Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Fernando Bastos de Ávila, Pe. > Fernando Bastos de Ávila, Pe.

Fernando Bastos de Ávila, Pe.

PREFÁCIO

 

O presente estudo tem uma pequena história.

Desde meu tempo de estudante, na Universidade de Lovaina, entrando em contato com as origens recentes do pensamento social cristão, formulava-se em mim a hipótese de que, mesmo antes da difusão da ideologia marxista, estava em processo, dentro da própria tradição cristã, uma reflexão crítica da sociedade capitalista nascida da revolução industrial.

Os longos anos de magistério ativo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro não me deixaram nunca nem tempo nem lazer para verificar a hipótese que frequentemente solicitava minha atenção.

Em 1965, tive oportunidade de passar três meses em Paris, na residência dos Padres Jesuítas da Action Populaire, instituição totalmente dedicada ao estudo dos problemas sociais. Encontrei ali uma ótima biblioteca que me oferecia todas as possibilidades para encetar a pesquisa tendente a verificar a minha hipótese. Resolvi começar a estudar autores franceses, cujas obras originais, raras ou mesmo inexistentes no Brasil, eu tinha ali à mão.

À medida em que o trabalho avançava, a hipótese ia-se consolidando, até transformar-se em tese. Hoje, estou convencido de que a crítica do capitalismo como sistema global já se consumara, antes da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Todos os pontos vulneráveis do modelo tinham sido denunciados com clareza inequívoca, pelo catolicismo social. Muitos elementos integrados por Marx em sua síntese, como dados originais, de fato ele os encontrou numa corrente de pensamento que inundara o espaço cultural europeu. Antes de Marx, pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto, no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social. Até expressões habitualmente atribuídas a Marx, como a “exploração do homem pelo homem”, são encontradas ipsis litteris, na tradição pré-marxista.

É o resultado dessa pesquisa que apresento hoje ao leitor brasileiro.

Escolhi 17 autores franceses que me pareciam mais representativos do pensamento social cristão. De cada autor traduzi um texto que julguei mais expressivo de seu pensamento social. Todos os textos são anteriores a 1850. Esse ano foi adotado como limite, para garantir a ausência de qualquer influência marxista nas obras analisadas. Por outro lado porém, esse limite me impediu de incluir na coletânea nomes como o de Albert de Mun (1841-1914) que teve enorme importância na formação do pensamento social católico, mas cujos textos são posteriores a 1850.

Na seleção dos autores procurei constituir uma amostra representativa na qual aparecessem os próceres das várias tendências do catolicismo social, desde os mais conservadores até os mais avançados, passando pelos moderados que procuravam uma linha de equilíbrio equidistante dos extremos das radicalizações.

Na seleção dos textos busquei aqueles que focalizavam os problemas sociais de um dos períodos de mais profundas transformações na cultura europeia.

Para melhor compreensão dos textos traduzidos, os fiz preceder de uma biobibliografia do autor e os fiz seguir de um comentário que revela os pontos originais e os procura situar numa evolução de conjunto.

Talvez não tenha sido feliz na escolha dos autores nem de seus textos. Mas creio que, mesmo assim, a coletânea permitirá ao leitor dar-se conta de um extraordinário esforço de reflexão iniciado dentro da tradição cristã, numa época surpreendentemente parecida com a que hoje vivemos, que antecipa e prefigura muitos dos nossos problemas contemporâneos. É verdade que a história não se repete. Cada momento, cada fase, cada época, são constituídas por uma conjuntura absolutamente original e irrecorrível dos elementos que as configuram. Entretanto, há semelhanças que não são meras coincidências. Toda sociedade, na sua evolução, passa por etapas idênticas — aquelas invariantes formais de que falava Georg Simmel (1859-1918) — que permitem aos povos mais jovens aprender da experiência dos mais antigos. Tomando conhecimento dos trágicos panoramas abertos pelos escritores que examinamos, podemos hoje melhor compreender a violência das lutas que ensanguentaram a Europa do século passado que estava então, como nós hoje, em via de desenvolvimento. Os depoimentos aqui consignados assumem assim, para nós, o sentido de uma severa advertência. Nenhuma tecnocracia, por mais sofisticados que sejam os seus recursos, pode impunemente prescindir, nos seus cálculos, do preço social dos seus modelos. Toda dor se paga.

 

Formulo votos para que este livro seja lido com a mesma desprevenção com que foi escrito e que faça do leitor, como fez de mim, um discípulo atento da grande mestra que é a História.

Não posso omitir um agradecimento cordial a todos os amigos, cuja excessiva modéstia preferiu o anonimato, que me ajudaram nesse trabalho, sem cuja colaboração e estímulo não o teria levado a termo. É meu dever, entretanto, não silenciar o nome de meu querido irmão em religião, o Pe. Francisco Leme Lopes S. J., que se encarregou, com paciência comovente, da revisão crítica e redacional da obra.

                                            Rio de Janeiro, 22 de maio de 1970.

                                 (O pensamento social cristão antes de Marx, 1972.)

 

 

 

 

INGÊNUAS ESPERANÇAS

1981

 

INTRODUÇÃO

No atual momento, a sociedade brasileira em transformação apresenta desafios peculiares na ordem política, bem como nas áreas econômica e social. As desigualdades sociais e regionais constituem uma realidade particularmente triste em uma nação com aspirações e recursos que poderiam permitir a construção de uma sociedade mais justa. Tal situação não pode durar indefinidamente, pois constitui um escândalo para as consciências e um ameaça constante á paz interna. Ela não é casual, mas fruto de uma opção deliberada em favor de um determinando modelo de desenvolvimento implementado com inflexibilidade pouco sensível à grande maioria do povo brasileiro. Hoje, a garantia de maior flexibilidade política dá margem a esperanças de uma mudança também das opções econômicas e do alto preço social de nosso desenvolvimento.

 

MISSÃO DA IGREJA

A missão da Igreja é evangelizadora e de natureza eminentemente pastoral. Tal missão, entretanto, de nenhum modo a conduz a se omitir a respeito de problemas sociopolíticos do país, na medida mesma em que estes problemas sempre apresentam uma relevante dimensão ética. Esta dimensão avulta no presente momento e na atual etapa do processo de abertura política.

Entre os valores éticos que nesse momento estão em jogo, preocupam de modo especial à responsabilidade pastoral da Igreja os valores da liberdade e da justiça, da verdade e da honestidade, e, fundamentalmente, o valor da participação, sem a qual as mais generosas intenções não passaram nunca e continuariam a não passar de meras declarações retóricas ou de artifícios demagógicos.

A abertura política, a instauração e consolidação de novas instituições democráticas processam—se hoje no Brasil dentro de condições políticas muito particulares e de difíceis condições sócio-econômicas. Esse processo de democratização interessa profunda e diretamente à Igreja. A democracia, com efeito, como forma legítima de ordenação política da sociedade, é um requisito indeclinável da liberdade e da dignidade humanas defendido pela ética cristã.

A Igreja não tem ambições nem pretensões político partidárias. Ela sabe que sua palavra encontra hoje grande ressonância no povo, mas, pela natureza essencialmente religiosa de sua missão, não tem nenhuma intenção de prevalecer-se da força de sua palavra para a promoção política de seus lideres, nem para a defesa de interesses e privilégios.

A Igreja não é intérprete de aspirações partidárias nem mediadora de funções políticas. Isso não significa que seja apolítica. Ela sabe que um pretenso apoliticismo significa, na prática, uma atitude política de anuência tácita a uma determinada configuração de poder político, qualquer que ele seja.

A Igreja não aceita pois a opinião dos que pretendem reduzir sua missão à formulação de princípios atemporais. Pelo contrário, ela acompanha os homens no concreto das situações da vida individual e social, para explicitar as exigências do Reino de Deus nas condições particulares, em cada momento e em cada lugar; ela lhes revela que a adesão a Cristo exige atitudes de conversão, de abertura e de diálogo, exige mudanças no comportamento de pessoas e grupos, que se dizem cristãos, mas que toleram situações de pecado e injustiça incompatíveis com a consciência cristã.

A Igreja participa assim ativamente do atual momento brasileiro, como uma das instâncias não partidárias que defendem os requisitos éticos da nação brasileira, procurando estimular a todos os que aceitam, de alguma maneira, o Evangelho e o cristianismo e a todos os homens de boa vontade, para que sigam retamente e sem desfalecimento, na direção da plena restauração da democracia.

A sua responsabilidade consiste em recordar os valores que estão em jogo, a dimensão ética das decisões políticas, o futuro do homem, de milhões de homens concretos que se vai decidir. Os cidadãos, os grupos, os partidos, tanto os que participam do Governo como os que militam na Oposição, devem olhar para horizontes mais amplos do que o dos interesses imediatos. De outro modo, as mais hábeis fórmulas, as mais complexas definições, não poderão trazer a paz nem a verdadeira ordem política, nem a resposta às aspirações de todos os cidadãos.

 

DIFICULDADES SOCIOECONÔMICAS

As decisões políticas que todos esperam, as mudanças que delas devem decorrer, poderão influir no futuro da nação durante muitos anos. Por isso mesmo, todos querem acertar. Todos percebem que as decisões que vão ser tomadas podem influir poderosamente na escolha da sociedade que o Brasil viverá durante as próximas gerações. As decisões atuais podem reforçar determinado modelo socioeconômico ou podem inclinar o país para um novo modelo; podem ampliar ou restringir o âmbito das liberdades políticas, podem consolidar uma situação que favoreça as minorias privilegiadas ou permitir a implantação de uma nova ordem que promova o bem de todos.

A redemocratização brasileira se defronta, com efeito, por um lado, com a resistência de minorias inconformadas em perder seu poder de arbítrio. Por outro lado, alega-se que a plena instauração das liberdades democráticas possa dificultar uma austera gestão das difíceis condições socioeconômicas do país.

A história, sem dúvida, mostra exemplos de formas insensatas de exercício das liberdades, em que proposições demagógicas induziram maiorias populares a opções ruinosas para a sociedade. Mas o que a história certamente registra é a inerente irresponsabilidade de todos os despotismos e a quase inevitável corrupção de todas as formas de governo não submetidas ao controle dos governados.

 Se é verdade que, em anos recentes, fatores externos tiveram decisiva influência no agravamento de nossa situação socioeconômica, não é menos certo que, nesses mesmos anos, opções autoritárias conduziram o país a políticas econômicas pelas quais o povo paga hoje um alto preço social.

Acentuou-se, nestes últimos anos, uma orientação da economia para prioridades favorecedoras das classes de altos rendimentos, inclusive mediante formas requintadas de corrupção e de suborno, em direta oposição aos interesses do povo. Um modelo concentrador de rendas e estimulador de um consumismo sofisticado, em contraste com as carências básicas da população, levou-nos à situação de sermos hoje um dos países com mais alta taxa de desigualdade entre os grupos de maior e menor renda. O Papa João Paulo II parecia aludir a esta situação, quando disse na favela do Vidigal: “Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os excessivamente ricos, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria, daqueles que vivem nas favelas. Fazei tudo para que este abismo não aumente, mas diminua, para que se tenda à igualdade social”.

 

O COMPROMISSO POLÍTICO

Comporta o regime democrático diversas alternativas regulatórias do sistema de representação popular e do processo eleitoral, dentre os quais podem os partidos exercer suas preferências. Tais alternativas, entretanto, serão legítimas na medida em que viabilizarem a efetiva participação política de todo o povo, a liberdade dos indivíduos e das organizações intermediárias da sociedade e assegurem o mesmo peso ao voto de cada cidadão.

Todos os casuísmos orientados para favorecer minorias e impor restrições artificiosas, que deformam a genuinidade da vontade popular, são antidemocráticas e, como tais, inaceitáveis. Afetam essa genuinidade todas as pressões ostensivas ou ocultas, que constrangem o direito das pessoas de se filiarem livremente a um partido e de votarem na certeza do respeito ao resultado das urnas. Tais pressões, como as retaliações, difamações, compra de votos, melhoramentos paliativos com fins eleitoreiros, perseguições e ameaças de demissão, afetariam a legitimidade do pleito e são eticamente inadmissíveis.

O governo do Brasil assumiu o compromisso de plena instauração da democracia. Enfrentando a resistência de reduzidos mas poderosos grupos extremistas, sua autoridade se reforça pelo acatamento do povo brasileiro, para persistir na tarefa de redemocratização do país. Compete assim a esta autoridade reservar-se o monopólio do controle da força do Estado e não tolerar que grupos particulares exerçam ações violentas por conta própria, para defender opções e interesses políticos particulares sobre os destinos da nação.

A Igreja não favorece a nenhum partido em especial. Ela está profundamente comprometida com a instauração e consolidação da democracia e como tal denunciará todas as formas de regulamentação eleitoral que distorçam a autenticidade da representação popular, sejam quais forem seus beneficiários. Neste espírito, a Igreja do Brasil, através do Conselho Permanente, dá seu apoio aos esforços das dioceses e dos Regionais, que se empenham na formação da consciência política do povo e o ajudam numa reflexão cristã sobre seu compromisso político. Com esta atitude, ela não endossa opções partidárias, mas procura contribuir para uma participação cada vez maior do povo na condução do processo político, condição indispensável para a realização do bem comum.

 

DEMOCRACIA POLÍTICA E DEMOCRACIA SOCIAL

A democracia, hoje objeto de consenso nacional, em países como o Brasil, marcados por estas formas inaceitáveis de iniquidade social, não consiste apenas na preservação das liberdades políticas. Consiste também num processo de incorporação das grandes massas a formas superiores de educação e de capacitação, a um melhor nível de vida e à plena participação nas decisões públicas. A democracia política é uma forma e um pré-requisito, cujo conteúdo e destinação é a democracia social. Assim, mais importante que a tecnicidade das soluções e das reformas é um ambiente moral, as perspectivas de conjunto que hão de orientar as opções.

O desenvolvimento social do Brasil constitui, ao mesmo tempo, um imperativo ético e um imperativo político. Não podemos continuar iludindo nossa sensibilidade ética, com o pretexto de que o desenvolvimento econômico, ainda que acentuando as desigualdades sociais, termine por induzir o desenvolvimento social. Hoje sabemos todos que isto não é verdade. O desenvolvimento social é algo que tem de ser buscado por si mesmo; constitui um objetivo específico a ser alcançado dentro de certas condições e é em função deste objetivo que se deve orientar o desenvolvimento econômico.

O que está no fundo da presente conjuntura política, como de toda a nossa geração, é a espera das massas pobres de nosso país. Há anos, décadas e gerações inteiras, que os pobres aguardam o tempo de sua participação. Quando a nação está em crise, sempre são os pobres que têm de suportar os maiores sacrifícios. O fundo do problema político de hoje é a ascensão das massas pobres e marginalizadas, é a questão de saber se, graças às reformas anunciadas, os pobres terão mais oportunidade de levantar a voz e fazer prevalecer suas justas aspirações.

Eles sabem que o atendimento dessas aspirações não depende tanto da falta de recursos quanto da falta de uma decisão política empenhada em libertá-los do estado de dependência e torná-los capazes de resistir às solicitações das mobilizações eleitoreiras.

Nenhuma reforma logrará consolidar formas estáveis de democracia, se não tomar em consideração a necessidade de abrir espaços para que os trabalhadores e os sem trabalho, os posseiros expulsos da terra e acusados de subversão, os índios, os subalimentados, as massas sem instrução, sem auxílios de saúde, sem habitação decente, sem emprego estável, sem salário suficiente, cheguem por fim a serem reconhecidos como cidadãos com plenos direitos.

A Igreja quer sensibilizar a opinião pública para o quadro extremamente grave das demissões em massa dos trabalhadores, que devem pagar com os salários perdidos os custos da recessão da qual não são culpados. Quer reafirmar às classes sofridas de nosso povo que está a seu lado e as apoia no esforço de assumir seus problemas e encaminhar soluções justas. Ao mesmo tempo, sente quanto é importante, nesta situação difícil, a solidariedade e a partilha fraterna organizada.

Qualquer orientação política nova que seja uma contribuição eficaz para que os marginalizados se libertem de sua condição, será bem-vinda. Qualquer orientação e reforma que postergue de novo as mudanças urgentes reclamadas há tantos anos, será vã, deixará apenas desilusões, conduzirá a crises semelhantes às do passado e tenderá a soluções autoritárias, de direita ou de esquerda, propensas a assumir dimensões dificilmente remediáveis.

Assim, para a instauração e manutenção da democracia, não bastam eleições livres. É preciso ainda criar condições para que o povo se organize, seja pelo acesso à representação político-partidária, seja na expressão direta de seus anseios, pela criação de organismos comunitários, como associações de bairros, ou pelo recurso a formas plebiscitárias de manifestação da vontade do Povo. Só assim ele será capaz de dar respaldo aos que eleger e exigir deles o cumprimento dos compromissos assumidos. Somente um povo organizado nas mais variadas formas espontâneas e livres será capaz de ser sujeito de um processo racional e pacífico de desenvolvimento, de vez que só organizado será capaz de reunir-se ostensivamente e discutir seus destinos de modo racional. Ao contrário, uma massa desorganizada e insatisfeita corre os maiores riscos de explosões irracionais e violentas, induzidas por qualquer aventureiro. Por isso, apoiar a organização do povo, e não mantê-la sob suspeitas, é decisivo para preservar a racionalidade do encaminhamento pacífico das mudanças que se impõem.

O imperativo, ético e político, de nosso encaminhamento para uma democracia social, apresenta duas dimensões. Na dimensão dos fins, impõe-se uma transformação estrutural que propicie uma verdadeira recuperação do desenvolvimento social a ser adotado como objetivo nacional da mais alta prioridade. Na dimensão dos meios, impõe-se o requisito da razoabilidade, fixando-se metas viáveis e adotando-se procedimentos praticamente eficazes em vez de ideologicamente sedutores. Dessa radicalidade de propósitos e moderação de meios depende o êxito da complexa, mas inadiável tarefa: compatibilizar nosso desenvolvimento político e econômico, com nosso desenvolvimento social, fazendo daquele um instrumento para a realização deste.

 

CONCLUSÃO

A Igreja do Brasil, através de seus órgãos competentes já fez em outras ocasiões pronunciamentos sobre graves problemas que angustiavam a consciência cristã. Em outubro de1976, fez uma “Comunicação ao Povo de Deus”, denunciando os sofrimentos causados por uma repressão incontrolada; em fevereiro de 1977, falou sobre as “Exigências cristãs de uma ordem política”, exigências a que hoje se procura atender com o processo de abertura; em setembro de 1979, propôs "Subsídios para uma política social”; em fevereiro de 1980, alertou para os sérios problemas da posse e uso do solo rural, no documento “Igreja e problemas da terra”. Hoje, no contexto da abertura política, volta a pronunciar-se fazendo um apelo no sentido de que seja aproveitada a oportunidade para dar a essa abertura as dimensões que atendam às grandes aspirações da Nação.

 Nas épocas de mudança, como a das eleições que se aproximam, quando os equilíbrios de forças sociais e políticas são suscetíveis de transformações bruscas, aparecem duas tentações correlatas. Por um lado, certas pessoas e grupos, que se sentiam frustrados ou marginalizados dos centros do poder, podem achar que estão em condições favoráveis para conquistar vantagens ou satisfazer a interesses particulares. Por outro lado, pessoas e grupos mais imediatamente ligados aos centros de poder, temem perder certas vantagens às quais estavam acostumados a ponto de já não mais percebê-las como privilégios e sim como quase direitos. Tornam-se então mais agudos os interesses particulares. Esta é a hora em que todos devem deixar de visar ao que podem ganhar ou perder, para considerar o verdadeiro interesse seu e de todos que é o bem de toda a Nação.

A criação de espaços de liberdade para o diálogo franco, leal, desarmado de preconceitos, ainda é o melhor caminho para somar esforços; melhor que o confronto que divide a nação naquelas facções decididas a fazer valer seus próprios interesses numa tensão crescente de efeitos incontroláveis devida ao risco das radicalizações.

As radicalizações se exacerbam pela presunção da perversidade que bloqueia o diálogo. O que é presumido perversidade, de fato se reduz a uma visão ideológica da situação, pela qual cada instância em confronto é levada a identificar, mesmo inconscientemente, os seus próprios interesses com os interesses da Nação. Não é ético presumir a priori que esse mecanismo de ideologização seja intencional e perverso. É indispensável, neste momento, desarmar os espíritos e os protagonistas, desativar quaisquer intenções de retaliação, com uma atitude de humildade e de conversão necessária a todos, inclusive à Igreja.

A superação dos riscos que ameaçam a presente conjuntura depende de decisões imediatas e viáveis que devem ser tomadas com urgência. No campo político, a garantia definitiva de que será aceita a vontade popular nas eleições. No campo ético, o pacto de não revanchismo que não exclui a reparação de direitos imprescritíveis no campo social, a solução do problema do desemprego, a contenção do êxodo rural, a superação do iminente colapso do sistema da Previdência Social, ameaçando a destinação a seu próprio bem-estar da única poupança de que dispõem as classes trabalhadoras, problemas todos que podem constituir fatores de grave instabilidade, capaz de comprometer o processo de redemocratização que o Brasil espera e merece.

 

* Este texto serviu como projeto para o Documento n. 22 da CNBB, publicado pelo Conselho Permanente na sua reunião de agosto de 1981, sob o título: “Reflexão cristã sobre a conjuntura política”.

                   (Igreja e Estado no Brasil: perspectivas e prospectivas, 1987.)