autor da Correspondência de Erasmo requintou em vestir o estilo; isto, muito de acordo com os seus hábitos mundanos, inspirados por uma doutrina que empresta grande relevo filosófico e psicológico ao modo de trajar de cada um. A sentença de Buffon, sobre a individualidade do estilo, podia ser substituída por esta – “o traje é o homem” – tornando afirmativo o prolóquio até hoje negativo – “não é o hábito que faz o monge”. Tal é a “filosofia da costura”, que assim é exposta:

Os trajes recortam-se mais sobre o padrão do espírito, do que pela intenção do ajustamento ao contorno do vulto de quem os traz. Na estampa dos tecidos e no feitio, no seu esmero ou descuido, no talho original do molde ou na sua vulgaridade, há significações profundas de educação, de tacto, de gosto, de linha, de cultura. Eles grafam subtilezas sociais; ora revelam translucidez, ora indicam opacidade na visão dos contactos da vida; exprimem reações enfezadas ou acolhimento dócil às infinitas criações imaginosas do pitoresco, para poupar-nos ao tédio da monotonia nos costumes.

É muito fino e muito bem dito. Assim pensava também Ramalho Ortigão, tido e havido como um dos mais belos figurinos da mocidade do seu tempo. Mais requintado era o dandismo de Barbey d’Aurevilly, para quem vestir era une grande affaire de la vie. “Le coutume, escrevia ele, a une influence latente mais positive.” Não era também este se não o pensamento ao menos a aparência exterior do abbé de Choisy, de Buffon e de Wagner? São todos eles descendentes indumentais de Petrônio, e ainda há pouco, numa conferência que andou fazendo pelo Brasil, o nosso confrade Sr. Júlio Dantas, que é da mesma família dos elegantes, desvendou-nos uma galeria sortida dessas figuras. Mas, a despeito de tão autorizadas opiniões, será verdadeira a “Filosofia da Costura?”

Há quem diga o contrário, e afirme que só por exceção se contam os casos em que os valores espirituais se revelam no modo de trajar. A filosofia mais corrente entre os nossos grandes homens, estadistas, políticos e escritores é a dos que no sentido vulgar são apelidados de “filósofos”. Vale, contudo, por um bom ideal de mundanismo a doutrina petroniana da indumentária, não para ser praticada agora, mas quando forem menos desumanos os preços dos alfaiates, ou quando os editores se encarregarem da encadernação de luxo dos seus autores. Mas a verdade é que no escritor dos Retalhos e Bisalhos, a correção e a elegância do trajar sempre foram sem a afetação do que hoje se chama – o almofadismo, o reflexo da sua alma harmoniosa e sadia, educada na melhor cultura das ciências e das artes, disciplinada pelos métodos da moral e do direito. O seu estilo, qualquer que seja o assunto, é sempre límpido e de apurado gosto, e não o é somente no gênero literário, propriamente dito, mas ainda nos prosaicos trabalhos forenses, em que, de ordinário, o profissional apressado mais se preocupa com a dialética do que com as louçanias da forma literária.

Um dos seus memoriais forenses tem este título: – “Licantropia”, e esta epígrafe – “A usura transforma o homem em lobo”. Segue-se um índice curiosíssimo que não tenho tempo de transcrever na íntegra. Citarei sempre algumas dessas teses: “O conceito da moral na hermenêutica dos ratoneiros”; “As harpias não têm memória”; “A timidez honesta dos assaltados estimula a audácia dos assaltantes”.
E com essa psicologia, por vezes de um pitoresco paradoxal, conseguia evitar o realejo monótono dos lugares-comuns e das frases feitas, que são o suplício dos juízes, obrigados a lê-las nas razões finais ou em massudos folhetos.

Eduardo Ramos era, assim, em todos os círculos da sua vida, uma figura de pensador fora da linha vulgar. A sua filosofia está cristalizada nos conceitos que encerram os Retalhos e Bisalhos. Mas, por muito que estes valham, e mais valham ainda a graça da ironia e agudez dos seus epigramas sociais, políticos e literários, nada, contudo, me impressionou jamais tanto como esse comovente drama afetivo de “A Mãe Negra”, suprema exaltação de uma raça pelo heroísmo de amor e desinteresse abnegado de uma mulher que a representa.

É um episódio real de família, que mais parece uma combinação da fantasia para encarnar o ideal da bondade humana. Quisera reproduzir a tocante narrativa, de que foi protagonista essa mãe escrava que, por um filho emprestado ao seu seio nutriz, fez o que raras vezes chegam a fazer as mães verdadeiras.
Eis a cena final, ao receber a terna Bernardina a carta de alforria, entregue pelo bebê que aleitara:

Ela ajoelhou-se para receber a dádiva. Mas aceitou-a sem comoção. Pouco lhe importava essa liberdade que lhe não alterava a escravidão voluntária do seu incomensurável afeto por mim. Chegou mesmo a dizer que preferia permanecer cativa, para que eu algum dia a vendesse, caso o seu preço me pudesse trazer alguma ventura... Que, por isso, não desse cuidados a ninguém a mudança de cativeiro; seu novo senhor por pouco tempo o lograria... que ela em breve havia de morrer de saudades.

Nutrido de tal leite não precisava Eduardo Ramos de outros fatores orgânicos e psíquicos, além dos excelentes que tinha de herança e de educação, para ser uma alma bem formada, sensibilíssima e afetiva, tal como todos nesta Casa o conhecíamos, através das suas maneiras fidalgamente polidas. A sua poesia, aliás pouco vulgarizada, reflete todas as delicadezas da sua alma. Não foi, entretanto, de vulto a sua produção em verso; mas o pouco que escreveu foi de suave inspiração e de delicado sentimento. Aqui vão algumas quadras da “Balada”, de uma doce melancolia, em que o nosso espírito é transportado pela lenda aos tempos da cavalaria e do amor heróico:

Diz-se que, um dia, uma princesa
De altivo rosto, claro e belo,
Foi encerrada, – ai! que tristeza! –
Entre as muralhas de um castelo.
Viam-se ao longe, num rochedo,
As negras torres do solar;
Em torno o vento no arvoredo
Gemia... aos pés gemia o mar.

Foi o ciúme ou a cobiça
De acerbo amante, ou de um ministro
Que alçara a ponte levadiça
Deste reduto ermo e sinistro!...

Junto à proscrita vinha apenas,
Cheia de um bálsamo divino
E de fascinações serenas,
Um velho monge peregrino.

..................................................

Ai, quantas noites na esplanada,
Mirando os astros sonhadores,
Vinha beijá-la a madrugada
Na lividez de suas dores...

Pendiam entre as galerias,
Sob as arcadas ogivais,
Telas esquálidas, sombrias,
Faces de olhares sepulcrais,

Telas augustas, em que as tintas
Fixaram póstumos clarões,
Longínquos tons de almas extintas
De antigos condes e barões.

E a virgem prisioneira exora às sombras desses quadros venham libertá-la e oferece-lhes em troca o seu amor.
“Na minha boca, que inebria,
Vós sorvereis o amor que sinto,
Melhor que as gotas de ambrosia
Num vaso raro de Corinto...”

Diz... mas os vultos ficam mudos
– Mudos nas sombras das arcadas
Os corpos hirtos nos escudos,
Faces e mãos marmorizadas.

E continua o martírio da solidão e do silêncio, mas, de repente:

Qual era aquele som distante,
Que acorda os plátanos da serra,
De trompa estrídula e vibrante?
Sinais de caça ou sons de guerra?

E continua a balada, como as baladas. Sob um disfarce andrajoso, esconde-se um pajem de gentil aspecto. Vem da parte de um cavaleiro para libertar a princesa, mas tudo termina, como nas baladas: névoas, sonhos depois desfeitos. E assim conclui:

Até que um dia, essa princesa,
De altivo rosto, claro e belo,
Não mais foi vista – ai! que tristeza! –
Dentro dos muros do castelo...

Tive sob os olhos os originais dessa balada e das outras composições poéticas do saudoso escritor. Algumas, publicadas, despertaram aplausos, e hoje, relidas, causam ainda comovida impressão. Muitos aqui ignoravam este poeta. Não assim em Portugal, onde já em 13 de novembro de 1896, o Jornal do Comércio, de Lisboa, estampava os poemas “Caxambu” e “A Irmã de Caridade”, precedidos de um grande elogio.

Não quis, entretanto, o autor desses poemas ser um poeta integral. Deixou-os dispersos pelos álbuns de lembranças e cartões postais. Nestes últimos encontrei um arco-íris, simbolizado por uma mulher, envolvida em longo véu de duas cores: branco e azul:

Íris falou e eu falei:
– Dize, quantas cores tenho?
– Tens sete, lhe repliquei.
Hoje, olhando este desenho,
Vejo quanto me enganei...
Ó Íris, como as mulheres,
Tu tens as cores que queres...

Fechemos neste arco-íris o parêntese da poesia e tornemos à orientação do escritor e pensador.
Dissestes, Sr. João Luís Alves, e o haveis demonstrado com o brilho da palavra e irresistível lógica, ter sido Pedro Lessa um espírito conservador, a despeito de todas as aparências de um reacionário.
O mesmo afirmo eu do autor de Prosas de Cassandra, cuja fina jovialidade, em comentário a atos dos dirigentes, sempre se limitou a aparar as arestas dos excessos, nunca procurando embaraçar a ação funcional de conservação e desenvolvimento.

A disciplina era para ele “uma lei moral das sociedades humanas”, e como exemplo cristalizado, narra o episódio militar entre o Almirante Saldanha da Gama e um marinheiro incorrigível, que fora açoitado por sua ordem. Terminado o castigo, o refratário, ainda sangrando pelos lanhos do azorrague, com a boca espumante de ódio, protestou apunhalar o chefe que ordenara o tormento. Saldanha foi informado da ameaça, que partiu de uma das praças mais violentas entre as do seu comando, e ordenou que ela viesse imediatamente ao seu camarote. O marinheiro apresentou-se.

– Entra! – disse-lhe o almirante, indo fechar a porta que o deixava a sós com o insubordinado.
– Às ordens! – murmurou o marujo, com a mão direita erguida em continência.
– Faze-me a barba! – ordenou Saldanha, entregando-lhe uma navalha.
O fígaro obedeceu; mas de tal maneira a mão lhe tremia, que se deteve depois do primeiro lanço.
– Então?!
– Não posso, – explicou humildemente o estranho barbeiro: – tenho medo de amolestá vossenhoria...
Saldanha ergueu-se e cravou, no rosto do interlocutor, um sombrio olhar impávido.
O marinheiro caiu-lhe aos pés, de joelhos, beijando-lhe as mãos...

Eis a disciplina, concluiu Eduardo Ramos, no fim da narrativa, que acabo de reproduzir fielmente.
Apesar de uma qualidade tão preciosa na vida dos partidos, afastara-se da política o antigo deputado; mas, lendo as suas crônicas, cheguei a convencer-me de que ele experimentava a nostalgia dos meios políticos, em que era tão admirado e querido. Não menos convencido me acho de que, durante muito tempo, o preocupara com íntima amargura, o afastamento, em que, pela sua modéstia, um tanto altiva, e pela indiferença do meio se conservou longe desta Casa, que tantos esmeros lhe merecera nos dias incertos da iniciação. Verdade é que tanto a Academia como a Política lhe atraíram alguns epigramas sutis, o que não é de estranhar, porque elas próprias vivem de prevenção entre si, e são ambas muito combatidas. Tais hostilidades, porém, se parecem, pela sua origem psicológica e pelos seus conseqüentes, com o desdém da raposa da fábula pelas uvas fora do seu alcance.

Não sei se haverá homem de letras que recuse um lugar na política e político, amante das letras, que não tenha suas razões para aspirar a uma Cadeira neste recinto, igualmente franco a quantos forem capazes de cultivar o Belo, através de todas as atividades da existência.
Vós pertenceis, Sr. João Luís Alves, ao número dos que amam a beleza, sem a preocupação de artistas, e fazem boas letras sem a pretensão de letrados, o que vos não tem impedido de ser, como os que melhor o são, apesar da feição conservadora e severa que sois obrigado a guardar, um idealista dos bons sonhos, um devotado amante da Natureza, um cultor da estética da Vida; podendo, pois, sem o menor constrangimento, antes muito à vontade, tomar o vosso lugar, abrigado sob o nome do cantor do Evangelho nas Selvas.

É por assim pensar que a Academia vos acolheu com o seu gesto mais simpático, e eu, em nome dela, ufano do meu mandato, vos saúdo. Sede bem-vindo!