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Discurso de recepção

Discurso de recepção por José Américo de Almeida

A POESIA ESTÁ PRESENTE

Perdemos Manuel Bandeira e vindes, Sr. João Cabral de Melo Neto, preencher esse claro com um nome da mesma grandeza.

Esta Casa sempre amou a Poesia. Passaram por aqui muitos dos grandes poetas do Brasil e ocupam suas Cadeiras alguns dos maiores.

Fala-se na decadência do verso; por sua envergadura e violência, o século XX dá a idéia de ser antipoético. E nunca se valorizou tanto a Poesia, os textos dos poemas consagrados são matéria de estudo dos cursos universitários, familiarizando a juventude com esses monumentos da expressão. E filósofos e ensaístas continuam como intérpretes dessa essência eterna.

Enquanto houver capacidade de admirar, será celebrado esse fenômeno, porque, como dizia Carlyle, existe uma veia de Poesia no coração de todos os homens.

Essas mensagens da visão e do som estarão sempre presentes no mundo do Espírito.

UMA POSIÇÃO INDEPENDENTE

Sois apontado como um dos participantes do ciclo de 1945, ponto de referência de dois afins de nossa História Literária: o modernista e o modernão.

O Modernismo fragmentara-se e esvaziara-se; já tinha condições para se repetir. Deixara, porém, o terreno desbravado para a inovação anunciada em sua fase inicial.

Nossas Letras não eram mais tributárias de escolas importadas e encontravam o equilíbrio entre a revolução e a tradição. Seriam menos intolerantes nas relações com o passado e ávidas de espaço para não se obliterar o sentido universal.

Restaurava-se ainda a estilística contra a improvisação informe.

Apesar dos laços comuns, faltou unidade a essa nova experiência.

Eram valores avulsos que não se assemelhavam. Deixaram de incorporar as características da época e não se formou também um grupo homogêneo com afinidades estéticas.

O que se deu foi o desenvolvimento natural de uma tendência.

Aparecestes então com uma poética diferente que se singularizou, como uma aventura, por suas novas formas.

Era modernidade e estilo próprio, tudo marcado pela originalidade que é uma aproximação do gênio e sobressaindo pela qualidade artística, pela seriedade e pela significação dos temas.

Ia-se ver uma literatura magra, estuante de vida. Um corpo despido que seduzia sem a ostentação do sexo.

“Que poeta é ele?” há ainda quem pergunte.

O CONSTRUTOR

Dirijo-me agora a todos os presentes.

É uma Poesia que se realiza pela Arte, a ponto de tornar-se a obra distinta do homem.

Organiza-se a forma como um processo racional. Não é uma formação espontânea; o poeta descrê da inspiração e não se julga um iluminado.

Essa aptidão para construir o verso manifestou-se cedo, mas nunca deixou de ser laboriosa. Percebe-se o drama da elaboração. Renuncia o artesão a toda facilidade e automatismo e força a cabeça para colher os frutos do tempo, modelando um corpo perfeito.

Ressalta a função da palavra com o seu significado ou seu valor conotativo. E a palavra não é tudo; o que vale é sua ordenação. E não é a procurada, mas que reivindica o seu lugar.

A técnica despoja-se do velho formalismo: é resseca e econômica, sem faltar movimento. Há algo que vibra nas entranhas do poema com uma contensão febril. Concentram-se todos os sentidos para que se produza essa pulsação interior.

Possuído do gênio da língua, o poeta constrói com instrumentos que vai transformando e adaptando. Esse material presta-lhe obediência, como se ele tivesse administrando coisa sua, para as nuanças vocabulares e sintáticas. É o domínio da linguagem com a sua carga formativa, orgânica e expressiva.

A estrutura, livre de submissões, escoimada de caturrices vetustas, é culta e pura. Condigna do seu ofício.

Não há necessidade de sinônimos, por ser tudo tão exato que só conhece uma voz. Nem recorre a comparações para se multiplicar.

O poeta não possui nenhum glossário privativo; usa a terminologia corrente, cada vocábulo com o seu compromisso de traduzir uma verdade.

E para ser original não precisa ser anárquico; conserva o espírito lógico que não se sujeita a nenhuma coordenação, nem se vincula ao episódio ou à anedota.

Patenteia-se, em suma, a aversão ao estereotipado, ao gasto e ao postiço; o poeta tem sempre sua solução.

VARIEDADE

O que mais surpreende é a variedade.

Essa estranha Poesia sempre se distinguiu pela novidade formal. Nesse plano estabeleceu-se a unidade. Com tantas possibilidades de expressão elaborou-se Arte sem nada de semelhante. Mas essa vocação procurava desenvolver-se.

PEDRA DO SONO

A estréia emerge das visões da noite.

O menino aprendera em casa a contar os seus sonhos. Daí a verossimilhança das imagens. Nem o homem dormindo seria antilógico; mesmo numa atmosfera irreal funcionaria a autocrítica.

E reponta a insatisfação do criador: cada livro seria um novo estágio.

O Engenheiro atinge a exatidão geométrica e busca o equilíbrio das linhas, que é mais ordem na expressão. Aprimorava-se, cada vez mais, a consciência da forma.

Libertando-se do abstrato, aproximou-se o poeta de uma realidade que envolvia outros problemas.

Psicologia da Composicão explica o processo. A máquina proscrevendo o subjetivismo onírico é mais inventiva.

São, por assim dizer, revisões, sem volubilidade, ao contrário, como capacidade de progredir e noção de novas perspectivas.

Até que conseguiu fixar-se no seu construtivismo e em sínteses admiráveis da técnica moderna representadas por Paisagens com FigurasUma Faca só LâminaQuadernaDois ParlamentosSerial e A Educação pela Pedra.

E aquele que começara difícil, quase hermético, evoluiu para o Realismo. Etapa que o consagrou com o “tríptico do Capibaribe” como precursor de vanguardas, conferindo-lhe ainda, pela comunicação direta, a popularidade e a glória a que tinha direito.

UMA VISÃO MAIS PROFUNDA

Intervém, de permeio, uma atividade mais profunda, sobretudo conhecimento e lucidez. É o esquema e o espírito crítico; identifica-se o rastro da pesquisa.

O poeta está preparado para essa avaliação. É quase didático na exploração de estados psíquicos e na intimidade dos fenômenos.

Há uma consciência a exercitar-se e poderá ser também o acaso que tem sua eficácia.

A meditação não inibe; carrega o verso uma ideia e cada ideia, já disse alguém, tem uma forma especial.

Uma sensibilidade discreta, mais ativa, conduz a essa atitude. Não há olhos mais enxutos. Ele se proíbe a si mesmo de emitir qualquer reflexo de sua emotividade, mas a opção dos motivos denuncia a natureza retrátil que se acanha de comover-se. Confessar-se para suas reservas naturais seria um impudor. Mas a personalidade que se omite elabora essas reflexões.

É um ângulo pouco estudado dessa complexa formação que chega a especular a Ciência experimental para formular seus poemas.

COMO O REAL SE MULTIPLICA

Sim, essa nova Poesia teve um encontro feliz. O contato com o real favorece as descobertas que se revestem de uma matéria verbal proporcionada, promovendo combinações maravilhosas.

Por mais primária que pareça a realidade, exerce-se a magia e tudo se dissolve em imagens.

A Natureza é interrogada e dá-se a comunhão com as coisas.

Não é o que se vulgariza, senão a essencialidade. Já tive ocasião de dizer. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não vêem.

E não é apenas ver.

Sem mudarem a aparência, assumem os elementos outra posição e assim se revela a face oculta.

É uma percepção imediata. O poeta não inventa; depois do desafio, o próprio mundo penetra-o, fornecendo-lhe incentivos para poder ser decifrado. Sente a pressão do

ambiente e, mergulhando além dos contornos, seleciona a substância ideal para o seu plano. Não é a simples pintura.

Gera-se uma visão inesperada para captar sensações.

O mundo real tem essa significação. Cada objeto guarda sua história e reproduz as relações.

O poeta só não distingue o ornamento e o pitoresco. E seu realismo torce a cara ao disforme, ao fétido, ao nu, às liberdades de um naturalismo indiscreto. Os cenários severos.

Sem tirar os pés do chão, está todo impregnado de seus ares natais; embora ausente com seu horror à passarela, não perde de vista o objeto.

Procura apenas um apoio nas coisas materiais. Os espetáculos naturais são convites para a análise.

E, depois de feito, não há o que interpretar; nada perde sua condição.

Prende-se o poeta a outra realidade; a objetividade não é apenas nativa. Radicou-se em terras de Espanha, afeiçoou-se à sua vida e à sua Literatura e devassou suas particularidades: a paisagem e o caráter. E uma temática com que se familiarizou, sem esquecer a identidade, como simples assimilação.

Sendo seiva nordestina, foi-lhe fácil ser hispânico.

A APROXIMAÇÃO COM O POVO

O Rio é o livro que mais caracteriza essa feição concreta.

O poeta quer compor uma prosa e é mais poeta.

Iniciara-se com O Cão sem Plumas sua inclinação humana; aqui é humanidade e geografia.

O poema narrativo depende da enumeração de elementos objetivos e não perde sua mecânica.

Retivera seus perfis e assiste ao desfile por um caminho irrevelado que atravessa também a sua vida. Vai na mesma direção, segundo diria um grande lírico, como se a linha da água passasse em suas veias.

A paisagem ribeirinha abandona a monotonia e exibe seus contrastes: o líquido fecundante e o quadro depressivo.

O curso fluvial descreve a fisiografia e dá o salto do agreste para a várzea: são dois sistemas de vida.

No fim, a cidade aprisiona a corrente formando o urbanismo das pontes.

Tudo é atual e parece imaginário, sendo apenas revisto.

A Arte que se isolara entrou em comunicação. Já não há nada vago.

Havia, desde Mallarmé, a obscuridade procurada, como um meio de resistência à compreensão. Uma impermeabilidade só acessível à elite. Tornava-se a Poesia impenetrável, porque não lhe importava a massa para quem só é receptiva sua própria realidade.

O encanto estava, às vezes, na incerteza, no desafio para a definição.

Este é um poeta que não mente. Faz de conta que não sente e expõe, no seu normal, descontraído, para não deformar.

Tocado de uma compaixão que sufoca, rememora que é viver duas vezes. Reconcilia-se com a sua origem, como quem paga uma dívida, cultivando temas nativos, sem cair no regionalismo.

Representa outra versão do Nordeste, outra imagem histórica da região obscura. Espreita as situações e estiliza o folclore para ser mais preciso.

O Drama regional que se projetara com Jorge de Lima, Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo ressurge com a inocência da poesia oral.

Morte e Vida Severina é ainda a memória ferida pelo fato físico.

Nota-se uma pobreza de frases ajustada ao ambiente e ao assunto.

Só aqui se trai o sotaque, a forma popular, sem os plebeísmos da Literatura de Cordel, guardando o sabor de suas fontes.

Exercita-se a atenção. A insistência do tema é uma evocação do homem da mata que só conhece da seca o retirante. Não se acende o fenômemo no seu raio de ação: testemunha-se apenas seu fantasma.

A figura humana de uma circunstância anormal deixa pela primeira vez de ser gregária. Não faz parte das levas que infestavam o litoral nessas perturbações climáticas.

É o poeta do coletivo e passa a ser mais ouvido. Acolhe o palco a poesia viril dando-lhe maior audiência.

Uma poesia que o romance vinha usurpando encontra a sua expressão.  É mais representativa.

Mais simpatia que protesto, mais realista que social, não responde por nenhuma função.

O engenho com que se desenvolve o auto ganha intensidade, sem mistificar. É tão fiel que o mundo todo entende suas representações.

Circula um sopro quente e perpassa uma presença especial.

O monólogo é uma palavra úmida como se fosse cuspida, mas nos encontros o diálogo emancipa-se da austeridade da forma.

Sente-se o suor da jornada e não há nada além do épico que tenta dissimular.

A Poesia popular não desdenha seu lirismo e infringe o ar solene, na hora dos presentes, que, de tanta fidelidade local, cheira a música rústica.

Dá-se a fusão do poema medieval com o cancioneiro nordestino, caracterizando-se o estilo por sua fluidez, sem nenhuma negligência.

A frase que se repete vai mudando de sentido; a repetição é o grito que se eleva numa escala afirmativa. Mas não há lamentos nem cóleras; a tragédia reside na cena que é uma maldição da Natureza.

 

O GRANDE TÍTULO

Sr. João Cabral de Melo Neto, peço-vos perdão de não ter podido traçar vosso perfil literário usando a técnica com que fizestes o levantamento da vida de vosso antecessor. Assis Chateaubriand ocupou sua Cadeira, nesta noite, de corpo inteiro, enquanto estivestes na tribuna, graças à precisão com que foi reconstituída sua figura numerosa de realizações e de comando. E o título que mais importa, nesta hora, para caracterização de sua carreira, é o que pusestes em relevo – o do grande escritor que se fez homem de imprensa, aclamado e temido, para ser ainda maior, nas variações do seu ofício.

6/5/1969