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Hipólito da Costa

NARRATIVA DA PERSEGUIÇÃO

Não obstante tudo quanto eu tinha lido e ouvido sobre a Inquisição, julgava que os procedimentos deste Tribunal não tinham já aquele caráter de crueldade, nascida da ignorância do Direito criminal de seus Ministros, e da insaciável cobiça de se aproveitarem dos bens alheios, a título de confiscação, e esperava eu que o meu processo findaria com brevidade, lisonjeando-me com a esperança de uma sentença que, fosse qual fosse, me seria grata, só por me ver livre do horror de um cárcere solitário, em que jazia sepultado por tantos meses.

Mas devo confessar, para que sirva de escarmento aos mais, a minha credulidade pueril, esta esperança de achar no S. Ofício brandura, clemência, ou brevidade de processo, em nenhum outro fundamento se estribava, senão na voz popular, que apregoa em toda a parte de Portugal, que o S. Ofício está muito mudado, que já se não praticam as crueldades que antes se faziam, porque o Tribunal é composto hoje de ministros iluminados com os novos escritos, que têm melhorado a Jurisprudência criminal, executam com discrição o novo Regimento, que lhe foi dado por El Rei D. José. Mui vergonhoso me é, porém é verdade, haver eu acreditado, contra o testemunho do mundo sábio e literato, um rumor popular, sem refletir ao menos que este rumor podia ser espalhado pelo artifício dos Inquisidores, que tiveram arte para difundir, em todos os tempos, opiniões dirigidas aos seus fins, e interesses, e de as conservar em crédito por mui dilatado tempo; tais são, por exemplo, os ridículos contos que espalharam acerca dos judeus, e que irritaram contra estes homens toda a Nação, ao ponto de que consentia tranqüilamente que os inquisidores se enriquecessem com os bens das suas infelizes vítimas, sem que ninguém atentasse na injustiça dessas transações; adiante terei ocasião de dizer mais alguma coisa sobre este Tribunal, em geral, por ora continuarei o fio da minha narração, que melhor demonstra o estado atual do S. Ofício, do que todos os raciocínios que se podem fazer a este respeito.

O Inquisidor achava-se, na audiência, com outro padre, que servia de escrivão, ou notário, segundo a sua frase; e começou as perguntas, as quais notava ao escrivão, que as escrevia, inquirindo-me o nome, pais, naturalidade; depois, se tinha recebido alguma violência da parte do familiar do S. Ofício que me conduzira à prisão e se sabia por que causa estava ali preso. Advertiu-me que eu estava no Tribunal mais justo e misericordioso que havia sobre a terra, mas que para obter da sua piedade o perdão dos meus crimes, era necessário que confessasse, de moto próprio, todos os crimes que tivesse cometido, sem omitir cúmplices, fautores, ou circunstância alguma; que esta confissão devia ser imediatamente feita; porque era aquele o momento mais favorável que tinham os presos da Inquisição, visto que, se para o diante confessasse o que ao princípio ocultasse, já não experimentaria a mesma benignidade.

Disse eu ao Inquisidor que, sendo preso pela Polícia por ter ido a Londres sem passaporte, e não se me fazendo sobre isto perguntas algumas, e só sim sobre o haver-me introduzido na Ordem da Framaçonaria, me dava este procedimento lugar de conjecturar que o motivo de me achar preso na Inquisição era o ser eu Framaçom, que se este era o crime de que estava sendo acusado, me achava disposto para o confessar, tanto por ser verdade, como para obter a piedade, e misericórdia, que ele Inquisidor me prometia, mas que se eu me enganava nesta conjectura, e os crimes de que era acusado eram outros, houvesse por bem de os declarar, para eu responder a ele o que fosse justo. Retorquiu o Inquisidor que louvava muito a minha determinação, mas que me tornava a admoestar com muita caridade, que examinasse bem a minha consciência, e não deixasse de me acusar de tudo o que tivesse feito em todos os períodos da minha vida; que eu tinha cometido crimes da competência daquele Tribunal, e que disso estava acusado; que me lembrasse da sua advertência, que o acusar-me eu a mim mesmo era sumamente importante para a salvação da minha alma, desencargo da minha consciência, e bom despacho da minha causa; e que ele Inquisidor, por me fazer mercê, me tornava a remeter para o meu cárcere, para me dar tempo a examinar a consciência. Eu disse-lhe que o maior favor que me podia dever era abreviar a minha causa, porque havendo estado preso de segredo seis meses, estava com a saúde de tal modo arruinada, que nenhuma outra coisa me importava mais, que ter uma sentença, a fim de me ver livre do tormento, de maneira que, por mais rigorosa que a sentença pudesse ser, era na minha opinião preferível ao cárcere solitário em que me achava, e com tais circunstâncias que caminhava para uma destruição inevitável, tanto mais temível, porque acabava definhando-me pouco a pouco, e morrendo lentamente.

Reconduzido ao cárcere, veio o Alcaide dizer-me que a bondade dos senhores Inquisidores tinha concedido que além da ração ordinária se me desse para almoçar o copo de café, e, além disto, em atenção à minha moléstia, se me daria cada dia algum vinho. A ração ordinária, de que me falavam, consta de meio arrátel de carne cozida, que na verdade vem sem osso, como se costuma dizer, mas como o osso que lhe tiram entra no peso do meio arrátel, vem alguns dias a porção a ser limitadíssima; mais algumas colheres de arroz; uma tigela de caldo e pão. Esta ração é cozinhada pelo cozinheiro dos cárceres, lá mesmo dentro, em ordem a poder evitar-se que pela comida se comunique algum escrito aos presos; costumam-na dar ao meio-dia. O despenseiro subministra ao cozinheiro o dinheiro necessário para se comprarem os artigos que hão de servir à mantença dos presos, e estas despesas são feitas pela tesouraria do Tribunal; e, quando se contam aos réus as custas do processo, entram também todas estas despesas do mantimento que se cobram com exação pelos bens dos réus. As únicas pessoas, porém, que têm acesso aos cárceres, e podem ver ou falar aos presos, são o Alcaide e quatro guardas fiéis dos cárceres, que conduzem os presos às audiências, e são ao mesmo tempo os algozes para dar os tormentos; estes servem também aos presos, trazendo-lhes aquilo do que hão mister, como a ração do comer, água, etc.; adiante terei ocasião de lembrar alguma exceção desta regra, mas cumpre observar aqui que estes guardas são propriamente espias que observam tudo o que se passa nos cárceres para o referir aos inquisidores, não só o que podem tirar da conversação dos presos, mas até do que veem e observam por uns pequenos orifícios praticados nos ângulos da abóbada superior dos cárceres.

Depois que me vi recolhido ao meu cárcere, para fazer exame de consciência, meditei bem em todas as palavras que se me tinham dito, e comparando-as com as relações de algumas pessoas que, sendo presas pela Inquisição, publicaram a história dos seus trabalhos, não me restou a menor dúvida sobre o fingimento das expressões que me enunciavam tanta bondade, e o tempo justificou inteiramente a minha suspeita. Conheci claramente o motivo daquele ar misterioso, com que o Inquisidor me recomendava delatar-me de todos os crimes de que me sentisse culpado; esta medida tende a excitar nos réus a desconfiança de que haverá no S. Ofício notícias exatas da sua vida, para que desta maneira amedrontados descubram coisas de que os inquisidores não tivessem conhecimento; este temor, junto às grandes promessas de misericórdia, no caso de acusação voluntária, tem sido sempre um dos mais eficazes meios que os Inquisidores empregam para descobrir da gente simples cousas, que aliás lhes seria impossível saber. Quanto a mim, tinha quase certeza moral de que não podia estar delatado de outros crimes, não era tão ignorante, que me expusesse a fazer a acusação de mim mesmo, sendo manifesto a todas as luzes, que o dever do réu é defender-se, e não acusar-se.

Passados oito dias, tornaram-me a levar à audiência, e o Inquisidor perguntou-me se havia feito exame da minha consciência, como me tinha ordenado, e se estava deliberado acusar-me sinceramente de todos os crimes de que me sentisse culpado. Respondi que das reflexões que fizera, no tempo dos oito dias, só resultava poder dizer-lhe que suspeitava estar preso por framaçom, que disso já me tinha acusado, e que ele devia saber que era verdadeira a minha acusação, pois ele Inquisidor mui provavelmente teria em seu poder as minhas cartas patentes, que naturalmente lhe seriam enviadas pela Polícia.

Replicou-me o Inquisidor que eu abusava da sua bondade em esperar, pois me mostrava contumaz em não querer fazer a minha confissão voluntária, que o haver eu dito que era framaçom de nada valia; e que assim me tornava a admoestar com muita caridade, que me acusasse de todos os crimes que tivesse cometido, e que fossem da competência daquele Tribunal, onde eu me achava delatado; e que me lembrasse que isso é o que me convinha para desencargo da minha consciência, salvação da minha alma, e bom despacho da minha causa; e que, por me fazer mercê, me tornava a remeter para o meu cárcere, para me dar tempo a fazer melhor exame de consciência, e refletir mais no que tanto me importava.