JORNAL DE TIMON: PROSPECTO
Desde a origem do mundo, o bem e o mal, em luta incessante e permanente, pleiteiam o seu domínio. Sem dúvida, os dois princípios opostos, inerentes à natureza do homem, andam sempre com ele de companhia; mas segundo as resistências e obstáculos, o favor e a indulgência que encontram, ora prepondera o mal, ora o bem, revelando-se sob aspectos diferentes, e sofrendo várias modificações, conforme os tempos e os lugares, as sociedades em massa, ou os indivíduos isolados sobre que atuam.
A história do gênero humano é a confirmação plena desta verdade.
O obscuro canto do mundo que habitamos não podia escapar à sorte comum, e a época, que nos coube atravessar, é uma daquelas em que o mal tem decidida preponderância; não principalmente o mal terrível e atroz, o sangue, o incêndio, as devastações e os extermínios, cuja narração enche tantas vezes as páginas mais grandiosas e formidáveis da história; sim o mal vil e desprezível, o lodo, a baixeza, a degradação, a corrupção, a imoralidade, toda a casta de vícios enfim, tormento inevitável dos ânimos generosos que os cegos caprichos do acaso designaram para espectadores destas cenas de opróbrio e de dor.
Timon, antes amigo contristado e abatido, do que inimigo cheio de fel e desabrimento, empreende pintar os costumes do seu tempo, encarando o mal sobretudo, e em primeiro lugar, senão exclusivamente, sem que nisso todavia lhe dê primazia, ou mostre gosto e preferência para a pintura do gênero. Ao contrário, faz uma simples compensação, porque o mal, nas apreciações da época, ou é esquecido, ou desfigurado; esquecido, quando para o louvor se inventa o bem que não existe, ou se exagera o pouco bem existente; desfigurado, quando para o vitupério se carregam as cores do mal, e ele se imputa e distribui com parcialidade e exclusão, sem escolha, crítica, ou justiça.
Timon enche a sua obscura carreira em um obscuro e pequeno canto do mundo; e apesar do pouco aviso e desacordo que devera ser o resultado do seu ódio pretendido ao gênero humano, ou pelo menos à geração presente, nem por isso ignora o que não é para todos o dizer tudo, em todo tempo e em todo lugar. A pintura dos costumes privados, que aliás demandaria um quadro vastíssimo, não entra como elemento principal no plano deste trabalho; e a razão é que numa cidade pequena, em que todos se conhecem, e todas as vidas são conhecidas, por mais que Timon se esmerasse em traçar cenas vagas e gerais, e apontasse com a intenção só à emenda e à correção, nem por isso a malevolência, e sobretudo a ignorância e o mau gosto, deixariam de nelas rastear alusões mais ou menos claras e positivas, a pessoas e ações determinadas. Assim, se não pela intenção própria, certamente pela malícia e prevenção alheia, um quadro geral se converteria numa difamação pessoal, e em vez de cenas públicas, ter-se-ia a exposição do sagrado lar doméstico. Timon pois, prudente e acautelado quanto for possível, sem renunciar de todo a um assunto tão rico, e que de si mesmo está convidado à exploração, há de nada menos empregar toda a sua atenção para evitar o perigo, e não cair em um dos vícios que mais pretende notar e repreender.
Mas o seu fim primário ficará sendo sempre a pintura de nossos costumes políticos; e como nesta terra a vida e atividade dos partidos se concentra principalmente nas eleições, transformado assim um simples meio em princípio e fim de todos os seus atos, as cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos de vista imagináveis, encherão uma grande parte das páginas do jornal. A nossa própria história nesta parte será precedida de uma breve notícia sobre os costumes eleitorais de alguns povos antigos e modernos; o leitor há de encontrar nos ditos rasgos, ações e personagens de Atenas, Esparta e Roma, matéria para sisudas reflexões e picantes aplicações; e comparando uns e outros tempos, vendo a pasmosa semelhança com que os fatos se reproduzem, depois do intervalo de uns poucos de séculos, talvez venha concluir que este velho mundo, na sua última decrepitude, torna aos sestros e desmanchos da primeira infância e mocidade.
Quando do passado lançar a vista sobre o presente, acostumado a ler diatribes apaixonadas e infiéis, encontrará pelo menos o interesse da novidade em uma narração exata e imparcial dessas cenas, ora animadas, tumultuosas, e pitorescas, ora frias, descoradas, e silenciosas como os túmulos, e onde se desdobrarão sucessivamente às suas vistas o nascimento e organização dos nossos partidos, a sua marcha, a sua queda e dissolução, as exclusões, as depurações, as ligas, as cisões, as lutas do governo e da oposição, os jornais, as circulares, a correspondência privada, os clubes, as procissões, os festins, as chapas, as listas, as urnas, as apurações, a falsificação em todos os seus graus, a calúnia e a injúria, a raiva e a violência, o tumulto e a desordem, as vias de fato, o cacete, a pedra, e ainda, se tanto é mister, o ferro e o fogo, rematando tudo pelas escolhas mais vergonhosas e deploráveis, se é que a coisa sofre o nome, e se escolhas se pode chamar o resultado das tantas infâmias, do puro acaso e do capricho.
E como consequência destas paixões delirantes, destes ódios acesos e travados em peleja formal, a degradação de todos os caracteres, a cobiça desordenada, a avidez de distinções, a ambição de cargos elevados, o furto, o roubo, o estelionato, os assassinatos, as apostasias, as traições, a difamação erigida em sistema, a miséria real rebuçada por aparatosas ostentações, o horror ao trabalho e ao estudo, a ignorância, a presunção.
Esta é a vida ordinária (ninguém pasme), regular, ou normal, como se usa chamar agora; mas para suavizar-lhe a monotonia, e matizá-la, Timon há de achar amplos recursos em todo o gênero de opressões, nas demissões, nos processos, nos recrutamentos; virão depois as revoltas, as rebeliões, as guerras civis ou, melhor, sociais; as repressões sanguinolentas e inexoráveis, a impunidade, as anistias.
O estudo e exame da nossa vida política, ou antes, da vida dos nossos partidos pretendidos políticos, e o da sua influência sobre os costumes e a moral pública e privada já é de si um assunto tão vasto como elevado, e para o qual se requeria uma capacidade e experiência, e sobretudo, um ócio e folga que o pobre Timon não tem à sua disposição; mas se lisonjear-se de que há de desempenhar, não diz já cabalmente, mas ao menos de um modo tolerável, esta grande tarefa, ousa todavia arriscar a promessa de fazer algumas considerações acerca das diversas raças em que se divide a nossa população, sobre a sua condição, índole, costumes, sobre o seu passado, e o seu porvir enfim. Será talvez oportuno explorar então alguns pontos da história antiga e moderna deste povo, pequeno e obscuro sim, se o comparamos com tantos outros, porém o maior, e o mais celebrado que pode haver, para um grego nascido e criado nas históricas margens do soberbo Itapucuru. Certas variedades, acomodadas ao espírito geral da publicação, e algumas curiosas notícias estatísticas, colhidas de documentos esparsos onde, sobre as dificuldades de se acharem, pouco desafiam a atenção, completarão o trabalho, e encherão os derradeiros números do Jornal de Timon.
O leitor perguntará agora naturalmente a que propósito este nome de Timon? Que sei eu? Esse nome, ilustrado por um dos mais belos talentos da literatura moderna, pertenceu na antiguidade a um homem singular e estranho que, azedado pela injustiça e ingratidão que com ele usaram alguns dos seus contemporâneos, votou um ódio tão entranhável ao gênero humano, e de maneira o reputava entregue aos crimes e aos vícios, que se pagava mais do desprezo que da estima dos homens. Referem-se dele muitos ditos, uns agudos e felizes, outros apenas saturados de fel e ódio. Jantando certo dia, não com um amigo (que os não tinha), mas com o único homem com quem fazia alguma convivência, exclamou este: Ó que delicioso jantar! “Certamente, acudiu Timon, se tu não participasses dele.” Alcibíades acabava de orar, e obtivera do povo a aprovação de projetos favoráveis à sua ambição, porém nocivos ao estado. Timon, que esquivava a todo o mundo, adiantou-se para ele, e tomando-lhe amorosamente as mãos “Ânimo (lhe diz) meu filho! Se continuas por este teor, breve arruinarás a república.” Em outra ocasião subiu à tribuna, e dirigindo-se ao povo que o escutava estupefato e silencioso, pelo desusado da cena: “Atenienses (exclamou), possuo algumas braças de terreno, em que pretendo edificar. Há nele uma figueira em que alguns honrados cidadãos se têm enforcado; e como tenho de derribá-la, faço aviso aos que se quiserem utilizar dela, para que se dêem pressa, e não percam um só instante.”
Estes e outros rasgos valeram-lhe a aversão geral, e o sobrenome de Misantropo. Timon (observa Barthélemy, Viagens de Anacharsis Junior) viveu em um tempo em que os costumes e as leis antigas lutavam com as paixões ligadas para destruí-los. Como se vê, as épocas de transição remontam à mais alta antiguidade. São épocas em verdade perigosas para as nações; nos caracteres fracos, e amigos do repouso, as virtudes são indulgentes e se amoldam às circunstâncias; nos caracteres vigorosos, porém, redobram de energia, e se tornam às vezes odiosas por uma inflexível severidade. Timon era homem de engenho, amigo das letras não menos que da virtude; mas azedado pelo triunfo e preponderância do crime e do vício, tornou-se tão rude de maneiras e linguagem, que alienou todos os espíritos. Alguns contendem ainda que, pelo seu zelo exagerado, perdeu ele a ocasião de contribuir para o bem; todos porém são acordes em que uma virtude ríspida e intratável ocasiona menos perigos que uma covarde e vil condescendência.
Os meus honrados colegas do jornalismo, e todos esses grandes publicistas que fatigam o céu e a terra para provar que esta em que estamos é a verdadeira época de transição, esses nos dirão se a Providência andaria bem ou mal se hoje suscitasse um novo Timon da verdadeira raça das fúrias, com que as pontas viperinas do azorrague vingador, lacerasse sem piedade os crimes e os vícios que a desonram.
De mim o digo que, sem aspirar ao renome e glória do espirituoso Timon parisiense, pois me falece cabedal e engenho para poder, não já competir com ele, mas seguir de longe o seu rastro luminoso, espero ao menos não ser acusado da feroz misantropia do ateniense. Se os meus quadros forem argüidos de sombrios e carregados em demasia, irei buscar a sua justificação no próprio jornalismo contemporâneo, onde a cada passo deparo as pinturas mais tenebrosas e medonhas da depravação e opróbrio dos nossos tempos. Toda a diferença está em que o jornalismo político denuncia o mal acidentalmente, segundo as necessidades da ocasião, em ódio deste ou daquele partido, e de certas e determinadas pessoas, imputando cada qual e repreendendo nos outros o que nega, desculpa ou atenua em si; ao passo que Timon, alheio a todas as parcialidades, tão distante do ódio e da amizade como do temor e da esperança, toma por empresa e tenção particular sua fazer uma pintura sistemática, severa e imparcial.
Timon vai escrever sem pretensões de qualidade alguma, não um livro, mas um simples jornal, e ainda menos que isso um jornal de província de segunda ordem; e todo o seu empenho será expor com singeleza e lisura o que a observação e a experiência, ajudadas de alguns poucos e interrompidos estudos, lhe têm podido ensinar. Ninguém presuma, pois, que nestes escritos pretende inculcar profundeza, ou originalidade; a primeira destas qualidades só a possuem os gênios privilegiados; quanto à segunda, aspirar a ela, com forças tão minguadas, tanto monta como aspirar a uma quimera. O mundo conta mais de seis mil anos de idade, segundo uns, e outros há que lhe dão não menos de sessenta mil. Em qualquer destas duas extremas decrepitudes, já se não pode contestar a verdade daquela famosa sentença: Nihil sub sole novum. A única invenção hoje possível consiste toda na felicidade e oportunidade da aplicação; e ainda isto mesmo não é dado a todos. Timon extrata e copia, transformando e aplicando as cópias às coisas e aos homens do seu tempo. Nada mais, nada menos.
Colherá ele, deste seu intento, os frutos que imagina, isto é, conseguirá a emenda de alguns abusos, e a correção do mal, em parte ao menos? ou pelo contrário o exacerbará, como, pela inoportunidade do remédio, tantas vezes acontece? O tempo só poderá dizê-lo; quanto ao pobre escritor, amestrado e escarmentado em tantos exemplos de jactanciosa temeridade, espírito tímido e flutuante, não ousa esperar coisa alguma com fé robusta nesta época de dúvidas e incertezas.
Quando menos, ou antes, quando muito, estas páginas modestas e humildes serão como memórias do tempo presente, em que, mais tarde, algum esquadrinhador de antiguidades possa beber uma ou outra notícia com que instrua ou deleite os seus contemporâneos.
Uma última palavra, à feição de post scriptum, para o qual muita gente costuma guardar o mais importante da missiva. Este pobre Timon, nosso contemporâneo, não possui eira nem beira, nem mesmo aquele confortável ramo de figueira que o seu ilustre homônimo, o Misantropo, franqueava com tanta generosidade aos cidadãos de Atenas cobiçosos de dar o salto da eternidade. Fica pois entendido que o seu jornal só poderá ser publicado mediante o auxílio dos modernos atenienses, que como é claro e notório ao mundo inteiro, tanto desbancam os antigos na graça, no espírito, na liberalidade, na munificência, e em todos os mais dotes que caracterizam um grande povo.
A FESTA DE N. S. DOS REMÉDIOS
A festa chamada dos Remédios é a mais popular desta boa cidade de São Luís, quero dizer, é a festa a que concorre maior porção de povo de todas as classes e condições, e a que, na variedade das distrações que proporciona, deixa mais satisfeitos os concorrentes. Em qualquer tempo merecia ser descrita e narrada em algum dos nossos jornais, com que lá por fora e mesmo cá por dentro se ficassem conhecendo e avaliando, em parte ao menos, os nossos costumes e cenas de província; este ano, porém, muito mais, por uma agradável inovação introduzida, a qual é de esperar que nos anos futuros se reproduza e aperfeiçoe, em proveito das belas-artes, e para satisfação deste pobre respeitável público, que vegeta em tamanha e tão rigorosa dieta de tudo quanto pode alimentar e deleitar o espírito, os ouvidos, os olhos, e todas as mais faculdades e sentidos da alma e do corpo.
Eu, pois, Timon, vencendo por um pouco a feroz misantropia de que me acusam, verei se faço o que outros não têm feito, e no entanto da mesma via desmentirei a abominável calúnia de que sou vítima, narrando o mais agradavelmente que puder, o que tão agradavelmente presenciei e gozei.
Já um mês ou mais antes do dia da milagrosa senhora, começa a azáfama da sua festa; as belas e os elegantes perdem o sono, imaginando nos meios de melhor ataviar-se. Que receios, sobressaltos e angústias nesta amável classe de consumidores, e sobretudo na classe embezerrada dos fornecedores, pela só demora de alguns dias na chegada dos navios que trazem no seu bojo os chapéus, as luvas, os vestidos, as quinzenas, as cassas, as sedas, as plumas, as rendas, as fitas, as flores, as pomadas, os cheiros, e todos os mais gêneros enfim que dão vida e saúde às lojas, e entisicam as algibeiras dos fregueses! Como discorrem em todos os sentidos pelas ruas e travessas, como invadem todas as lojas, as pretas, as cafuzas, as mulatas, sobraçando peças, livros de amostras, e caixas e mais caixas de dourado papelão, com que vão incessantes de um lado para outro, sem conseguirem satisfazer o gosto esquisito ou requintado das caprichosas senhoritas, a quem a emulação e a competência tornam mais difíceis e impertinentes! Os sapateiros, alfaiates, costureiras, e modistas não têm mãos a medir; e a urgente e pesada tarefa abrange ordinariamente todo o curso das novenas, e só expira com o último dia da festa. O leitor sisudo e imparcial, mormente o que tem família, terá sem dúvida e por muitas vezes feito sérias reflexões sobre esta deliciosa calamidade, e sobre as suas imediatas conseqüências em relação à economia pública e privada.
Devo, porém, declarar que no meio do geral bulício só Mr. Ory não tem sido muito incomodado; e se o assevero com tanta segurança é porque tenho estado em uma posição vantajosa para observá-lo.
Aviados ou não os preparativos, no dia aprazado começam as novenas, anunciadas a girândola de foguetes, ao estouro das bombas, a toque de zabumba, e a repique de sinos, ao meio-dia em ponto na ermida da milagrosa virgem. É de notar que no Maranhão as festas públicas, quer religiosas, quer civis ou políticas, parece que nada valem sem foguetes, sinos, zabumbas, bandeiras, e ariris, acessório obrigado de quase todas elas.
Todo o fiel católico romano sabe perfeitamente o que são novenas, e mais o nome pelo menos está indicando que são atos religiosos que se repetem nove vezes. Porém as dos Remédios têm esta particularidade, que se dividem em duas partes, a externa e a interna.
Eis a externa. O povo, sem distinção de classe e condições, aflui logo ao anoitecer de todos os pontos da cidade, e ocupa promiscuamente o largo dos Remédios, uns de pé, outros sentados em bancos e cadeiras, uns parados, outros passeando, aqueles fumando, estes devorando doces, estoutros simplesmente conversando, e alguns até engolfados em silenciosa e gozosa meditação. Cada um vestido segundo o seu capricho. E a todos a lua ilumina, o vento refresca, e a poeira incomoda sofrivelmente. Reina por toda a parte o prazer e a cordialidade, e é quase geral a efusão dos bons sentimentos.
Pelo que toca à manducação, há anos a esta parte têm os costumes sofrido uma bem sensível alteração. Dantes se improvisavam no largo doze ou mais barracas, com toldos de lona, em que os amigos da alimentação suculenta e abundante iam abarrotar-se de costeletas, lombos de porco, tortas de camarão, escabeches, guisados de peixes, e outras comidas desta feição; este ano, no largo, só deparamos com uma barraca triste e solitária. Há mais outra, a do Sr. Valença, a qual de envergonhada foi encantoar-se lá para os fundos da igreja. Nesta há cavalinhos-de-pau em que certa laia de amadores da equitação tem dado formidáveis corridas, e quedas estrepitosas e vitoriadas. A nossa progressiva e refinada civilização vai banindo esses focos de indigestões e borracheiras, e não sofre mais do que doces leves e delicados, as queijadas, os bolinhos de amor, os pães-de-ló de macaxeira, canudinhos, capelinhas, rebuçados, melindres, e suspiros, a que todo o mundo se atira, e que todo o mundo apenas rega com água pura do Apicum, salvas sempre as honrosas exceções dos fiéis cultores da antiga lei, que continuam a concorrer às solitárias e envergonhadas barracas.
Para aviar a enorme massa de consumidores de massas, uma extensa fila de doceiras circula o largo em todas as suas direções, sentadas em cadeiras, costas ao mar, a face para a multidão, e adiante de si, sobre pequenas bancas, os tabuleiros atestados de doces de toda espécie, quartinhas d’água, e a competente lanterna acesa. Estas com as duzentas lanternas produzem uma maneira de iluminação quase à flor da terra, que não é dos espetáculos menos curiosos que ali se oferecem. Não ouso sondar o abismo do consumo e devoração de cada noite; o espírito recua salteado de horror diante do cálculo; baste dizer-se que os que têm a imprudência de passar o largo, à luz do dia imediato, o encontram alastrado e sórdido dos papéis de todas as cores que envolviam os extintos canudos e rebuçados, tão deliciosamente chuchurreados na véspera. Seria conveniente que os diretores futuros fizessem remover os despejos destas pacíficas batalhas noturnas, cuja vista é bem desagradável, sobretudo ao amanhecer do dia da festa.
As doceiras de tabuleiro podem considerar-se as tropas ligeiras desta guerra gastronômica; mas além disso os particulares que moram pela vizinhança, ou que para ali se mudam nesta quadra feliz, fazem enormes encomendas de grossa e pesada munição para os seus bailes e chás; e nas lojas do palacete do comendador Fernando está assentado o quartel-general desta dulcíssima indústria. Refiro-me à confeitaria do imortal Condeixa, de que dentro em pouco me tornarei a ocupar.
Em outras lojas do mesmo palacete embestegou-se o cosmorama do Sr. Gregório; os guinchos de um estropiado realejo forcejam por atrair os curiosos, que ali, por via de regra, não costumam ser de tão boa companhia, como no palacete da rua da Paz. A entrada custa meia pataca (cento e sessenta réis).
No antigo alpendre de Nossa Senhora, e numa barraca erguida a poucos passos de distância, tocam alternadamente a música dos Educandos, e a banda de cornetas do Corpo Fixo. Nem a escolha nas peças; nem esmero na sua execução; os instrumentos parecem velhos e rachados, e estão certamente desafinados. Será prudente aplicar o ouvido e a atenção a outros objetos.
Ah o balão! Já me ia esquecendo que o balão é também um ingrediente indispensável nestas festas; e o que subiu aos ares na noite de domingo, 5 de outubro do ano da graça de 1851, foi com antecipação anunciado em todos os grandes jornais desta nossa Babilônia, como obra de uma associação de artistas, e produto de uma subscrição nacional, ou provincial... bem se vê que a coisa se tornou séria, e toma todas as proporções gigantescas de uma empresa industrial, artística e científica. Era logo depois da novena; e mal que desatado das importunas prisões o engenhoso e sublime artefato arrancou altivo e majestoso para as etéreas regiões, mil basbaques, a um tempo, e por um só movimento concertado, ergueram ao ar os olhos e narizes, e os queixos estupefatos, e manifestaram de boca aberta a glória e o prazer que os possuía, por alguns minutos de extática admiração, de confuso murmurinho, e zumbido universal. Era pra ver e admirar como na volta vinham praticando sábios e profanos sobre o memorável acontecimento! Qual notava que desta feita não tocou como das outras na torre da igrejinha, antes foi direito seu caminho; qual as centelhas que despedia, as guinadas que dava, e o rumo que tomou; qual enfim que era todo de papel branco, com bordados de verde bem no centro.
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