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Discurso de posse

Senhor Presidente,

Senhores acadêmicos,

que minhas palavras iniciais sejam de admiração por aqueles que fazem da Literatura sua Arte maior.

Picasso dizia que há dois tipos de artista: “Aquele que faz do sol uma simples mancha amarela, e o que de uma simples mancha amarela faz o sol.” Creio que escritor é quem transforma manchas amarelas em sóis: tanto é iluminado quanto ilumina. Tem luz própria. O escritor sabe, como Shakespeare, que palavras sem pensamento não vão para o céu – não alçam voo.

Deve, então, haver uma intimidade entre o pensamento e a palavra, de tal maneira que esta, plena da força do pensar, possa se fazer bela e acordar os homens, o mundo. O escritor é capaz disto: através da palavra, possibilitar o acesso ao belo da vida, à beleza essencial que habita o coração de todos os seres, de todas as formas.

A beleza é uma forma de verdade ou será a própria verdade? Julgo só ser possível atingir a verdade a partir do belo.
 
Acredito que nada é mais difícil do que conceituar a beleza. Parece-me impossível defini-la, enquanto sinto tão fácil reconhecê-la quando a vejo.

A beleza das formas belas leva à consideração das almas belas. O belo das almas impulsiona a contemplação da beleza. Desta, ao reconhecimento do belo da Ciência, até que se chega ao oceano da Beleza que, em seus múltiplos aspectos, permite conceber belos discursos e pensamentos. O espírito, elevado, toma posse de uma sabedoria única – a da Beleza, a do conhecer o “belo em si próprio – perfeito acordo entre conteúdo e forma”. 

É esse acordo que a Academia faz aparecer a cada momento, tornando a palavra mais bela, o pensamento mais lúcido, o sentimento mais profundo.
 
Nasci em Belo Horizonte, filho de Antônio de Campos Pitanguy, humanista e cirurgião geral, e de Maria Staël Rabello Jardim. Guardo de meus pais uma lembrança tão viva que não consigo falar deles no passado. Meu pai, entusiasmo e alegria. Minha mãe, sonho e harmonia.
 
Belo Horizonte, cidade cheia de árvores e de um ar muito puro. São recordações que ficaram muito presentes – de uma rua que se inclinava para cima, uma casa grande num quintal cheio de mangueiras e uma biblioteca do lado direito de quem entrava, ocupando nobre área. É ali que me lembro mais de meu pai, junto de minha mãe, para nos contar coisas à noite, despertando nossa curiosidade para o mundo.

Em Minas, dentre tantos outros amigos queridos, estavam Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulinho Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Paula Lima, Marco Aurélio Matos. Gostávamos muito de ler e tínhamos nossos sonhos literários; eles continuaram no caminho das Letras, enquanto eu trilhei o das Ciências Médicas.

Eu me sentia dentro de um círculo de afeto, onde o ar, povoado pelas ideias e pelos sonhos, se deixava perfumar com o aroma das árvores em flor e de um jasmineiro, perto da escada. Os mesmos sonhos de minha mãe, que fora criada num ambiente de amor, elevados valores morais e de uma refinada intelectualidade, característica da Diamantina do princípio do século. Este amor e valores universais ela os transmitiu aos filhos. Aos seus cinco filhos. ela ensinou que não se pode viver sob o Signo do Medo e muito menos sob o Signo da Morte e, para expressar esta sua máxima existencial, ela nos citava o imperador Marco Aurélio:

TUDO FAZER, TUDO DIZER, TUDO PENSAR
COMO UMA PESSOA QUE A CADA INSTANTE
PODE DEIXAR A VIDA.
   
Minha querida mãe está aqui a nosso lado, presente com seu espírito jovem, e, ao lado dela e de todos nós, meu querido pai.
 
Fomos criados na certeza de que as pessoas não morrem – “ficam encantadas”: se elas deixam em torno de si uma aura de bondade, esta continua se refletindo como se estivessem presentes. Sem dúvida, este momento de amizade, esta festa de espírito e coração, pertence muito a eles: a meus pais; a meus irmãos – Ivan, Yvette, Yedda Lúcia e Jacqueline; a minha querida Marilu – doce companheira de jornada – e a nossos adoráveis filhos – Ivo, Gisela, Helcius e Bernardo.
   
Senhores acadêmicos,
   
vossa generosidade, recebendo-me como companheiro nesta Casa – tendo eu a vos oferecer apenas a minha intensa e, por vezes, quixotesca luta pelo Ensino e pela difusão do ramo da Medicina que abracei – é homenagem que recebo com humildade e alegria. Humildade na alma e alegria no coração.
 
Vós, que cultuais o saber e a perfeição da forma através do exercício do gênio, me ensinastes a cultivar o constante respeito à força criadora da palavra, veículo do pensamento – vida –, harmonia e estética.

A palavra cria elos para a memória coletiva, define e registra referenciais imprescindíveis aos processos histórico-culturais da humanidade, principalmente neste final de século, quando a revolução científica e tecnológica parece ameaçar certos valores do espírito, em seu avassalador e vertiginoso relativismo.
 
Mas o culto à inteligência, à sensibilidade e à memória dos grandes vultos que iluminaram a humanidade com seus passos, seus questionamentos e revisões nos faz prosseguir na procura de ideias novas, na busca de outras formas, cada vez mais harmoniosas, de convivência social, no exercício crítico do pensamento individual e na identificação da criatividade em seus diferentes aspectos formais.

Penso que qualquer conhecimento pressupõe a responsabilidade de sua transmissão, para que ele não venha a se estagnar, quebrando o ciclo histórico da memória coletiva. Os mecanismos de troca, o intercâmbio permanente e franco, tornam o receber tão importante quanto o dar. E, nesse processo de entrelaçar tempos e conquistas, a palavra, obstinadamente, vai, ao mesmo tempo que representando o realizado, tecendo as utopias.

   
Senhores acadêmicos,

recebo com viva emoção a honra que me conferistes, mas observo que esta Casa, em sua tradição de Cultura, vem abrigando médicos bem mais ilustres do que eu.
Como sabeis, a Medicina é muito absorvente, como já o disse aqui Deolindo Couto:
   
Tendes, agora, o médico, que não poderia disfarçar a quase exclusividade de sua condição e nem jamais pretendeu fazê-lo, escravizado, como é, a uma atividade, no seu egoísmo, dominadora. Rejubila-me testemunhar que a Academia, sensível à influência das várias correntes do pensamento e da expressão, preserva, contudo, normas inseparáveis da sua essência, entre elas a de recrutar elementos nas diversas áreas culturais.

A sólida cultura humanística e científica de Carlos Chagas, amigo tão querido, impressiona-me hoje, como há tantos anos passados, quando eu, ainda estudante, o conheci na Praia Vermelha.
 
Carlos Chagas, quando embaixador na UNESCO, desempenhou missão de relevante importância para o desenvolvimento da Ciência no Brasil. Exerceu com brilhantismo, durante dezesseis anos, a Presidência da Academia Pontifícia de Ciências, para a qual fora nomeado por Sua Santidade o Papa Paulo VI. Carlos Chagas deu ao nosso País posição universal, sem perder a simplicidade e a doçura próprias dos grandes homens.
 
Sua generosidade pode ser sentida, percebida em todos os aspectos: no lado familiar, no culto aos amigos. A seu lado, a figura extraordinária de Annah: juntos fizeram de sua casa um fórum de amor e amizade. Este lado familiar resplandece em todos nós que temos o privilégio do seu convívio.
 
Fiel à grandeza de sua tradição familiar, transmitiu e transmite a seus discípulos a importância da continuidade do Ensino para a consolidação da Pesquisa Científica. A ele, toda uma geração de pesquisadores deve não só a formação, mas também o entusiasmo pela Ciência.
 
Quero ainda me referir a Afrânio Coutinho, que, embora dedicando seu talento exclusivamente às Letras, é também médico diplomado desde os 20 anos de idade. E, se tivesse Afrânio exercido a Medicina, teria, certamente, emprestado à nossa profissão brilho igual ao que sempre trouxe e continua a dar à Literatura.

Os progressos da Ciência, assegurando uma vitória cada vez mais forte da inteligência sobre o mundo material, se traduzem por uma espécie de ascensão na direção do Espírito, ligada a uma tendência profunda da evolução da vida.
 
Por certo, como já dizia Pasteur, “pouca Ciência afasta o homem de Deus; muita, o aproxima”.
   
Senhores acadêmicos,
   
homens sábios e pródigos na difusão de seu saber me precederam nesta Cadeira que ora passo a ocupar. Se, por sua grandeza, deles me distancio, a eles me liga íntima e profundamente o mesmo desejo de transmitir nossos conhecimentos, nossas verdades.

A História de um povo ou de uma nação não é feita, apenas, com fatos e ilações, mas sobretudo com exemplos. Exemplos que uma geração recolhe nas gerações precedentes, para acrescer a esses paradigmas as suas próprias lições, com espírito de continuidade harmoniosa – disse Josué Montello.
 
Continuidade, diria eu, no respeito preservador, mas também na defesa da liberdade criativa e enriquecedora que faz o conhecimento prosseguir além das fronteiras encontradas.
   
Senhores,
   
José Bonifácio, o Moço, é o Patrono da Cadeira 22. Escolheu-o Medeiros e Albuquerque, um dos idealizadores desta Academia, guiado pelo entusiasmo e pela coragem cívica desse grande brasileiro, em sua luta eloquente pela permanência dos ideais de liberdade, deixando-nos clara sua veneração por aqueles que conservam até o fim, erguida e soberana, a bandeira de seus ideais.
 
Castro Alves sentiu arder em José Bonifácio, o Moço, a mesma chama que lhe inspirava o verso, ao ouvi-lo, junto com toda uma plêiade de outros jovens, entusiasmados pelas causas progressistas que nosso Patrono corajosamente defendeu, com brilho, até a morte.

A redenção de toda uma raça motivaria Castro Alves a um brado de revolta, dirigido a outro Andrada:
   
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!
   
Medeiros e Albuquerque foi convicto adepto da República. Seu hino de louvor é a prova concreta de seu entusiasmo e admiração pelo movimento renovador. A multiplicidade de seus interesses proporcionou-lhe uma vasta temática, consolidando seu talento de escritor, de político e de jornalista.

Foi educador criativo e divulgador de ideias e acontecimentos de seu tempo. Seu espírito pioneiro tornou vivas entre nós as inovações ocorridas na Literatura mundial, como as obras de Verlaine, Rimbaud e Mallarmé.

Era curioso, obstinado, não se deixando levar por uma ideia sem interrogá-la, sem pesquisá-la mais a fundo. Na Europa, se interessou por Medicina, não tendo nem o hipnotismo escapado à sua curiosidade. No Brasil, foi o precursor da doutrina de Freud.

Humberto de Campos descreve-o como escritor irreverente e infatigável,
   
apaixonado pela vida moderna, pelo progresso, pelas atividades vertiginosas do século. Seria incapaz de louvar um jangadeiro que viesse do Ceará ao Rio, ou um andarilho que atravessasse o Saara, porque, no reinado do avião e do automóvel, lhe parecia idiota que alguém fizesse menos, quando todo o mundo fazia mais. Tinha a coragem, hoje rara, de voltar-se contra a multidão e contrariá-la unicamente para ficar de acordo consigo mesmo.

Medeiros e Albuquerque buscava, no fervilhar da originalidade, o ponto central da construção de seu pensamento. Representava, na concepção de Miguel Osório, o artista que, diante de um universo muito explorado, procura fazer algo de novo, de original.

Senhores,
   
ao evocarmos Miguel Osório de Almeida, encontramos toda uma vida dedicada à Ciência e ao Ensino. Um homem cujo humanismo, no dizer de Barbosa Lima Sobrinho, “não era aquele do Renascimento, preocupado com a restauração de velhos modelos, mas sim um humanismo universal, fundado na convicção de que o progresso da humanidade deveria resultar de uma colaboração mais íntima de todos os espíritos sobre uma base de sentimentos comuns”.

Sua experiência e sua reflexão foram sempre orientadas pela necessidade compulsiva de apreender os fenômenos da Natureza.

Miguel Osório iniciou sua vida profissional com o irmão Álvaro, num laboratório montado em sua própria casa. Carlos Chagas, que os considera, a justo título, os pioneiros da Fisiologia no Brasil, conta-nos como os dois irmãos eram diferentes:
   
Álvaro era sisudo, pouco afável, ainda que tivesse a boa educação dos homens brasileiros que ainda recebiam a aragem da Corte Imperial; possuía extraordinária memória – que só apresentava quando necessário – e uma invejável cultura biológica. Miguel Osório, ao contrário, era jovial, de grande atração, seja pela aparência física, onde seus olhos claros combinavam com o seu sorriso alegre –, seja de suas intervenções.
   
Tendo assistido Miguel Osório pronunciar uma conferência sobre o cérebro no Palais de la Decouverte, em Paris, Carlos Chagas comenta o entusiasmo de um cientista francês que lhe disse nunca ter ouvido uma exposição tão clara em um Francês tão perfeito.

Sua obra científica foi fecunda e mundialmente conhecida, tendo sido laureado com o Prêmio Sicard da Faculdade de Medicina de Paris pelo trabalho “Teoria da Excitação ou Estado de Excitabilidade Nervosa”.

Miguel Osório, em seus Ensaios, Críticas e Perfis, entre outras figuras, traz-nos a de Axel Munthe. Se, por um lado, Miguel Osório se identifica com Axel Munthe, como fino observador da natureza humana, por outro, mantendo sua consciência crítica, observa que no grande escritor e médico sueco a emoção impediria conclusões científicas mais frias e consolidadas. Em Axel Munthe, se sente a margem da indecisão, a faixa imprecisa que mal a separa do sonho, fundo de misteriosa penumbra, os pontos claros, cercados de um halo brandamente iluminado.
 
No Adeus da Academia a Miguel Osório, Austregésilo de Athayde enfatizou que:
   
este homem de ciência, entregue aos labores da pesquisa, era, ao mesmo tempo, um escritor dos mais interessantes da nossa atualidade literária; [...] no convívio acadêmico, nas sessões privadas do Petit Trianon, revelavam-se plenamente a cultura de Miguel Osório, os recursos de sua inteligência apurada no conhecimento das Letras nacionais e estrangeiras, o seu gosto pela suave ironia, o nível superior do seu espírito.
   
Senhores,
   
nesta Cadeira, sucedo com grande humildade à extraordinária figura de Luís Viana Filho.
 
Era Luís Viana Filho governador da Bahia, quando tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Guardo, até hoje, indelével, a impressão que me causou. Senhorial e afável, sua maneira suave e firme deixava transparecer a profundidade do espírito desse incansável trabalhador da ideia e da forma. Personalidade difícil de ser definida, não pela falta, mas sim pelo excesso de qualidades.
 
Pouco antes deste encontro, eu havia recebido um precioso legado de uma legítima representante da linhagem real africana iorubá. Refiro-me à Mãe Senhora, cuja dignidade atraiu para o candomblé artistas e intelectuais encantados pela beleza e magia de sua pessoa.

Jorge Amado, que se achava presente, assim relembra, com carinho e amizade, este acontecimento:
   
Já não recordo a data precisa, não posso garantir quantos anos já se passaram – uns vinte, quem sabe? O tapeceiro Genaro de Carvalho, grande artista da Bahia, Obá de Xangô no terreiro de Axé do Opô Afonjá, por fim entregou a Ivo, na presença de Nair e Marilu, o colar enfiado e lavado por Mãe Senhora, para ser usado pelo Ogan, quando fosse confirmado. Aconteceu na Casa de Alagoinhas, em Salvador, casa de Zélia, minha e de nossos amigos. Creio que Ivo ainda possui o colar de Mãe Senhora, que Genaro lhe pendurou no pescoço, cumprindo o compromisso. Uma oferenda do povo, bela e mágica.

Brasil, terra cheia de magia, feita de seus habitantes anônimos de ontem e de hoje – de sua população miscigenada e dos sincretismos religiosos – da mistura dos heróis universais com nossos mitos acirrados de brasilidade – de seus poetas, seus sábios e seus homens públicos que com seus pensamentos e ações escreveram nossa História.

Se, na dimensão poética, se inscreve o sonho, o voo, é na História que se configura a consciência de um povo.

Por certo, disso sabia Luís Viana Filho, que, professor de Direito Internacional, jamais abandonou o hábito da pesquisa histórica, apesar de sua intensa atividade legislativa e executiva, que sempre exerceu com a grandeza própria dos verdadeiros homens públicos.

Seu fascínio pelo ser humano e seu mundo interior levaram-no a enveredar pelo universo da biografia. “Nada – disse Luís Viana Filho – interessa tanto ao homem quanto o próprio homem, que continua a ser a medida e a razão de tudo”.

Identificando-se com Rui Barbosa, em seu ideal de liberdade, e com as admiráveis personalidades de Nabuco e Rio Branco, reuniu-os, mais tarde, neste marco da historiografia brasileira que é a obra sobre estes três estadistas.

O grande biógrafo por certo considerou que, se o homem é a sua História, a Pátria é feita por seus homens.
 
O valor isolado de cada uma dessas biografias cresce e se multiplica, quando as tomamos em conjunto, como resultado do entrelaçamento dos destinos que Luís Viana Filho estabeleceu ao estudar as vidas de três figuras, que animadas pelos supremos ideais de Justiça, Paz e Liberdade, dedicando suas existências ao engrandecimento da nacionalidade, marcaram nossa História.
 
Conduzidos pelo estilo refinado de sua narrativa, sempre assentada em pesquisa laboriosa e na busca incansável da exatidão histórica, os leitores dessas verdadeiras obras de Arte vivem e respiram os ares que cercaram as quadras turbulentas da vida nacional, na segunda metade do século passado e no começo deste século: nossas reiteradas intervenções no Prata, a Guerra do Paraguai, a Abolição, o ocaso da Monarquia, o advento e os primórdios da República, as irresolvidas questões de fronteiras, nas quais Rui, Nabuco e Rio Branco atuaram e inseriram, de maneira gloriosa e imorredoura, suas participações na História pátria.
 
Poucas nações poderiam envaidecer-se de apresentarem, contemporaneamente, uma tríade de estadistas de tamanha fulgurância e excelsa magnitude, segundo nos ensina Mestre Viana em sua admirável trilogia.

Luís Viana Filho incluiria em sua galeria de homens públicos a importante biografia de Castello Branco, mas sua multiplicidade de interesses o fez também nos revelar a vida de três grandes escritores – Machado de Assis, José de Alencar e Eça de Queirós. Trouxe-nos, ainda, Anísio Teixeira, o notável educador que marcou nossa geração.
 
O biógrafo deve ter, antes de mais nada, a capacidade de admirar: é isto que lhe confere dimensão. Luís Viana Filho, ao recriar seus personagens em sua força de vida, elegeu aqueles que sua sensibilidade instintivamente acolheu.

Montaigne já dizia que a admiração é o fundamento de toda filosofia, “revela a alma despida de egoísmo. A alegria de encontrar na grandeza do outro não parcelas da própria grandeza, mas da condição humana”.

Luís Viana Filho ama e admira o ser humano, o que demonstra, uma vez mais, quando escreve sobre a vida de Machado de Assis: tão explicado e tão inexplicado, surgindo em época e lugar surpreendentes, com uma originalidade e grandeza espantosas. Um Machado múltiplo, um Machado de alma inteira. Leva-nos a percorrer em suas páginas o cotidiano de Machado, as inquietudes conjunturais e estruturais de seu espírito e o processo de transferência de suas contradições pessoais para seus personagens. Avesso a situações e a climas polêmicos, Machado, com sua obra, suscita controvérsias, e, com Brás Cubas, chega a causar perplexidades e indagações hamletianas.

   
O que é Brás Cubas?

Machado, como lembra Luís Viana Filho, definira esta obra com as palavras de seu personagem maior: “Obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica, nem destrói, não inflama, nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos que apostolado.”

Mas, apesar disso, Capistrano de Abreu, tanto como Hamlet, vacilava no julgamento: Que era Brás Cubas? Para Luís Viana Filho, era a floração do desencanto.
 
Machado, perplexo com a inaceitação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quer abandonar a pena; entretanto, no prólogo de uma nova edição admitia: “Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos.” Por certo, vinha da vida, disse Luís Viana Filho.

Surge Dom Casmurro ao despontar do nosso século.

“Que era Dom Casmurro?” – pergunta Viana.
   
Certamente uma experiência proustiana de Machado em busca do tempo perdido que, ao envelhecer, como um Fausto malogrado, tentara restaurar na velhice a adolescência. Desta busca do tempo perdido, emerge Capitu, possivelmente a maior dos personagens femininos de Machado. E ele, tal como Bentinho, não alcançara “atar as duas pontas da vida”.

Flor de sombra, Machado, recatado, viveu tentando esconder-se nos romances que lhe deram a glória. Talvez por isso tenha sido frequentemente julgado sem generosidade, acreditando-se ser ele apenas frio e indiferente dissecador de almas, que não provara o leite da bondade humana. Esqueciam-se da face oculta, na qual se abrigou o verdadeiro Machado de Assis, compreensivo, tolerante, pronto para perdoar, sensível ao sofrimento humano.
   
Luís Viana Filho, em A Vida de José de Alencar, preferiu, ao invés da análise literária, trazer-nos o romance, cujo personagem principal é o próprio José de Alencar.

Não se depreenda, porém, deste comentário, que tenha Luís Viana Filho romanceado. Ele, como em suas outras biografias, foi o mesmo pesquisador rigoroso e incansável. Mas foi também o escritor que, ao narrar os fatos, o fez com graça e desenvoltura.
 
Conta-nos que Machado de Assis jamais esquecera o dia em que conheceu Alencar: “A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária; creio agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine a ver passar Napoleão.”

Nunca mais eles se separariam. A admiração continuou, porém sem o olhar mítico de outrora, permitindo a Machado captar toda a grandiosidade humana de Alencar:

Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. [...] nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente da história local. Outros o fizeram também; mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima.
   
Ao revelar-nos Eça de Queirós, Luís Viana Filho o faz com uma tal cumplicidade que nos deixa transparente como lhe deve ter sido prazerosa a leitura do mestre do Realismo Português.

Também, qual de nós não se deixou algumas vezes se envolver pelas páginas impregnadas de sua ironia cáustica, por aquele seu jeito espirituoso com que, ferinamente, retratou a sociedade pequeno-burguesa, satirizando seus valores socioculturais?

Quem dentre vós não se lembra daquele seu ceticismo quase agressivo e de sua ousada Linguagem, saboreadamente adverbial na fixação das situações sociais e dos personagens?

Sim, por certo foi também muito agradável a Luís Viana Filho a leitura de Eça de Queirós, e, ao recriar sua figura, ele o fez sem dissociar do escritor o ambiente que o envolvia, levando-nos a conviver com Eça na Inglaterra, na fria e escura New Castle, na sua adorada e borbulhante Paris, onde Eça desempenhara suas funções de cônsul.

O biógrafo recorda a posição de Eça no caso Dreyfus, deixando-nos bem definida a luta contra a alienação, a hipocrisia, o obscurantismo: “Eça participa de todos os movimentos e se posiciona, corajosamente. Acompanha o pensamento político e literário em todo o mundo.”

Apoiando-se em narrativa de Olavo Bilac, nos conta que “Eça de Queirós sabia de cor o incomparável delírio de Brás Cubas e gostava de declamá-lo pausadamente, com inflexões estudadas”.

Mas, incansável, Luís Viana Filho deixa-nos ainda um último e precioso legado: a biografia de Anísio Teixeira, seu amigo fraterno.

Ao contextualizá-lo, transmite-nos sua própria contemporaneidade, que é a de todos nós, relembrando-nos, portanto, fatos que testemunhamos na luta heroica deste grande homem simples, que manteve sempre o entusiasmo pela formação dos jovens, aos quais dedicou toda a sua vida.

Conta-nos que, desde o Governo de seu pai, quase nada se fizera no campo da Educação na Bahia. “Anísio sacudiu-a com a fé de um missionário”.

Inicialmente, elaborou amplo projeto, transformando em Lei, em 1925, para modernizar e ampliar o Ensino, cuja filosofia contrariava a Escola única então em grande voga. Enquanto em São Paulo se defendia a alfabetização em massa, este projeto tratava de inserir qualidade no objetivo meramente quantitativo.

A divulgação do Conhecimento, do Ensino, foi também grande preocupação do meu antecessor. E, em Anísio Teixeira, Luís Viana Filho deixou transparente esta sua preocupação. A Anísio interessavam muito forma e o conteúdo a serem transferidos aos estudantes. Suas ideias sobre Educação nortearam e continuam a orientar, até hoje, nossos educadores.

Anísio Teixeira, em seu discurso sobre a função da Universidade, pronunciado no Rio de Janeiro em 1935, enfatiza que o objetivo da Educação é formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva. Difundir a Cultura humana com inspiração, enriquecendo e vitalizando o Saber no passado com a sedução, a atração e o ímpeto do presente.

Anísio levou suas ideias para todos os fóruns em que esteve presente, procurando continuamente uma Educação de qualidade, deixando em seus pares a certeza de que, em sua figura amena, havia a inequívoca força dos grandes lutadores. Isso podem certamente testemunhar Deolindo Couto, Abgar Renault e Josué Montello, seus companheiros no Conselho Federal de Educação. Luís Viana Filho traz-nos o belo testemunho de Montello sobre Anísio Teixeira:
   
Ele não meditava para falar: a própria fluência verbal era em si o ato de pensar, com a palavra gerando a frase ajustada à lógica de uma estupenda ordenação expositiva. Era como se estivéssemos diante de uma forja incandescente a abrir-se em faíscas. E tudo aquilo era novo, com a força da criação definitiva.
   
Senhores,
   
intensa foi a busca de Luís Viana Filho para trazer à perenidade a lógica dos fios perdidos da História.
 
Em sua gestão à frente do Governo do Estado da Bahia, teve atuação coerente com sua personalidade de pesquisador da história do seu povo.

Guardião implacável dos marcos e traços do passado, resguardou da destruição um dos mais importantes engenhos do Recôncavo – o Engenho Freguesia – com capela e casa conjugados, remanescente do Ciclo da Cana-de-açúcar. Para preservá-lo, criou o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, onde, com riqueza de material etnográfico, inscreveu uma síntese das mudanças pelas quais veio passando a Bahia desde a época do descobrimento até nossos dias. Abriu-o à visitação pública, deixando assim que o povo compartilhasse desta lição de História.

As manifestações artísticas mais importantes nas Artes Plásticas, Luís Viana também reuniu e tratou de preservar, deixando-as expostas para que muitos pudessem, através de sua apreciação, conhecer a Arte, e Arte feita pelos artistas baianos.

Criou bibliotecas no interior e a grande Biblioteca Central do Estado da Bahia, para a qual doou valiosa coleção dos sermões do Padre Antônio Vieira, fazendo gravar, na placa comemorativa de sua inauguração: “Construída para preservar e aprimorar nossa cultura, esta biblioteca será permanente instrumento a serviço da Democracia e do desenvolvimento. Somente os povos que amam os livros aprendem a amar a liberdade e ambicionar o progresso.”

O espírito universal de Luís Viana Filho permitiu-lhe conduzir à vida política seus méritos de intelectual, demonstrando, com sabedoria, como é possível a ambas as atividades caminhar em harmonia.

Se a vida pública ensinou-lhe coragem e eloquência, mostrou-lhe também como sabiamente abster-se de entusiasmos excessivos, brotados da emoção de um só acontecimento. Vivendo os fatos em sua sucessão, discernia-os com a lógica de sua inteligência analítica, a um só tempo, como observador e coparticipante da História Política Contemporânea, jamais se afastando do homem de Cultura. O escritor Luís Viana Filho deu a seus heróis um profundo toque humano.
 
A querida Rachel de Queiroz, que tão bem sabe penetrar o reino das palavras, resgatando-as em seu vigor poético, assim nos fala de Luís Viana Filho:
 
Luís conseguiu fazer biografias de uma grande perfeição de fatura, de uma grande dignidade de composição e de, principalmente, uma grande riqueza de informação, sem chegar jamais ao minuendo, à insinuação malevolente e sem também chegar ao exagero das biografias laudatórias, que são, em geral, abomináveis, porque partem daquele parti pris, a favor, que sempre incompatibiliza o leitor.
   
Mestre Viana retirou da convivência com a história de seus biografados o lado mortal, finito. Mas, certamente, guardou e transmitiu o infinito do legado de cada um deles. Ao analisá-los, percorreu os vários platôs que seus heróis habitavam; juntos, galgaram a longa espiral da vida e, ao conhecê-los, tão intimamente, delineou com exatidão seus perfis.

A biografia torna possível ver-se o homem na escada da História. Ao olhar de Luís Viana Filho, jamais faltou a argúcia dessa mobilidade. Não lhe escapou, também, na vida pública, a necessidade de mover-se – avançando e recuando como fazem os rios que buscam a imensidão dos oceanos – para transformar em realidade as utopias que projetou.
   
Senhores acadêmicos,
   
o ramo da Medicina que abracei coloca-me face a face com o ser humano em busca permanente de identificação com sua própria imagem.

Em contraposição à ortodoxia universal da forma, as diferenças de raça e de Cultura geraram, na pluralidade geográfica e temporal, a diversidade conceitual estética.

Cada raça possui seu próprio conceito de beleza, que sofre mutações com as idiossincrasias e filosofias de cada época. E, ainda dentro de uma mesma raça, cada ser humano tem seu próprio conceito, conforme seu temperamento, cultura e sensibilidade, a determinar sua forma particular de perceber, conceber, de sentir o mundo, de raciocinar e julgar.

Por maior que seja sua compreensão de harmonia, de beleza, o cirurgião está diante de uma grande limitação quando comparada à do pintor, do escultor e do poeta, para os quais o espaço não está restrito em relação ao que sua criatividade pode traduzir. Somos escravos da forma e da anatomia e muitas vezes sentimo-nos frustrados, pois, lidando com o ser humano, o acrescentar e o retirar estão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que à nossa força criativa.

Além de enfrentarmos tais limitações de ordem anatômica, encontramo-nos diante de um ser que pensa, que se interpreta – que escolhe seu Deus.

O ser humano é o seu corpo.

Seu corpo é sua forma de estar no mundo.

A expressão corporal indica, tanto ao cientista quanto ao artista, os movimentos da anima.

A energia, envolvida em todos os processos vitais, segue seu trajeto natural, através do labirinto hermético do corpo, até encontrar um obstáculo.

A quantidade de energia que um indivíduo usa e o como ele a usa denunciam-no e se refletem na sua personalidade. Também é assim nos processos sociais e psicossociais.

Captar os bloqueios energéticos – soluções de continuidade em seu necessário fluir – e resolvê-los é tarefa por vezes difícil, mas sempre necessária.

Como na análise do corpo político-social, também os estudiosos do indivíduo – em seu complexo psicossomático – buscam arrancar da natureza humana alguns de seus segredos.

Como o pintor prepara sua tela, suas tintas, o escultor sua pedra, devemos preparar o ser antes de nele intervirmos.

O corpo lúcido toma iniciativas, inclui-se na decisão. 
    
Senhores,
   
hoje, quando os meios de comunicação promovem a difusão da informação de maneira agudamente intensa e extensa, mesmo populações assentadas nos mais ermos locais são atingidas em seus núcleos, onde, antes, eram guardados intactos seus conceitos próprios de vida. E a informação, porque excessiva e vertiginosa, interfere na percepção e na emoção e se infiltra como um elemento de ruptura das estruturas conceituais do grupo, gerando sonhos impossíveis. Tal fenômeno cria no indivíduo o desejo de ser semelhante não mais a seu próximo, mas sim a este ou àquele grupo, cuja supremacia econômico-cultural lhe impõe sua própria imagem.

Entretanto, o que há de mais extraordinário, de mais belo no ser humano, é a diversidade, é sua pluralidade estética. Na sua longa caminhada desde os tempos mais remotos até os dias de hoje, o homem sempre procurou a identidade com o seu par, com sua tribo, com seu grupo social.

Ele jamais desejou ser diferente, na medida em que tal diferença implicasse distanciamento do seu grupo. Sua conceituação de beleza esteve sempre mais ligada à semelhança com os seus pares; nas características pertinentes, e seu núcleo encontrou maior harmonia.

A experiência adquirida, lidando com pacientes de vários núcleos, latitudes diversas, grupos sociais distintos, me ensinou que o sofrimento é o mesmo: o ser humano é um só, e o bem-estar, na sua intimidade, não é apenas a consequência do sentido de saúde orgânica, é muito o sentido de conviver em paz e tranquilidade com a sua imagem.

Não poderia, com essas convicções tão verdadeiras, deixar de ressaltar o que julgo ser o mais importante em toda a nossa carreira: o ensino e a divulgação de nossa especialidade, formando profissionais capazes de levá-la aos mais remotos territórios do nosso País e de tantos outros no mundo, tornando-a mais acessível a todas as camadas sociais.

O campo do conhecimento que escolhi encerra uma finalidade transcendente, que é a tentativa de harmonizar o corpo com o espírito, a emoção com a razão, visando estabelecer um equilíbrio interno que permita ao indivíduo reencontrar-se, reestruturar-se, para que se sinta em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca.

Luís Viana Filho viveu em plena harmonia com os valores mais elevados de nossa época. Por sua dignidade humana, pela dimensão de sua obra, pelas lições de desprendimento e devoção à causa pública, representa estímulo constante à preservação dos mais nobres ideais de vida.

Luís Viana Filho legou-nos essa lição de inteireza: a medida exata, sem excesso ou falta.
   
Senhores acadêmicos,
   
agradeço a honra que me haveis concedido, recebendo-me nesta Casa, onde a harmonia e o espírito convivem na força de vossos ideais.
   
Muito obrigado.

24/9/1991