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Discurso de posse

Recebi, com emoção, a honra de ser eleito para a Academia. Vindo a ocupar uma Cadeira nesta ilustre Casa, participarei da linhagem dos confrades que nos precederam e dos que nos vão suceder, para cumprir sempre a missão da Academia na conservação e enriquecimento da Língua, na guarda dos tesouros da criação literária. Quando elegeis um novo acadêmico, vós lhe estais lembrando que a honra se acompanha da obrigação de corresponder à escolha. Não se chega sem deveres a esta altura. Tantos títulos ornaram os acadêmicos arrebatados pela morte e ornam os presentes, que não sei como me acomodar em sua companhia. Suponho que reconhecestes, elegendo-me, a minha contribuição às Letras Históricas, Políticas e Filosóficas, especialmente a um gênero literário, o Jornalismo, cuja prática me tomou a vida inteira. A Academia assenta sobre uma espécie de sistema não escrito, admitido, aceito, com seu código de preferências e decisões. O ritual das campanhas, os compromissos, as escolhas, esse mecanismo do sistema é sutil e complexo. Quem não lhe descobrir as combinações, para o abrir, não conseguirá vir a sentar-se no santo dos santos das Letras, a Instituição Acadêmica, esta ilustre Companhia. Sei que há exceções nessa configuração, demasiado sumária, do sistema acadêmico. Mas, na sua composição, esse é o quadro. Submete-se ao tempo o estranho ritual, exatamente como ensina o Eclesiastes. Há tempo para semear e tempo para colher. É preciso conhecer as épocas, as estações acadêmicas, das quais os membros desta Casa conservam o sigilo. Cumpri o ritual, aceitando as suas peculiaridades. Fui recompensado, aqui estou. Meus agradecimentos, senhores acadêmicos. Ocuparei a Cadeira cujo Patrono é o Poeta Teófilo Dias, da qual foi Fundador Afonso Celso, e sucessores, Clementino Fraga, Paulo Carneiro e José Guilherme Merquior.

Sobrinho de poeta, e poeta dos maiores da Língua, Teófilo Dias admirava o tio, Gonçalves Dias, mas, longe de sua terra e de seu meio, deixou-se fascinar pelo Simbolismo, que da França conquistava adesões no mundo da inteligência e do lirismo, como ideia nova. Tendo nascido em 8 de novembro de 1854, estava com 32 anos quando o poeta Jean Moreas lançou o manifesto simbolista, embora a nova poesia procedesse de anos anteriores. Sua vida, aventureira no início da mocidade, acabaria sedentária e plácida em São Paulo. Nasceu em Caxias, no Maranhão, foi, ao que consta, militar, chegando a sargento. Mudou-se para Belém do Pará, onde trabalhou no comércio, mas logo desceu para o Rio de Janeiro e, em 1878, com 22 anos, foi para São Paulo, na companhia de Fontoura Xavier. Matriculou-se na Faculdade de Direito em 1877. Um ano depois, toma parte na Batalha do Parnaso e pratica ato importante: casa-se com Gabriela Frederica Ribeiro de Andrada, filha de Martim Francisco, o II, seu protetor nos dias da extrema penúria em que vivia. O poeta entrou, portanto, numa das mais importantes famílias paulistas. Graças ao apadrinhamento do sogro, foi diretor da Escola Normal e deputado provincial de 1885 a 1886, falecendo de parada cardíaca em 29 de março de 1889, com 35 anos de idade.

Simbolista ou parnasiano Teófilo Dias? Sílvio Romero e Ronald de Carvalho o incluem entre os parnasianos. Péricles Eugênio da Silva Ramos, entre os simbolistas. Quer-me parecer que esta é a classificação acertada. Consoante Silva Ramos, sua “mescla de fluidez do ritmo, aliterações e sinestesia” apontam-no para o Simbolismo. Bastam os versos baudelairianos de Cantos Tropicais e Fanfarras para estarmos de acordo com Silva Ramos. A poesia nova, anunciada por Jean Moreas, era a mesma em que versejava Teófilo Dias. Baudelaire, seu ídolo, fora, com Rimbaud, Laforgue e outros, um dos precursores do movimento. Caracterizavam o Simbolismo, segundo Otto Maria Carpeaux, a musicalidade do verso, o preciosismo da expressão, a suntuosidade verbal, a evasão da realidade comum. Confessando-se poetas da decadência, os simbolistas desencadearam uma revolução na Arte Poética. Cito Baudelaire, o maior deles e um dos maiores em qualquer língua. Os simbolistas Cruz e Sousa e Venceslau de Queirós manifestaram afinidade com Teófilo Dias, chancelando, portanto, sua inclusão na poesia nova.
   
Sonoro mar – a música me envolve,
E em éter vasto, sob um teto amargo,
De brumas a minha alma, feita ao largo,
Para o meu astro pálido se volve.
   
Teófilo Dias mostrou-se, em sua época, entusiasta paladino da Ideia Nova, e não só em Poesia. Foi republicano, antimonárquico e antirreligioso. Estava, portanto, distante do Parnasianismo, da “torre de marfim” da Arte pela Arte. Cataloguemo-lo como simbolista.
 
Affonso Celso de Assis Figueiredo deve ser estudado por sua formação, pelo ambiente no qual nasceu e cresceu, sobretudo por sua fé, vivificada na fonte do catecismo da Contrarreforma. Católico do credo e do mandamento, inteiriçamente católico, Afonso Celso tanto se destacou na firmeza da fé, que recebeu do Papa Pio X o título de Conde da Santa Sé, numa época e numa idade histórica dominadas pelo laicismo. Se vivia Afonso Celso num país católico, onde a fé sincera do povo se manifestava, com frequência, nas cerimônias católicas, nas missas e procissões, vivia, também, num meio saturado do laicismo difundido pela França. Não hesito, portanto, em arrolá-lo entre os moralistas católicos. Seu livro mais conhecido, Porque me Ufano do Meu País, justifica a classificação que lhe entendi rotular. Comprometeram-no os termos ufanista, ufanismo. Mas Afonso Celso pretendeu, apenas, escrever um livro moralmente edificante e patriótico. Dirigido aos filhos, é singelíssimo o seu conteúdo. Noventa anos depois de publicado, está velho, nem o autor o queria sempre novo. Mas direi que se uma nação há necessitada de entusiasmo, essa nação é o Brasil. Povo ciclotímico, o brasileiro deriva, rapidamente, da euforia à depressão. Onde via tudo róseo, passa a ver tudo negro. Não lhe iriam mal, portanto, algumas injeções de ufanismo, sem dúvida modernizado, de Afonso Celso, homem fiel aos sacramentos, às penitências da Santa Madre Igreja e fiel, também, à Pátria onde nasceu e morreu.

Do livro mais conhecido, passamos a outros, alguns estudos e escritos de circunstância, reunião de artigos de jornal, como as respostas ao combativo jornalista Ferreira de Araújo. Acusando a República, usa, em defesa da Monarquia, argumentos válidos ainda hoje. Afonso Celso, que foi republicano na Monarquia, converteu-se ao Antigo Regime logo depois de proclamada a República. Deu explicação de suas atitudes no opúsculo “Guerrilhas”. Paradoxal ou não, aderiu aos monarquistas inconformados com o advento da República, neste País de fatos consumados, embora a mudança de regime, em 15 de novembro, tenha sido tão inesperada que, no Passeio Público, onde espairecia, o Conselheiro Ayres não se dera conta dos acontecimentos do Campo de Sant’Anna.

Um dos fundadores da Academia, Afonso Celso foi jornalista, parlamentar, poeta, historiador, ensaísta. Lançando-se a uma empreitada dificílima, a de escrever a biografia do próprio pai, teve êxito. No gênero biográfico, é modelo. Dá-nos a conhecer, minuciosamente, a vida do Visconde de Ouro Preto, em cujas mãos caiu o Império do Brasil. Contesta Afonso Celso que seu pai tinha sido o último presidente do Conselho de Ministros da Monarquia. Saraiva havia aceitado a incumbência de organizar novo gabinete. Mas os acontecimentos se precipitaram e, historicamente, o 36.º gabinete, o último do Império, foi presidido pelo Visconde de Ouro Preto. Afonso Celso, dedicado brasileiro, amou sua terra e sua gente.

Sucedeu a Afonso Celso o médico, professor de Medicina, sanitarista e humanista Clementino Fraga. Sempre me fascinou a Medicina. Em anos longínquos de minha infância e adolescência, em pasmada cidade do interior paulista, bem me lembro do médico de família, levando, na visita aos doentes, a valise com os aparelhos de seu ofício. Católico, vi no pecado original, como ensinam os teólogos, contra o pelagianismo, a chave do sofrimento. Vivemos época de fé enfraquecida, não obstante a formidável presença do Papa João Paulo II, peregrino de Deus, na vasta cena do mundo, e o seu carisma no convívio com as multidões. Apesar do penoso amortecimento da fé, creio, firmemente, e com robusta certeza, que o dogma do pecado original explica, teologicamente, a dor humana sobre a face da Terra. Todos somos herdeiros de uma primeira e maior dor, como somos beneficiários da redenção trazida à Terra por Cristo. Não importa que milhões de habitantes do mundo não creiam em Deus, na Revelação Cristã e no destino eterno do ser humano. O dogma prescinde de adesões sem o amparo da graça. Numa de suas epístolas, diz São Paulo que o corpo é o receptáculo do espírito. Ensina a Filosofia da Escola que a pessoa humana é hipóstase de corpo e alma ou substância completa, dotada de natureza racional. Seu conceito tem sofrido mudanças profundas. Mas os paleoescolásticos e os neoescolásticos retomaram estudos e reflexões do passado, demonstrando os fundamentos inalteráveis da Filosofia da pessoa. Os valores espirituais foram diminuídos, embora toda uma corrente de pensamento tente revitalizá-los, enfrentando, resolutamente, o desafio da Ciência e da Técnica, ou do cientismo e do tecnologismo, que, se não forem subordinados à soberania do espírito, nos converterão em peças de sua gigantesca engrenagem.

Por mais que a Ciência tenha feito progressos, limitada, ainda, é a sua capacidade para resolver problemas psíquicos e físicos do ser humano, particularmente a Ciência Médica. Aplicando-se a defender e proteger a vida, a Medicina procura não só curar, como eliminar, ou, quando não lhe for possível, diminuir a dor. Não direi da tantas vezes insuportável dor moral. Essa, a Medicina está capacitada apenas a disfarçar com os tranquilizantes. Não a cura. Direi da dor física, para cujo combate o médico dispõe, e vai dispondo, cada vez mais, de vastos recursos. É a Medicina uma vocação altíssima, na qual só devem permanecer, como aconselha São Paulo, os para ela chamados. Clementino Fraga deixou fama de notável médico, de humanista, de cultor das Letras na sua castiça expressão, de ser humano dotado de raros atributos morais. O enfermo para Clementino Fraga era o ser criado à imagem e semelhança de Deus. Sabia o médico que a função da Medicina é linimentar a dor e prolongar a vida para a distanciar da morte. Se o nosso itinerário no mundo é balizado de cruzes, cabe à Ciência Médica estender o mais longe possível esses marcos do caminho da eternidade. Clementino Fraga cumpriu a sua vocação médica e ainda lhe acrescentou a de escritor, destacando-se nas Letras com tanto brilho quanto na Medicina. Abstenho-me de mencionar os trabalhos médicos, estritamente profissionais e técnicos, para citar os estudos sobre o bovarismo, raro no Brasil; sobre Antero de Quental, sobre o Humanismo na Medicina, sobre a vocação liberal de Castro Alves, sobre a Medicina e os médicos na vida de seu glorioso conterrâneo, Rui Barbosa. Valiosa, em todos os sentidos, foi a bagagem literária deixada por Clementino Fraga. É o seu legado, com seu alto nome na Medicina.

Na segunda quinzena de dezembro de 1955, próximo do Natal, assaltou-me a melancolia. Viúvo recente, sem filhos, nem mesmo o cargo de diretor de jornal me distraía a depressão que, ameaçadoramente, me sitiava para me assaltar. Percebendo meu estado, um caríssimo casal de amigos me convidou a passar o Natal e o Ano Novo em sua companhia em Paris, onde possuía um apartamento. Aceitei o convite. O avião que me levou não pôde, no entanto, pousar em Paris. Uma greve paralisara o aeroporto de Orly. Fomos, os passageiros, desviados para a alternativa de Bruxelas. Telefonei da capital belga aos meus amigos, avisando-os que chegaria de trem. Foram à estação me esperar. Quando desembarquei, estava com eles, na plataforma, um desconhecido. Para mim desconhecido. Após os cumprimentos, a apresentação do desconhecido. Era Paulo Carneiro. Assim começou a nossa amizade, no remoto inverno de 1955. Durante os dias que passei em Paris, encontramo-nos várias vezes, e depois, sucessivamente, sempre que eu ia à França, procurava avistar-me com o erudito amigo, mantendo, então, com ele, conversa de horas.

Paulo Carneiro foi um espírito jovial, dotado de excelente humour. Por ter vivido muitos anos em Paris, tornou-se autêntico parigot. Era gourmet exigentíssimo. Lembro-me de almoços e jantares com ele, da escolha dos pratos e dos diálogos com o sommelier sobre a appelation e o millèsime na escolha dos vinhos. Paulo Carneiro não dispunha de recursos pecuniários para manter trem de vida farto, mas era um fidalgo, um grão-senhor nos convites. Esse o lado mundano, ameno, da vida de nosso saudoso predecessor. Outro lado deve colocá-lo entre os grandes brasileiros de seu tempo: o cientista, o filósofo, o humanista. Engenheiro químico, especializou-se no estudo e aplicações do curare, veneno terrível dos índios da Amazônia. Deveu­lhe a Medicina o princípio ativo e o alcaloide, para uso terapêutico. No Instituto Pasteur, de Paris, Paulo Carneiro firmou reputação científica. Era respeitado pelo corpo de pesquisadores daquela instituição. Em todos os cargos que ocupou, Paulo Carneiro sobressaiu-se pela Cultura, pelos predicados de sua bela inteligência, pelo zelo que punha nas obras a realizar e no dever a cumprir. Num de nossos jantares, falou com paixão dos monumentos egípcios da Núbia, cuja salvação estava sob sua responsabilidade. A barragem de Assuam os submergeria. Impunha-se impedir esses crimes contra a Arte e o registro histórico. Paulo Carneiro presidiu a comissão da UNESCO, designada para essa missão; os recursos afluíram, a tecnologia foi acionada, e os monumentos foram salvos. Paulo Carneiro já foi louvado pelo meu ilustre antecessor. Lembro aqui fatos aos quais fiquei ligado pelo acaso e o convívio. Em nosso último jantar, em Paris, prolongamos a estada à mesa, dialogando sobre tema filosófico. Ele, fidelíssimo ao pensamento de Auguste Comte; eu, filiado à patrística, à escolástica e seus prolongamentos. Mas nosso diálogo não poderia ter sido mais agradável, nem mais exemplar. Deixou bem nítidas as duas posições. Para os filósofos, não há corrente de pensamento, da qual discordamos, que não contenha uma parcela de verdade. Segundo Paulo Carneiro, a humanidade entrou no estado positivo, marcado pela era tecnológica. Para o positivista, foram superados os estados teológico e metafísico, e, na realidade do antiteísmo contemporâneo, cada vez mais extenso, com a anunciada morte de Deus, a humanidade é o grande ser submetido à lei do progresso. Argumentei que o ser humano é naturalmente atraído para a divindade, nutrido de metafísica, e a humanidade, segundo Comte, uma ficção. Argumentei, ainda, que para mim, católico, o positivismo traduz-se por uma tomada de posição metafísica. Insisti que não devemos reconhecer valor comprovadamente histórico na lei dos três estados, embora concorde com a inegável realidade da conquista da Terra pela Ciência e a Tecnologia. Saímos tarde, cada qual com sua posição filosófica. Deixou-me no hotel, quando nos despedimos, como sempre, cordialmente. No dia seguinte, parti para o Sul da França. Não mais o revi. Lembro-me com saudade do caro amigo.

Pela boca do profeta Isaías, diz o Senhor: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos; nem os meus caminhos são os vossos caminhos.” Deus somente decide o nosso destino, sem que nada saibamos sobre o futuro, ainda que a Ciência tenha reduzido em muito a margem do acaso na vida. Ninguém possui a chave da incógnita da morte. Um dos grandes filósofos deste século, e filósofo católico, Maurice Blondel, incluiu no seu estudo La Pensée um capítulo sobre a metafísica da morte. Segundo o filósofo de Aix, “nenhum estudo aprofundado se elaborou, do ponto de vista filosófico, sobre a morte, não obstante a sua realidade em nosso quotidiano”. Diante do mistério da morte, somos impotentes para decifrá-la. Na sua sabedoria, ensina a Igreja a pensarmos na morte e na ressurreição. É essa, mesmo, segundo Chateaubriand, no Le Génie du Christianisme, a única licença, para a quebra do silêncio regular, concedida aos monges trapistas de Mortagne. O homem não ignora, medita Heidegger, que vai para a morte. Filósofo da angústia, para Heidegger, o ser humano não sabe o que o espera depois da morte. Para os que têm fé, espera-os a ressurreição. Os místicos cristãos veem, mesmo na morte, a afirmação da vida. Para os que não a têm, espera-os o nada, filosoficamente insustentável. Humildes, convençamo-nos dos imperscrutáveis segredos da Providência.

Por que Deus Nosso Senhor – e falo como homem de fé – chamou tão cedo José Guilherme Merquior? No prefácio de seu último livro, Roberto Campos faz a mesma reflexão: “A partida de José Guilherme Merquior, aos 49 anos, no apogeu da produtividade, parece um cruel desperdício. Deus faz dessas coisas. Fabrica gênios e depois quebra o molde.” Maurice Blondel considera a morte impensável. Não entro no amplo recinto onde caberia debater a morte como fim e como ressurreição. Aceitemos não serem os pensamentos de Deus os nossos pensamentos, nem os seus caminhos os nossos caminhos. Lamentemos que a morte tenha levado José Guilherme Merquior quando o jovem pensador se encontrava na plenitude de seu talento e muito poderíamos esperar de sua inteligência fulgurante, de sua riquíssima produção cultural, de seus estudos sobre os problemas do nosso tempo.
 
Rendo homenagem ao meu predecessor. Considero um privilégio fazer o elogio de morto galardoado de tantos méritos. Não conheci pessoalmente José Guilherme Merquior. Nunca nos encontramos. Nunca trocamos palavras. É provável que, em diálogo, divergíssemos, e divergiríamos em teses das muitas que nos preocuparam e sempre me preocupam. Mas é irrelevante cogitá-lo. José Guilherme Merquior foi devorado pela curiosidade, que, como dizia, saborosamente, Eça de Queirós, nuns leva a descobrir a América e noutros a olhar pelo buraco da fechadura. Merquior era da raça dos primeiros. Descobriu continentes. Ou os explorou com a ferramenta da sua inteligência.
 
José Guilherme Merquior, carioca de nascimento, foi diplomata, polemista, ensaísta, crítico literário, crítico cultural, numa palavra, polígrafo. A Diplomacia é uma vocação rara, pois o diplomata escolhe exílio voluntário e nele permanece longos anos. Depende a Diplomacia da arte da discrição, do uso comedido e sem ambiguidade das palavras. Escola aprimorada em longa tradição, no Itamaraty se formam os membros da carrière, com tal rigor, que nesse meio original consideram-no tão perfeito quanto o Foreign Office, o Quai d’Orsay e o State Department. Na Literatura, foram, não pouco, satirizados os diplomatas. Quem leu Proust lembra-se do Marquês de Norpois. Mas a Diplomacia é uma profissão seriíssima, especialmente no mundo contemporâneo, onde os problemas e as questões internacionais são cada vez mais complexos. Merquior foi embaixador precoce, pois tudo em sua vida foi precoce. Serviu na Secretaria de Estado, em embaixadas, foi assessor de ministros, embaixador do Brasil no México e faleceu como chefe da delegação do Brasil junto à UNESCO. Carreira brevíssima, prometida, no entanto, a outras missões, onde seus dotes culturais e o tirocínio de sua profissão se fizessem necessários. Em Londres, Bonn, México, Paris, deixou rastro luminoso da vasta soma de conhecimentos que juntou com sofreguidão.
 
Diplomata, polemista, ensaísta, crítico literário, crítico cultural. Considero difícil identificar o diplomata e o polemista na mesma pessoa. Sinto a tentação de admitir que são homônimos, tão longe da polêmica está a Diplomacia. Mas José Guilherme Merquior foi tão ágil e valente polemista quanto, segundo os colegas, perfeito diplomata. Não é polemista quem quer, mas quem pode sê-lo. Usando a velha figura do espadachim, direi que o polemista age como esses lutadores aos quais nos habituaram Alexandre Dumas, Edmond Rostand e o cinema de capa-e-espada. Com vivacidade, erudição e coragem, engalfinhou-se em debates, agitando o ambiente cultural brasileiro, sempre se impondo com donaire.

Nesta Academia, faço a imaginação trabalhar e vislumbro e ouço o fantasma do velho Machado de Assis chamar o jovem Merquior, na Sala das Sessões, pedir-lhe para sentar-se ao seu lado e aconselhá-lo à concha do ouvido – lembrou-o Josué Montello – a não se envolver em polêmicas de nenhuma espécie, para não colecionar dissabores. Sem faltar com o respeito ao venerando mestre de tantas obras­primas, o mestre que tinha horror à controvérsia, Merquior continuaria firme na ala dos polemistas. Na Academia, foram eles numerosos e destemidos. Lembro, dentre os mortos, Rui Barbosa, com esse notável exemplar do gênero, “A esfola da calúnia”; lembro Eduardo Prado, José do Patrocínio, Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Sílvio Romero, Assis Chateaubriand. Vemo-los, impávidos, caçando lugares­comuns, castigando a ousadia dos difamadores, enfrentando a prepotência dos detentores do poder, discordando de conceitos e julgamentos. Merquior foi polemista até os últimos dias de sua curta vida. Ensaísta, suas obras merecem a perenidade das estantes. Não nos deixou obra volumosa em número, mas todos os seus livros dão o testemunho de uma inteligência superior, de formação característica nos grandes centros universitários da Europa e dos Estados Unidos. Qualquer assunto de sua pena ganhava dimensão autorizada. Era citado e comentado, fosse de sua autoria o artigo de jornal, o ensaio de revista ou o livro. Fenômeno raríssimo, Merquior conquistou, sem oposição, a famosa República das Letras, na qual ocupou lugar eminente. A Academia o acolheu como um dos valores mais altos da intelectualidade brasileira. Editado, traduzido e comentado nos Estados Unidos, na Europa, na América Ibérica e, evidentemente, no Brasil, era um dos nomes mais conhecidos e respeitados da Cultura Brasileira.

Mas esse moço, que atropelou a vida, apressadamente, fazendo­nos lembrar o mito do Briareu, foi escolhido pela morte e partiu aos 49 anos. Com sua presença ativíssima na pugna das ideias, provocante como desafio, porfiou em fazer os brasileiros se atualizarem pela informação. Apegam-se, ainda, a ideologias de idade caduca, já sentenciadas à morte pela História, não poucos clérigos nas universidades, nos media, na Política. Contra eles, Merquior assestou suas baterias e os bombardeou, abatendo tantos deles e tantos deles ferindo mortalmente. Prosseguiu no trabalho que outros, mais velhos, fizeram antes, o da introdução do Brasil na esfera da Modernidade, da qual necessitamos, para superar a ignorância, vencer a pobreza e erguer a nação ao patamar das mais desenvolvidas. Seu talento, seu patrimônio cultural erigiram-no em crente fiel no poderio da inteligência e da palavra pelo êxito de sua ação cultural e a admiração que suscitou. Como os mais conhecidos escritores da Língua Portuguesa, reunidos em antologias, Merquior era dono de estilo pessoal na exposição de suas ideias. Escrevia bem. Sua língua tinha, como queria Chomsky, aspecto inventivo. Pensador, prestou inestimável e ainda de todo inavaliado serviço ao Brasil. É tal a riqueza de seu pensamento, tão expressiva a massa de suas reflexões, que devo selecionar-lhe trabalhos dos quais colho a sua dimensão, para citá-los nos limites protocolares de um discurso acadêmico.
 
Dos ensaios reunidos em Crítica, temos um Merquior de 23 anos a um Merquior de 48 anos. Um quarto de século de leituras, de estudos, de pesquisas, de meditação, de maturação, de assimilação, de depuração. Nessa longa parábola, Merquior firmou-se como analista de ideias dos mais argutos e lúcidos intérpretes dos fenômenos artísticos, políticos e sociais de nosso tempo. O primeiro ensaio da seleta Crítica, sobre a poética de Gonçalves Dias, escrito aos 23 anos, já anuncia o crítico bem instrumentado. Basta-nos a sua análise da música da “Canção do Exílio”, onde, nas suas palavras, ressoa, claramente, o motivo da obsessão com a aparência do estribilho, reforçando-se na energia com que se firmava o ritmo. Temos aí o sentido da “Canção do Exílio”. No ensaio sobre Machado de Assis, Merquior salientou o schopenhaueriano que concebe a existência como uma desalentadora oscilação entre a dor e o tédio, acrescentando que talvez só Baudelaire se compare ao nosso compatriota, na argúcia com que define os vários matizes do mal-estar moral. Sobre Fernando Pessoa, Merquior considera-o um intrépido explorador de novos territórios no eixo vital do ego, com o que o poeta se afasta tanto da revolta romântica quanto do mito romântico sem se afastar da dor universal. É uma síntese admirável do enigma chamado Fernando Pessoa. Colocando-se acima e além de modismos, Merquior fundou-se na filosofia de Kant, para quem a Crítica é positiva pelo uso prático da razão. Foi esse o fio condutor, a meu ver, da sua crítica, a Crítica Antiformalista, projetada da razão. Seus ensaios, reunidos nesse volume, o consagram como um dos maiores críticos de ideias do Brasil contemporâneo. Para ele, a Crítica deve ser independente, julgando, sobretudo, o espírito da obra.

Em O Elixir do Apocalipse, Merquior obedeceu ao modelo de Walter Benjamin, sopesando o valor dos textos literários em função de sua capacidade de iluminar os problemas da Cultura Moderna, como se nos apresentam no crepúsculo do século XX. Proclamando-se humanista, quis o Humanismo com raízes no ethos brasileiro. Daí afirmar no estudo “Gilberto (Freyre) e depois”: “Não conheço pior forma de colonialismo inconsciente, de criptomasoquismo intelectual que essa triste denegação a priori da racionalidade ao nosso espírito e à nossa cultura – como se a razão fosse um privilégio alheio, um atributo ubíquo do Norte, e não fizesse parte da nossa humanidade.”

Concordo com Miguel Reale quando diz que, em seu itinerário filosófico, Merquior se opôs ao irracionalismo de Heidegger, cujo pensamento analisou em várias passagens de seus ensaios. Em O Marxismo Ocidental, livro que li primeiramente em Inglês, por tê-lo encontrado numa livraria da Bannhoffstrasse, de Zurich, Merquior focaliza a classificação de Maurice Merleau-Ponty dentro do firmamento marxista e estuda o corpo de ideias, principalmente filosóficas, que abarcam a obra de autores tão diversos quanto Georg Lukács, Althusser, Walter Benjamin, Jean-Paul Sartre, Gramsci, Habermas. Procede o distinguo. Não há um único Marxismo, porém vários. O Marxismo de Lenin e Stalin e o Marxismo Ocidental que, segundo Merquior, nasceu no começo da década de 1920, como um desafio doutrinário ao Marxismo Soviético. O Marxismo Ocidental pinta, segundo Merquior, o movimento como uma espécie liberal ou libertária do Marxismo infinitamente mais próximo da visão humanista do jovem Marx do que da sombria política do Realismo Socialista implantado na União Soviética.

Não vou me alongar. O Marxismo é tributário da Filosofia Imanentista de Hegel, pois o absoluto imanente o domina, e nesse universo se manteve em suas versões plurais. O Imanentismo Marxista, Soviético ou Ocidental, não se abriu para a transcendência, o autêntico Absoluto que enche a faculdade apetitiva do sujeito. Historicamente, pelo seu vazio metafísico, o Marxismo é uma utopia trágica, cuja instauração e realização pagou-se com sangue e lágrimas por milhões de servos do sistema. Insisto que o Marxismo Ocidental nada mais tem sido, no seu Humanismo ateu, do que uma promessa soteriológica irrealizável. O temporalismo imanentista não garante a paz na Cidade Terrestre, não desvendando, portanto, a esperança da Cidade Celeste. Merquior reconhece e acentua que a fase criativa do Marxismo Ocidental parece esgotada, acrescentando que, em conjunto, o Marxismo Ocidental “foi apenas um episódio na longa história da velha patologia do pensamento ocidental cujo nome é, e continua a ser, irracionalismo”. Livro denso, escrito antes da derrocada do sistema comunista na Europa Oriental, mantém-se na crítica da doutrina. Tenho para mim, no entanto, que continuarão a escrever os marxianos e marxólogos, mas o Marxismo da temporalização redentora, como o quiseram seus epígonos, esse morreu. O messianismo está enterrado, seja o antigo, soviético, seja o ocidental. Enfim, o Marxismo já não empolga e, a rigor, não interessa, senão a alguns acadêmicos da História das ideias. É o que acrescento às reflexões de Merquior.

O estudo sobre Carlos Drummond de Andrade obedece à técnica rigorosa da tese universitária, que, submetida à Sorbonne, foi aprovada com distinção. Temos nessa tese o verso universo do poeta, desde o lirismo inicial do Modernismo aos últimos poemas, já tocados na ironia melancólica da vida no ocaso. Merquior analisa em profundidade a poética drummondiana, nas várias fases por que transitou, mais do que evoluiu a sua criação. De “No meio do caminho” ao “José”, do Sentimento do Mundo ao Boitempo, o universo drummondiano foi inteiramente estudado, perquirido com fascinante identificação de quem lhe assimilou a mensagem. Merquior assinalou a universalidade do poeta, obcecado sempre por suas origens. Para Merquior, Drummond foi o mais importante poeta de sua época, classificação altamente louvável em país de grandes poetas. Toda a inquietação de Drummond, repassada de lirismo, tantas vezes de lirismo irônico, não raro de lirismo prosaico, foi estudada no espaço de poética abundantemente múltipla. Em Verso Universo em Drummond, Merquior nos descerra o poeta na sua grandeza, no denso segredo de onde lhe brotou a inspiração. Na poesia de Drummond, como numa concha acústica, reboou a dor do mundo, esse mundo que, se ele se chamasse Raimundo, seria uma rima mas não seria uma solução. A tese de Merquior é definitiva e constitui peça essencial na bibliografia do poeta.

Merquior dedicou um livro a Michel Foucault, figura central, até a sua morte, em 1984, da Filosofia Francesa desde Sartre. Arguiu-o Merquior de niilista da cátedra. Foucault procurou dar fundamento ético-político, acentua Merquior, ao Pós-Estruturalismo. Não o fez. Daí o rótulo de niilista da cátedra que Merquior lhe acolcheta. Em De Praga a Paris Merquior estuda o Estruturalismo, concluindo por afirmar o diagnóstico crítico da Cultura de nosso tempo:
   
A noção de que uma profunda crise cultural é endêmica à modernidade histórica parece ter sido aceita de forma ansiosa, mas não propriamente demonstrada, sem dúvida porque, mais frequentemente, os que geralmente a aceitam, os intelectuais humanistas, têm o maior interesse em serem vistos como os médicos da alma de uma civilização enferma. No entanto, o remédio é necessário, ou a enfermidade é real? Talvez devamos reconsiderar toda a questão.
   
Não pôde fazê-lo. Merquior expõe o Estruturalismo de Lévi-Strauss, um dos maîtres à penser da França contemporânea. Discípulo do autor de Tristes Trópicos, deu-nos, nesse ensaio sobre o mestre, o depoimento de quem lhe conheceu profundamente a obra. Lévi-Strauss, que iniciou carreira universitária em São Paulo e tomou contato no Brasil com as culturas indígenas, é autor consagrado do Estruturalismo.

Em De Praga a Paris, Merquior procede à ampla análise da obra do mestre, desde logo reconhecendo que “avaliar a obra de Lévi-Strauss é tarefa difícil”. Se o Estruturalismo apresenta-se com o caráter de sistema, como acentua Lévi-Strauss, Merquior o estuda sob esse prisma, praticando o método da dissecação. Reconhecendo que Lévi-Strauss abarcava a História numa percepção ampla, dela tendo, mesmo, uma visão sombria, Merquior afirma que o mestre “acende em nossos corações algo de que necessitamos terrivelmente: uma ética goethiana do respeito”. Prosseguindo na análise do Estruturalismo e do Pós-Estruturalismo, estuda o pensamento de Roland Barthes, outro maître à penser da França contemporânea. Dedica-lhe quase tanto espaço quanto a Lévi-Strauss. Festejado em seu tempo, Barthes alçou-se a líder cultural, atraindo ao College de France ondas de entusiastas de seus conceitos, sua prosa e sua percuciente análise dos textos, dos fenômenos linguísticos, do Estruturalismo. Para Merquior, Barthes teve papel crucial no Movimento Estruturalista, pois, acentua, foi, por assim dizer, o oficial de ligação entre o Estruturalismo e o Existencialismo; foi, em suma, o modernizador da revolução literária antiburguesa.
 
Já em Jacques Derrida, Merquior zurziu o estadulho da crítica impiedosa. A desconstrução, que teve em Jacques Derrida o seu mais ilustre nome, salienta Merquior, “vem a ser um negócio bastante melancólico – a lúgubre incidência de uma época”. É difícil, como se vê, avaliar na sua dimensão total a obra riquíssima de Merquior. Daí a minha opção por excertos representativos de seus livros. Na crítica do Estruturalismo e Pós-Estruturalismo, reconhece no mestre Lévi-Strauss posição desbravadora em Ciência e um humanista com perfeito conhecimento de todas as culturas, sobretudo a do homem que polui o ambiente. Merquior fala que o relógio da História não pode ser atrasado, ao estudar o eminente mestre, aduzindo que ele se entrega ao jogo de protestar contra o Ocidente, derrubar a Modernidade e arrasar o progresso. O estudo de Merquior faz de De Praga a Paris obra de consulta necessária em bibliografia, não só brasileira como estrangeira, sobre o Estruturalismo em seus vários ramos, inclusive os divergentes.

Impossibilitado, pois, de analisar extensivamente toda a opulenta obra de Merquior, detenho-me no seu último livro, O Liberalismo – Antigo e Moderno, antecipado pelo A Natureza do Processo e O Argumento Liberal. Não é o Liberalismo – ou os liberalismos – uma causa nova, mas renovada, com os tônicos restauradores do espírito moderno. Compreendeu-o, admiravelmente, Merquior, transmitindo-nos sua visão com o livro, herdado às Letras como testamento. Dentre os maîtres à penser que mais influência exerceram no rumo do pensamento mundial, na segunda metade do século, Raymond Aron coloca-se em lugar eminente. Foi o maior e mais autorizado pregador do Novo Liberalismo, a quem Merquior dedicou a sua memória Liberalismo – Antigo e Moderno. Tem variado o conceito de Liberalismo dos séculos passados ou, mais delimitadamente, do século passado a estes últimos dias do milênio. Sua longa história suscita, portanto, uma reavaliação, para integrá-lo no mundo moderno. Não entro no exame do Liberalismo Religioso, por não me caber fazê-lo. A Igreja ainda não mudou a sua posição doutrinária, não obstante o ecumenismo pós-conciliar mostrar-se tolerante a esse respeito, e a encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II, já lhe constituir uma preparação. Excluído, pois, o Liberalismo na religião católica, vemos, na sua expressão secular, a doutrina liberal assegurar nas sociedades, quando corretamente praticada, as liberdades fundamentais que exigem a dignidade da pessoa humana. Esboroaram-se os totalitarismos sob pressão do legítimo anseio de liberdade dos povos. Quem acompanha o movimento da História, nestes derradeiros anos do século, vê-se diante da reação da liberdade como força incoercível contra todas as formas de opressão. Corporificando-se no Liberalismo político, social e econômico, as liberdades da pessoa humana deram ao poder do Estado configuração na qual a nota principal é a sua submissão ao império do direito e da lei. Falhas indigitam-se nessa conceituação. Não há negar. Mas o Liberalismo se impôs, embora possamos colocar a questão: “Qual Liberalismo?” Para Georges Burdeau, o Liberalismo é um estado de espírito, um acontecimento histórico como poder político e uma filosofia política. Todos os seres humanos aspiram à liberdade e lhe dão, mesmo, a vida em sacrifício, mas os liberalismos não são iguais.

Os vocábulos “liberal” e “liberalismo” foram deturpados. Devemos, por isso, tentar restituir-lhes o verdadeiro sentido. Se o Liberalismo político, social, econômico deve ser entendido como autonomia da pessoa e participação mínima do Estado no seu processo, cabe ao poder dobrar-se a esse princípio, cumprindo-o rigorosamente, do mesmo passo que protege nas pessoas as liberdades. Para Merquior, a miragem neoliberal de uma economia sem Estado é, literalmente, uma utopia. Concordamos. Na sociedade plural em que estamos vivendo, o Estado liberal corresponde à diversidade de juízos, opiniões, tendências e posições sociais, econômicas e políticas. Não se pode, portanto, falar de uma redução liberal a um só conceito, a uma única definição. Devemos, antes, nos conciliar em torno do vocábulo “liberalismo”, expurgando-o dos resíduos impuros que se lhe agregaram. Quando concluí a leitura do estudo de Merquior O Liberalismo – Antigo e Moderno, convenci-me de que o trabalho, redigido com impressionante massa de argumentos, com rigorosa base filosófica, autorizado suporte em autores clássicos da matéria, ainda não esgotou o tema. Se o autor não tivesse partido, provavelmente, iria, a meu ver, desenvolvê-lo em outras edições, revistas e aumentadas. Dotado de incomum capacidade sintetizadora, Merquior fez desfilar diante de nós, à leitura de seu livro, os autores que formaram e difundiram a Filosofia Liberal e sua prática, de Locke a Raymond Aron, este um autêntico sucessor e continuador de Tocqueville, mas com maior ascendência na universidade e nos meios de comunicação de nosso tempo. Bobbio, também autor de sua preferência, antigo socialista, opta por um Social-Liberalismo, no fundo uma nuança do Liberalismo, como o devemos entender em nossos dias, quando o Estado tem, definitivamente, participação normativa no processo econômico e social, como admite Merquior.

Concluindo seu estudo, Merquior expõe o que chama de inflexão nos meados do século XIX e desvio no término do mesmo século. Finalmente, nas duas últimas décadas renasceu o Liberalismo com o liberismo e seus efluentes, em economia. A corrente liberal está formada; foram-lhe soldados os elos rompidos neste século pelos totalitarismos e pelas ditaduras. Mas o Liberalismo continua plural. Pode ser salutar, pode desvirtuar-se. Devemos querer o Liberalismo substantivo, embora admitindo-lhe diversidades adjetivas. Na última página de seu substancioso estudo, acentua Merquior que, para alguns sociólogos, nossa sociedade parece caracterizada por uma dialética contínua, embora cambiante, entre o crescimento da liberdade e o impacto em direção a uma maior igualdade, de onde a liberdade parece emergir mais forte do que enfraquecida. O Liberalismo ainda não conquistou o mundo todo, nem mesmo em suas variantes. Como não nos devemos lançar em prospecções futuristas, lembremo-nos que o benefício já trazido às nações, onde funcionam as instituições liberais, anima a esperança de que a História será fecundada pelas liberdades timbradas com a sua etiqueta.

Ao lermos e meditarmos as obras de Merquior, impressionados pela riqueza das dissertações, a multiplicidade das questões examinadas, e, portanto, disputadas, como diriam os escolásticos; ao indagarmos sobre o seu fundamento filosófico, convencemo-nos de que estamos diante de uma Suma da Cultura Moderna, em vias de se formar, no melhor estilo de suas congêneres do passado, ainda que pontilhada de finíssima ironia. Se tivesse vivido para completar sua obra, provavelmente nos daria a Suma com as grandezas e misérias da Cultura Moderna, neste século XX que termina em estertores de crise da civilização.

Concordo com Miguel Reale que Merquior se orientou a partir do Criticismo kantiano, para uma visão concreta da História de Hegel, visão que ele considerava indispensável para arrancá-la do esquecimento. Foi o Criticismo idealista que Merquior cultivou. Mas o forte pensador brasileiro não se deixou imobilizar no gesso de um sistema. Original na sua Weltanschauung, Merquior enriqueceu a reflexão filosófica, trazendo-lhe contribuição própria. É o signo predominante de sua posição no panorama filosófico brasileiro. Não ficou estritamente ligado ao kantismo, nem à visão histórica de Hegel, cujo Historicismo não aceitou, como lembra Miguel Reale. Merquior foi um pensador cioso de sua independência, não obstante, independente ou não, todos, no campo filosófico, nos filiemos a uma vertente, ainda que sejamos heterodoxos, como não poucos se consideram, nas várias correntes em circulação na galáxia do pensamento. Se vivesse, quer-nos parecer que, ao elaborar o que denominamos Suma da Cultura Moderna, Merquior se inseriria na corrente fenomenológica.
 
Partindo de alguns maîtres à penser para exercer seu clarividente espírito crítico, Merquior classificou Marx de agitador de ideias, tributário de Hegel; estudou Freud e a Psicanálise; a teoria de Jung; os existencialistas, as Artes, a Nova Crítica; enfim, a maioria das questões que interessam à indagação da inteligência foram percucientemente estudadas. Houve quem dele discordasse. Sem dúvida. É o destino dos polemistas e dos debatedores de ideias. Mas seu espólio é opulento. Tombou, com a sua morte, uma das colunas da inteligência brasileira. Muito ainda teremos de esperar que outra se erga para a substituir. Esse foi o fascinante espírito a quem me coube suceder na Academia.

Nesta solenidade, para mim entre todas memorável, única em vida, cuja sombra se alonga no ocaso, saúda-me um caríssimo amigo de meio século dedicado ao diálogo, às discussões, aos debates sobre questões filosóficas. Não tem rugas essa amizade, e não oficiamos no mesmo altar do pensamento. O Acadêmico Miguel Reale e eu temos formação filosófica diferente. Mas não importa. Colocamos a Filosofia acima das filiações. O Acadêmico Miguel Reale é uma das mais altas expressões da Filosofia do Direito em todo o mundo. É preciso apelar para a imagem da rosa dos ventos se quisermos ilustrar a procedência das cartas, das consultas, das indagações que lhe afluem à mesa de trabalho de vários países e continentes. Sua teoria tridimensional do Direito é objeto de teses, de temas de congressos, de fonte de interpretação do fato jurídico, nos mais diversos institutos universitários e círculos culturais do mundo. Seu salão filosófico, pontualmente aberto em março e encerrado em novembro, é cenáculo onde, uma vez por mês, um dos frequentadores profere uma conferência que, em seguida, é debatida. É motivo de alegria ser recebido pelo eminente jusfilósofo e filósofo.

Preside esta sessão o meu velho companheiro dos tempos heroicos dos Diários Associados, o Acadêmico Austregésilo de Athayde. Uma grande aventura no planisfério da informação teve início com Austregésilo de Athayde subindo, em companhia de Assis Chateaubriand, as escadas do velho edifício do Centro do Rio de Janeiro. Levavam no bolso magra quantia emprestada por um advogado paulista, nosso predecessor, Alfredo Pujol. Compraram O Jornal. Assim nasceram os Diários Associados, cuja história está, ainda, para ser escrita. Admiro nesse bravo lutador o periodista notável, o estilista elegante do idioma, o esgrimista de ideias, o erudito das Letras Clássicas, o espírito jovem que se retempera, a cada dia, em contato com a realidade, analisada em artigos concisos e primorosos. Admiro, sobretudo no sólido Presidente desta Casa, o estrênuo idealista dos direitos humanos. Foi providencial tê-lo nomeado o Governo brasileiro para a Comissão que, em Paris, iria redigir o mais importante documento do século. Sua capacidade de trabalho assegurou-lhe a responsabilidade na redação final escorreita, definitiva da Declaração dos Direitos Humanos, segundo a qual todos partilhamos do mesmo direito, o de sermos iguais ainda que as injustiças deste mundo não tenham sido, infelizmente, eliminadas. Dou graças a Deus por ter-me premiado com essa munificência de sua bondade, a presidência desta sessão pelo Acadêmico Austregésilo de Athayde.
   
Poeta romântico, sensível, Casimiro de Abreu cantou sua terra:
   
Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha,
nas débeis cordas da lira,
hei-de fazê-la rainha.
   
Permiti que eu louve a minha terra paulista. Nesta mesma tribuna, um de nossos predecessores, Alcântara Machado, lançou a expressão que se tornou divisa do antigo patriciado de minha terra:
   
Paulista sou há quatrocentos anos.
   
Não tenho essa ventura. Vieram para o Brasil meus avós paternos no fim do século passado com três filhos menores, e meus avós maternos, no início do século, com duas filhas menores. Paulista sou, portanto, analogicamente, há 90 anos. Mas paulista somos todos quantos nos impregnamos do “espírito bandeirante”, de que falou Gilberto Freyre. Estamos certos, desde os remotos anos da nossa formação histórica, que a obra comum é mais completa do que a individual, se a estudarmos à luz da Teoria Holista de Gellner. Todos precisamos de inter-relação e a praticamos num tácito concerto. Longe de mim, animado que sou de sentimento nacional, longe de mim pretender sobrancear São Paulo às demais províncias da nossa Pátria. Cada uma delas guarda o seu tesouro cívico original, a participação no grande todo. São peças da História de que muito nos orgulhamos, pois, nas latitudes tropicais, criamos uma civilização incomparável, por seu desenvolvimento e suas notas humanistas. Venho, no entanto, lembrar a obra épica dos paulistas, como justo preito ao meu povo. Gilberto Freyre, com sua luneta de atento observador, traçou o perfil admirável do homem do planalto, o empreendedor, o criador de riqueza, o fundador de cidades, o perpétuo bandeirante, impregnado sempre do mesmo espírito que empurrou para os sertões os grandes nomes do glorioso passado de São Paulo. Acentua Gilberto Freyre, com acertado julgamento sociopsicológico, que o que permanece no bandeirismo do São Paulo étnica e culturalmente plural de hoje é, principalmente, o élan, o motivo, a condição do “espírito bandeirante”. Esse espírito subsiste no planalto, imbuindo-se de seu fluido, constante e forte, quantos vivem e trabalham em São Paulo, seja qual for sua origem e procedência. A missão de São Paulo é a de provocar emulação. Os bandeirantes partiram de São Paulo. Os empreendedores lançaram-se no risco das empresas, sem outro suporte senão o da vontade. As iniciativas, o fermento social, o choque de opiniões, as correntes políticas, o dinamismo cósmico dos paulistas estão vivos, palpitantes, em todos os ramos da atividade humana. São Paulo cumpre a sua missão, pois os paulistas são permanentemente tocados pelo espírito impalpável que os acompanha no tempo e no espaço, “o espírito bandeirante”, feito de civismo e da glória de criar para a Nação. Esse é São Paulo. Ao encerrar seu formoso discurso de posse, nesta mesma tribuna, disse o poeta Cassiano Ricardo: “Venho de Piratininga. Só não trago esmeraldas.” Também eu venho de Piratininga. Também eu não trago esmeraldas. Mas trago, e aqui a ofereço a vós todos, a minha inabalável fé paulista na grandeza do Brasil.

26/5/1992