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Franklin Dória (Barão de Loreto)

 

                  FADÁRIO

O poeta, primeiro, preludia

Sons fugitivos de um viver sem dor:

Colhe sonhos gentis na fantasia;

         É o doce cantor.

 

Ama o céu, e o mar, e a natureza,

Essa eterna epopeia do Senhor;

Ama, sem escolher, qualquer beleza;

         É o doce cantor.

 

Ao depois, o poeta se desprende

Do formoso jardim, no qual viveu:

Sua alma agora vivo lume acende;

         É o cantor do céu.

 

Para o amor da mulher achou estreita

A terra, em que inocente adormeceu;

Para mundos etéreos se endireita;

         É o cantor do céu.

 

Voltou depressa, que encontrou espinhos,

Julgando achar esplêndidos troféus:

Sentou-se sobre o marco dos caminhos;

         É o cantor de Deus.

 

E, solitário, co’olhar aflito

Fitado lá na abóbada dos céus;

E nas faces o pranto do proscrito...

         É o cantor de Deus.

                                                                                      (Enlevos, 1859.)

                          ESTUDO SOBRE JUNQUEIRA FREIRE

Vi pela primeira vez a Junqueira Freire em uma ocasião memorável para mim: foi por volta do ano de 1852. Eu me achava como pensionista no colégio de S. Vicente de Paulo, um dos estabelecimentos de educação mais perfeitos que a capital da Bahia tem tido. Festejava-se o padroeiro do colégio, o santo daquele nome, grande benfeitor da humanidade. Havia concorrido à solenidade um bom número de convidados, entre os quais o venerando arcebispo Marquês de Santa Cruz, sob cujos auspícios o colégio se fundara.

O vasto salão da capela, pitorescamente decorado, em pouco tempo encheu-se dos piedosos hóspedes e da turba de estudantes de todas as classes, os quais de contentes não cabiam em si. Eram de ver-se aqueles grupos de velhos, moços e meninos, unidos todos no doce pensamento do culto externo.

De um desses grupos, entretanto, destacava-se a figura melancólica e insinuante de um frade. À primeira vista as rugas que lhe sulcavam o rosto emprestavam-lhe uma idade muito superior à dele, que, bem reparado, era apenas um jovem. A sua fisionomia tinha um ar particular de tristeza que a distinguia da fisionomia dos demais circunstantes, ao passo que sua fronte elevada fazia adivinhar não sei que tesouros de inteligência escondidos em sua alma. Era um bela fronte, que parecia moldada para a coroa de louros do gênio e para a coroa de espinhos do mártir. Seus olhos pardos, um tanto fundos, não deixavam de ter uma expressão de nobre altivez, e o seu brilho quase vítreo deveria ter-se amortecido por efeito de longas vigílias ou de longos prantos. Faces profundamente cavas, nariz eminentemente aquilino, feições cobertas de uma palidez de cera de tocha, a contrastar-lhe com a negridão das vestes talares, eis mais alguns traços do esboço deste retrato, tirado de memória.

Sabem agora quem era o frade a quem me referi? Era Junqueira Freire.

Havia poucos meses antes professado na ordem de S. Bento, à qual pertencia o diretor do colégio, o erudito e virtuoso frei Arsênio da Natividade Moura.

Concluída a cerimônia, este me apresentou a Junqueira Freire, e assim nos aproximamos um do outro.

Não tardou muito que nos tornássemos amigos. Ambos tínhamos nascido sob o mesmo céu azul; ambos atravessávamos essa quadra em que os corações facilmente se procuram e se identificam, por força misteriosa dos sentimentos que transbordam; ambos, em uma palavra, éramos atraídos pela admiração e pelo entusiasmo em torno do sagrado lar da poesia, cujas chamas o abrasavam. Mas quem o diria? a morte bem depressa veio separá-lo de mim, partindo a cadeia de ouro do nosso afeto.

Desde então avaramente guardo a saudade que me deixou, e consolo-me da perda que sofri repetindo seu nome.

                                                      [...]

                                                            (Estudo sobre Junqueira Freire, 1868.)

                               REALISMO E IDEALISMO

Ora, de todos os princípios estéticos o que, por assim dizer, serve de base à teoria da arte, refere-se ao objeto da arte ou à maneira de concebê-la.

O objeto da arte é assunto sobremodo controvertido; de sorte que desde tempos remotos, a começar de Platão até hoje, não teve ainda solução definitiva.

No meio, porém, das divergências podem assinalar-se duas opiniões principais, a que as outras mais ou menos se prendem. São opiniões exclusivas e opostas. Uma faz consistir a arte na imitação da natureza ou da realidade exterior: é o realismo. A outra contempla a arte com a interpretação da natureza pelos meios mais expressivos, ou como a representação ideal do belo: é o idealismo.

Conforme o realismo, a arte deve reproduzir tudo o que ela é capaz de imitar na esfera de natureza. Neste sentido tem o mesmo valor para ela o belo ou o feio, a virtude ou o vício, o bem ou o mal; julga legítima a expressão de tudo isto; tudo isto põe patente, sem exceção do que o pudor costuma encobrir, e a delicadeza afastar dos olhos, não duvidando até preferir ao espetáculo do belo a exposição das mais extraordinárias deformidades.

Quem para logo não percebe que, assim compreendida, a arte em vez do puro sentimento do deleite, causará tédio profundo, acompanhado muitas vezes de asco?

De suas combinações ela sem dúvida não exclui elementos contrários ao belo; mas não os emprega, senão pela necessidade de estabelecer contrastes, destinados a realçar-lhe os efeitos. A tal necessidade, portanto, os restringe; só na proporção exigida por esta os aplica, à maneira de um recurso transitório, acidental.

O que de si mesmo é feio, hediondo, por melhor imitado que seja, não logra tornar-se agradável. Não pensavam assim Aristóteles e Boileau; mas, se a presença de uma figura revestida de forma artística, apesar da sua fealdade, influi no ânimo certo prazer, não é pela recordação do original, mas pela admiração do talento que soube executar semelhante obra, dando-lhe uma expressão estética superior.

Logo, portanto, que a arte se empenha em revelar toda a casta de deformidades, físicas ou morais e, com sacrifício do belo, as acumula sem conta nem medida, certamente falseia o seu objeto, atraiçoa a sua missão.

Entretanto o realismo, imitando sem seleção os objetos da natureza, de mais a mais os translada integralmente, com o rigor de fidelidade de uma tradução literal.

Mas a arte se tornaria supérflua, se com efeito estivesse adstrita a espelhar a crua realidade. A suas contrafações fora preferível a obra viva da própria natureza.

Depois, se a conformidade do objeto imitado com o respectivo modelo bastasse a satisfazer o espírito na contemplação da arte, então qualquer das Madonas insignes valeria menos que a fotografia de uma galante mulher; e às primorosas estátuas gregas levariam a palma essas figuras humanas que, moldadas em cera colorida, à primeira vista produzem a completa ilusão do natural.

A arte mesma se encarrega de contradizer na prática esse mecânico processo que a obriga ao papel de simples copista; porquanto a escultura, a pintura, a música, a poesia, por amor do sentimento estético, omitem nas suas produções vários pormenores que a natureza acentua, ou acrescentam outros alheios à realidade exterior.

Por tudo, pois, há mister procurar-se a explicação da essência da arte em um princípio do belo, único, absoluto, imutável, extreme das imperfeições que degradam o belo manifestado pela natureza finita. É sob o influxo desse ideal supremo que a arte procura decifrar o belo, em face do mundo exterior e do mundo moral, duplo teatro em que ele se ostenta; expunge-o de todos os acessórios inúteis, assim como lhe dá relevo aos atributos característicos; até que, debaixo de novo aspecto, o reproduz mais eloquente e encantador.

Quando assim a arte consegue o acordo da idéia e da forma, graças à inspiração espontânea do artista, que lhe imprime o selo indelével da sua personalidade, a arte longe de imitar a natureza, a interpreta do modo mais expressivo.

O idealismo se resume em semelhante interpretação; e de conformidade com ele a arte pode ser definida a representação do belo por meio de formas ideais.

Por que maneira entretanto a poesia preenche as condições gerais da arte?

A representação do belo pela poesia depende do mesmo princípio comum às outras artes. Também a poesia idealiza o mundo real e o mundo infinito do espírito; escolhe neles os assuntos de suas concepções, e as torna significativas, encarecendo-lhes tanto o sentido, como a forma da palavra rítmica sob a qual se revela.

Assim a poesia oferece ao espírito somente a verdade ideal, complexo de pensamentos, sentimentos, ações, fatos, despojados de qualquer alcance prático ou interesse positivo. Narra, mas não com a severidade analítica da história; ensina, mas avessa às fórmulas das induções e deduções científicas; discorre, convence, comove, mas sem a observância estrita dos preceitos da eloquência.

Por outra parte, nas suas narrações foge de multiplicar episódios; economiza demonstrações quando se faz didática; empresta breves discursos aos seus interlocutores; enfim, das suas pinturas elimina todas as particularidades ociosas.

Concentrada por tais meios, destaca-se a representação poética pela proeminência dos traços e contornos principais dos caracteres, das figuras, dos quadros e das cenas. Para dar-lhes vulto concorre notavelmente por seu turno a palavra articulada, já pelas galas e matizes de seu estilo grandíloquo, já pelos artifícios da versificação, ricos de efeitos de melodia e harmonia.

Apesar, porém, de ser tão naturalmente adaptada ao belo ideal, a poesia foi também invadida pelo realismo, encarnado sobretudo no romance, o qual não deixa de ser em certo sentido um produto poético.

O romance realista acaso tem a pretensão de substituir ao idealismo literário, que ele afeta confundir com as pieguices de um sentimentalismo alambicado, como se o idealismo deveras consistisse nessas ridículas abstrações de imaginações doentias.

O certo é que o romance realista parece haver-se tornado no estrangeiro, e nomeadamente em França, a forma predominante e predileta da literatura contemporânea. Naquele país tem-lhe dado aspectos múltiplos os Champlfeury, Feydeau, Flaubert, Goncourt, Zola; e já o classificaram em atenção a várias espécies, denominadas realismo burguês, imaginário, fisiológico, byroniano. Mas afinal todas estas espécies filiam-se ao tipo genérico do realismo, distinguindo-se pela análise anatômica e deslavada das misérias e torpezas humanas.

(Tese para o concurso da cadeira de Retórica, Poética e Literatura Nacional, 1878.)

                    

 ENSINO LEIGO E ENSINO RELIGIOSO

A Constituição da República descentralizou completamente a instrução primária, entregando-a aos estados, e no Distrito Federal, à municipalidade. Quase todos os estados pelas suas Constituições encarregaram expressamente às câmaras municipais o ensino primário, sem prejuízo da sua competência. O Congresso exerce a atribuição privativa de legislar sobre a instrução superior. Incumbe-lhe, ao mesmo tempo, mas não privativamente, criar, nos estados, instituições desse grau de instrução e da secundária, cujo serviço é reservado à União, no Distrito Federal, assim como animar, no País, o desenvolvimento das letras, ciências e artes. A União, enfim, à semelhança do Estado, sob a Monarquia, tem a direção suprema do ensino secundário e superior.

A sua descentralização absoluta, entretanto, já foi proposta, na Câmara dos Deputados, especialmente em um projeto apresentado na sessão de 1896. Ele determinava que os estabelecimentos de instrução superior que a União possui em alguns estados lhes fossem transferidos, e, dadas certas hipóteses, ficassem sob a direção da municipalidade da Capital desses estados, ou passassem a associações civis, formadas para fundarem e manterem uma universidade. Dispunha mais que as associações desta espécie, constituídas para o mesmo fim, e, nas associações desta espécie, constituídas para o mesmo fim, e, na falta delas, a Municipalidade do Distrito Federal, pertencessem o Ginásio Nacional, os institutos públicos de ensino superior e os principais estabelecimentos científicos existentes no Rio de Janeiro.

Evidentemente, as condições do nosso País não se prestam a semelhante mudança radical do sistema administrativo da instrução. Os estados, quanto mais as municipalidades e associações particulares, longe estão de poder dispor, como a União, dos meios indispensáveis de que precisam os altos estudos para o seu aperfeiçoamento e progresso. Em todo caso, a unidade do ensino científico, um dos elementos vitais do organismo nacional, que a República já tanto enfraqueceu; privando-o da unidade de direito, não pode ser conservada senão pela ação imediata e a vigilância efetiva da autoridade central. Tirar-lhe a legítima intervenção neste serviço de interesse coletivo, fora expor a grande cultura do espírito aos riscos do acaso, ou, pior ainda, às especulações do industrialismo.

A Constituição da República, também, proclamou definitivamente o ensino leigo, inaugurado sob a Ditadura.

Em relação ao ensino religioso, o Segundo Reinado tinha concedido a liberdade de consciência tanto quanto as circunstâncias permitiam. Havia mais de três séculos, desde o descobrimento do Brasil, que a religião católica era professada pela grande maioria dos habitantes deste País, tornando-se, afinal, a religião do Estado. Um vínculo estreito, pois, ligava a instrução e a educação ao ensino religioso; mas o ensino religioso, que, bafejado pelo sopro divino da fé, tendia a elevar o espírito a Deus, a purificar os costumes, a fortificar o caráter, não tolhia a liberdade de consciência. Apesar dele, ficara, de alguma sorte, secularizada a escola. Na sua inspeção não tinha nenhuma ingerência a autoridade eclesiástica. O professor mesmo explicava o catecismo na aula especial da escola primária, ou do Colégio Pedro II, fora das horas em que funcionavam as outras classes. Não eram obrigados a freqüentar aquela aula os alunos acatólicos. De mais, o juramento religioso, prescrito para a colação dos graus da instrução secundária e superior, foi substituído pela promessa do fiel cumprimento dos deveres inerentes ao grau. Que mais se podia querer a respeito da neutralidade religiosa da escola, quando havia uma religião predominante no Estado?

Eis que a Constituição republicana declarou que “nenhum culto ou igreja teria relações de dependência ou aliança com o governo da União ou o dos Estados.” A secularização completa da escola foi, por certo, um consectário desta separação. De então por diante, não se deveria mais ensinar na escola, mantida pelo poder público, os dogmas de uma religião particular, o que importaria dar-lhe preferência às outras. Se, porém, o ensino religioso dogmático deixou de fazer parte integrante do programa da escola, não se segue que dela tenha sido excluído o ensino das duas transcendentes verdades comuns a todas as religiões, e das quais uma é a base, e a outra a sanção da moral universal, a saber: a existência de Deus e a imortalidade da alma. É assim que entendem o ensino leigo países liberais que o têm adotado, nomeadamente a Holanda e os Estados Unidos.

Todavia, o ensino leigo, como a República o interpreta e aplica, de acordo com os que proscrevem dos domínios da ciência o sobrenatural, e preconizam a moral independente, é o ensino sem a noção de Deus e dos deveres do homem para com Deus; é o ensino que inculca ao espírito das crianças e dos jovens, que o recebem, a indiferença religiosa, ou a incredulidade. “Dos Estados Unidos copiamos, diz um honrado publicista da República, tudo o que as nossas instituições consagram, mas, por fatalidade ou capricho, eliminamos quanto lá existe em sinal de reverência e amor para com Deus.”

                                               [...]

                                        (“A Instrução”, in A década republicana, 1899.)