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Evaristo de Moraes Filho

MARCEL PROUST E O REALISMO DOS DOIS LADOS

 

Cada época tem uma direção predominante de ideias; se não de ideias, pelo menos de ideais. Por isso, todos os movimentos da cultura humana apresentam, em cada época, os mesmos postulados fundamentais. Como que há no ar uma combinação tácita entre todos, assim como uma espécie de manifesto prévio. A cada movimento literário corresponde um movimento filosófico. Quase sempre o filosófico vem antes, confirmando a tese de que não há prática sem teoria. A mesma coisa pode ser dita dos movimentos científicos, artísticos em geral e talvez até dos religiosos. No último quarto do século XIX, por exemplo, ao grande avanço da ciência experimental, principalmente com Claude Bernard, correspondeu a escola realista de Maupassant, os Goncourt e Zola. No seu manifesto literário, Zola confessou a influência de Claude Bernard. Procurou fazer experimentações romanescas, como quem mete os personagens em tubos de ensaio e fica de fora calmamente à espera dos resultados, que deverão confirmar uma determinada hipótese científica. Naquele tempo, dominava em teoria do conhecimento a concepção do realismo-espelho, realismo ingênuo, como o classifica Augusto Messer. Porque, como é sabido, há duas espécies de realismos: o ingênuo, natural, direto, que admite o mundo tal qual o sentimos; e o crítico, racional, reflexivo, que submete as representações dos sentidos a certas meditações críticas.

Outro grande movimento a ser dado como exemplo é o romantismo de Rousseau. O seu romantismo foi universal, desde a poesia à pintura. Todos os paisagistas do quadro ou do livro se inspiraram nele. A “Sinfonia Pastoral” de Beethoven é de inspiração rousseauniana. Cada movimento artístico gira em torno de um doutrinador. Rousseau foi o teórico do movimento romântico, todo ele voltado para a natureza, para a paisagem como elemento independente da obra de arte. Essa questão do teórico dos movimentos literários é bem mais importante do que se supõe comumente. Tão importante, que até poderíamos perguntar se não é ele quem lhes dá vida e duração. Qual a causa da vida efêmera e limitada do nosso modernismo – ainda enquanto movimento fechado e inconfundível – senão a ausência de um pensador correspondente? Não bastou Graça Aranha... Porque, neste caso, pensador significa filósofo, generalizador, universalizador, e não um simples autor de manifesto literário particular, acanhado, unilateral. O pensador dos movimentos serve de ponto de referência e aponta caminhos novos em todas as direções: poesia, literatura, música, filosofia, etc. Esta, a imensa importância do teórico, que vale como um verdadeiro criador de argumentos e de ampliações das experiências concretas. Representa para os movimentos artísticos o mesmo que um inspetor de veículos: só a ele é permitido valorizar as antigas direções intelectuais e indicar novas estradas ao pensamento.

Cada época se manifesta através de um estilo próprio, que a caracteriza. Spengler diria: cada cultura tem o seu estilo. Outros o chamariam de clima histórico. O critério de Spengler é amplo demais, porque para ele, por exemplo, a cultura ocidental começou em 900, e todo esse período seria marcado por um estilo só. Trata-se aqui, não de culturas – Spengler admite somente três: antiga, mágica e ocidental –, e sim de estágios sociais, de períodos históricos bem estruturados e limitados. De qualquer modo, não se pode negar uma certa unidade de orientações culturais em cada período. Dentro de cada época, todos os ramos da criação humana surgem em movimentos paralelos e concomitantes. Não se precisa explicar nada disso por conceitos místicos de almas de cultura, de consciências coletivas. A escola da sociologia do conhecimento de Scheler, Mannheim e Landsberg explica esse fenômeno muito bem e com bastante simplicidade. A cultura e a sociedade determinam-se e condicionam-se mutuamente, há uma interpenetração sociocultural. Se isso é verdade, significa em outras palavras que cada movimento cultural é suscitado pela forma da sociedade existente. Há, pois, inequívocas analogias de estrutura e de estilo entre a arte, a filosofia e a ciência de cada época. Algumas são conscientes como os casos clássicos de Dante-Santo Tomás de Aquino. Descartes-Racine e Molière, Goethe-Spinoza, Schiller-Kant, Wagner-Schopenhauer, Hebbel-Hegel. As mais sugestivas, porém, são as analogias independentes de intervenção pessoal e consciente. Pierre Duhem dá vários exemplos interessantes: entre a tragédia clássica e a física matemática francesas dos séculos XVII e XVIII, entre Shakespeare e Milton e a física inglesa, entre o gótico da arquitetura e a grande Escolástica, entre Leibniz e a arte barroca, entre Mach-Avenarius e o impressionismo na pintura, entre o expressionismo e a moderna filosofia da vida.

No mundo de hoje, à matemática relativista de Linstem e à música contrapontista corresponde o romance coletivo de Huxley. Ele próprio o chamou de “musicalização da ficção”, como Goethe antes já havia mostrado a analogia entre arquitetura e música, e denominado aquela de “música petrificada”. Mais tarde, diria Novalis que “a plástica e a pintura não são mais do que a arte de dar figura à musica”. Assim como Baudelaire falava dos contrapontistas da cor, costumavam os decadentistas no fim do século XIX referir-se às cores ressonantes e às arquiteturas musicais. Debussy, Mallarmé e Baudelaire foram “estilos” correspondentes. Paralelos a eles, estavam os impressionistas da pintura. A cada momento histórico e a cada forma de sociedade corresponde um estilo completo de filosofia, de literatura, de poesia, de arte em geral. Keyserling chama a essa unidade cultural de sentido. Três séculos antes dele, Bacon já tinha falado dos principia media das sociedades. Esta noção de Bacon foi retomada por Karl Mannheim na sua teoria de ideologia e utopia históricas.

A própria religião não escapa a este esquema filosófico. Veio através da história se adaptando à estrutura da sociedade e da ciência em cada época. Que significou o movimento da Reforma? Que significa todo o movimento modernista do catolicismo, senão isso? No seu conhecido livro Le modernisme catholique, Ernesto Buonaiuti cita um trecho de Vincenzo Gioberti completamente elucidativo da nossa afirmativa: “Il faut faire dans le christianisme catholique d’aujourd’hui ce que les prophètes firent dans le judaïsme six siècles environ avant notre ère: reformer la religion positive et la mettre d’accord avec la science et la civilisation.”

Em épocas de crise e de transição, essa unidade torna-se mais flagrante. Os homens como que sentem falta de ar e, quase em pânico, se orientam para o mesmo ponto, todos têm a mesma pressa em alcançar a saída. Vê-se a mesma dúvida em todas as fisionomias, a mesma ânsia em salvar-se. Isto se dá em épocas de instabilidade, de completo domínio do social, como aconteceu na cultura nascida da guerra de 1914-18 e está acontecendo também nesta. Tanto em filosofia como em arte, todos se voltavam para o irracionalismo, para a vida direta e crua. Bergson, apesar de ter escrito o seu livro principal em 1907 – o que vem confirmar que a filosofia se adianta à literatura – é o maior teorizador desse estilo. Outro grande doutrinador é Freud. Ao inconsciente de Freud, ao eu profundo de Bergson, correspondem os surrealistas, os dadaístas, ou cubistas. Lawrence e Freud são dois movimentos que se completam. O irracionalismo, o instintivismo, o intuicionismo, o pré-logismo, o anti-intelectualismo, penetrou por todos os lados. Em poesia, em pintura, em literatura, em filosofia. Deu-se também uma irrupção do neo-romantismo. A razão, o equilíbrio, a medida, a lógica foram postos de margem; procurava-se descer cada vez mais no aprofundamento da psicologia da criatura humana. Diz Piscator que, em 1919, ao voltar das trincheiras, encontrou em Berlim o movimento em pleno alvoroço. Ao grito de “arte é uma m...”, os dadaístas começaram a criticar tudo, a ridicularizar tudo. Eram irreverentes e iconoclastas absolutos.

Por outro lado, os surrealistas também faziam a crítica da razão. Mas, ao mesmo tempo, criticavam os cubistas e os dadaístas. Breton, às páginas 42 do seu Manifeste du surréalisme, dá a seguinte definição ao surrealismo: “Automatisme psychique pur par lequel on se propose d’exprimer, soit verbalement, soi par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionnement réel de la pensée. Dictée de la pensée, en 1’absence de tout controle par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou morale.” É o elogio do sonho, da fantasia absoluta, do disparate puro. Já não é a vida imitando a arte de Wilde, e sim a vida imitando o sonho, como no conhecido conto de Arnold Bennet. Em matéria de técnica, aconselhava Breton escrever depressa, sem assunto preconcebido, o mais depressa possível para não parar e não ser tentado a se reler. Ao se desconfiar de alguma intromissão racional, ponha-se uma letra L no lugar da dúvida, e a palavra seguinte deve começar arbitrariamente com essa letra. No momento de tal operação, o estado de espírito deve ser completamente passivo e receptivo, tanto quanto possível. Esta técnica surrealista de escrever não é a mesma da confissão psicanalítica, do paciente ficar deitado na penumbra, sem ver o médico, e dizer em voz alta todas as ideias, todas as associações, todas as imagens que lhe vierem à cabeça, sem qualquer controle ou inibição?

Uma das características da arte moderna é essa incoerência, essa revolta contra a razão. O sonho se confunde com a vigília, a realidade com a fantasia, o normal com o anormal. Aliás, Breton declara que os estados patológicos são os mais indicados para a criação surrealista. O melhor surrealista seria um louco, um homem com 40 graus de febre, um esquizofrênico qualquer. Na literatura e na poesia modernas não há limites exatos entre o consciente e o inconsciente, o delírio e a serenidade, o coerente e o incoerente. Até Huxley, um dos escritores mais equilibrados e racionalistas do nosso tempo, prestou sua homenagem ao inconsciente em Eyeless in Gaza. Por exemplo, no diário de Anthony Beavis, que é a mais ponderada das personagens, que atravessa todo o livro falando em sociologia, que parece ser o próprio Huxley em pessoa, encontra-se escrito o seguinte: “Reflexo condicionado. Quanta satisfação me proporcionou o velho Pavlov, quando o li pela primeira vez. Arrasamento definitivo de todas as prerrogativas humanas. Um ajuntamento de cães e cadelas, todos nós.” E qual a moralidade do livro, senão a paz escura das profundezas, paz sombria, paz dos planos profundos, paz nesta profunda noite subaquática, paz como um vácuo trevoso?

Mas os dois maiores representantes dessa característica são Marcel Proust e James Joyce. Também o são do birrealismo, que aqui chamamos e conceituamos como realismo dos dois lados, isto é, do interno e do externo, do subjetivo e do objetivo, do introvertido e do extrovertido. Mas, antes deles, Dostoievski foi o maior exemplo desse incoerentismo na literatura. Não sabemos a razão pela qual o esquecem frequentemente. E, apesar de ter morrido em 1881, nenhum escritor simboliza tanto a nossa época como Dostoievski. Muichkin, Raskolnikov, Veltchaninov vivem sempre numa trama feita de fantasia e de realidade, de alucinação e de vigília, de atordoamento e de sanidade. De confusão, em uma palavra. Isto pelo lado da característica da arte moderna: sonho-vigília. Em A voz subterrânea está a outra característica: a do irracionalismo. Alguns intérpretes mais apressados chegam a ver nessa pequena novela de Dostoievski uma segunda crítica da razão, à maneira de Kant. Nada mais falso. A de Kant não é uma crítica da razão, no sentido comum da palavra. Trata-se, ao contrário, de uma justificação pela crítica. Impôs-se ele a tarefa de limitar e depurar a razão, com o objetivo de torná-la mais forte e válida. A crítica de Dostoievski é uma crítica direta, de frente, ingênua, no sentido normal da palavra.

A principal característica de Dostoievski é o imprevisível, o inesperado, que, segundo Bergson, é a essência da própria vida. O leitor não sabe o que virá na página seguinte, cada página é uma surpresa. Não há aquela coerência lógica dos contos e dos romances clássicos. De uma Montanha mágica, por exemplo, que simboliza toda a calma, todo o domínio da razão de anteguerra. Essa obra-prima de Thomas Mann é uma espécie de romance humanista, o leitor sente-se em segurança e sabe desde o início qual o caráter de Hans Castorp, de Settembrini, do Dr. Behrens, do Dr. Krokowsky, e assim por diante. Cada um é um tipo acabado, tem sua concepção do mundo e da vida, tem uma qualidade – sempre a mesma – que os identifica. Em resumo, apesar de ser um romance profundamente analista, não deixa de ser objetivo. Quase que podemos medir os estados de alma, os pensamentos dos seus personagens. E, por isso, esse livro nasceu clássico. Como o Aquiles de Homero, sempre de pés ligeiros, assim são as figuras de Thomas Mann, cada uma com sua ficha e seu número. Quando, no segundo volume, Settembrini, humanista e pedagogo, encontra Naphta, antigo discípulo dos jesuítas e medievalista, o leitor poderá prever as suas discussões e a luta de suas influências sobre Hans Castorp. Tudo é lógico e argumentado, até mesmo a paixão de Castorp por Mme. Chauchat. Todas as vezes que Mme. Chauchat entrava na sala do restaurante, chegava atrasada, depois de todos os outros hóspedes já estarem sentados, e fazia sempre a porta ranger. Apesar da muita vida que pulsa nas páginas de Mann, o leitor se sente à vontade, calmo, sem medo de imprevistos, de reviravoltas. Sabe que a vida está arrumada, como nos romances de Anatole France.

Já em Dostoievski é o contrário, seus personagens não querem lógica e protestam contra ela. Têm a mesma inquietação e complexidade dos de Stendhal. Eis a crítica de um deles à razão, em A voz subterrânea: “Admito que ‘dois e dois são quatro’ é uma coisa excelente, mas declaro que ‘dois e dois são cinco’ é uma coisa muito mais encantadora.” O próprio Dostoievski serve como exemplo da concomitância da filosofia e da literatura. Ao mesmo tempo que Nietzsche fazia o elogio da vida, dos valores vitais, de Dionisos, por um lado, Dostoievski fazia a mesma afirmativa por outro: “Concordo que a razão é uma coisa excelente, mas limita-se a ser razão, contentando apenas a faculdade raciocínio do homem; enquanto o desejo é a expressão da totalidade duma vida, isto é, da vida humana inteira com a própria razão e seus escrúpulos. Revestirá talvez um aspecto feio e destrambelhado, concordo – mas é vida. Não é a extração de uma raiz quadrada. Quero viver, a fim de satisfazer a minha faculdade de existência na sua totalidade e não para satisfazer apenas a minha faculdade de raciocínio, que somente representa a vigésima parte das forcas que em mim residem.” Sente-se que nestas palavras está todo um programa literário, o programa literário da vida inteira, total, dos dois lados. E é este, sem tirar nem pôr uma linha, o mesmo ponto de vista da atual filosofia existencial de Heidegger e K. Jaspers.

Não há por onde fugir. Dostoievski foi um precursor genial de todo esse movimento literário contemporâneo. Já houve quem visse em Spandrell aquele estranho personagem huxleyano de Contraponto, que vivia em busca do “horrível essencial”, um legítimo exemplar da fauna de Dostoievski. Falam, por exemplo, na confusão realidade-ficção, razão-loucura, na multiplicidade da alma humana em Pirandello; e tudo isso não se encontra lá em Dostoievski, com muito mais profundeza e vida?

E o mesmo se pode dizer de Joyce e Proust. Dostoievski foi o precursor de ambos. Voltando a Pirandello, ainda mais se ressalta a importância da obra de Dostoievski, tirada sempre da própria vida, e não da teoria, como muitas vezes acontece com o criador de Matias Pascal. Este último fazia novelas e peças, como quem ilustra uma hipótese filosófica. Nisso, ele tem muito de comum com Shaw, cujos prefácios valem, às vezes, mais do que a própria peça. Em Pirandello há muito de estranho, de excepcional, de extraordinário, pode ser real mas dificilmente o é. Nenhum bisneto seu reconstruiria sua época através dos seus livros Já em Dostoievski, a par do intricamento subjetivo e mórbido dos seus personagens, pode-se a qualquer momento identificar o ambiente, a sociedade, a época. O autor de Katia é o exemplo típico do realista dos dois lados: interpreta, com igual mestria e genialidade, a alma humana e a sociedade, não tira o indivíduo do seu tempo e do seu ambiente, não separa a cabeça que pensa dos pés que andam no chão.

E é essa, afinal de contas, a doutrina do realismo dos dois lados: saber que o indivíduo é uma espécie de corpo poroso, através do qual passam as correntes de sua época. O indivíduo-espírito necessita tanto dos seus contemporâneos como do ar que lhe dá vida. Assim como o ar que é aspirado e logo depois expelido, sai do ambiente e a ele volta de novo, assim também está o indivíduo para sua época. Recebe as influências do seu tempo como os raios que penetram os sólidos, nada mais é do que um simples elo em uma corrente interminável, o que lhe parece seu é de sua época, atravessou-o somente. O que há de subjetivo – e supervalorizado pelo indivíduo – é esse rápido aperceber-se do que a época lhe dá e responder a seu modo e, assim mesmo, não como se quer e sim como se pode. A mente de cada um reflete a sua situação social, sua função social. Pode-se ver a sociedade através de um cérebro, como quem vê a nuvem refletida no lago. Uns preferem ver a nuvem diretamente, mas nem por isso deixará ela de se refletir no lago. Por isso é tão irrisório tentar fazer a biografia só de um cérebro, como Papini em L’uomo finito, quanto limitar a vida do homem às simples ações, aos puros atos exteriores, como bonecos de engonço, sem procurar ver os seus motivos, as suas intenções, tudo enfim da vida interior que precedeu e sucedeu à ação. Como argumento psicológico contra esta última atitude, basta lembrar que as ações nada provam, por si mesmas, fazem-se idênticas ações por motivos diversos. Há ações que têm o nosso rosto, o nosso aspecto, são como nossas filhas, disse-o uma personagem feminina de Le lys rouge, mas há outras que não se parecem nada conosco, são como pretinhas que a gente teve enquanto dormia...

Voltemos a Dostoievski: em seus personagens, o leitor assiste ao nascimento de suas preocupações, de suas fobias, de suas manias, de suas loucuras, de seus monólogos. Compreende porque eles pensam assim e não de outro modo, vê onde apanharam o abatimento, a cólera, a vergonha que os consomem dentro das quatro paredes do seu quarto. Tudo surgiu das relações humanas, e por isso é preciso penetrar também essas relações. Embora exagerem, aumentem ou deturpem, nada mais fazem do que interpretar a realidade objetiva, e, afinal, chegamos a compreender a vida como eles. Em Dostoievski, o homem é colocado face a face com a vida.

Um exemplo interessante do realismo dos dois lados é o que, involuntariamente, nos oferece Maupassant. Escreveu ele um prefácio especial, em Pierre et Jean, sobre o romance objetivo e realista, sobre os conselhos que Flaubert lhe havia dado. Desde a primeira linha, ele avisa o leitor que o prefácio seria a negação do próprio livro. Quase lhe pede desculpas pelo livro que se vai ler. Mas quem tinha razão: o prefácio ou o livro? O livro, sem dúvida. O prefácio, como toda teoria dogmática de normas fixas e linhas fechadas, desapareceu em face da vida e da emoção profundamente humanas que pulsam em Pierre et Jean. Pierre é menos real, só porque sonha, medita, imagina em vez de agir, só porque tem um temperamento que pensa mais do que executa? Pierre é tão real como a vida de todos os dias, e o leitor acompanha o crescendo de sua angústia e desconfiança a respeito da sua própria mãe. É um romance birrealista, veem-se os personagens por dentro e por fora, como uma peça inteiriça embutida em um conjunto maior. O romance de Maupassant é o melhor argumento de que a vida, desde que seja vida verdadeira, tanto faz que seja objetiva ou subjetiva. Tudo se resume, como já foi dito atrás, em não separar a cabeça que pensa dos pés que andam no chão, e vice-versa...

Outro caso interessante, embora mais completo e algo diferente, é o de Joyce. Em seu primeiro ensaio, aparecido em 1901 e quando tinha apenas 19 anos de idade, Joyce lançou o que seria toda a sua concepção do papel do escritor: afirmou que o artista devia se conservar completamente afastado das lutas do seu tempo, em inteira neutralidade política. O artista seria como um ser alado que pairasse acima das circunstâncias, dos obstáculos, dos seres reais. E apesar dessa norma de conduta e do “monólogo interior”, a sua obra é a negação dos seus princípios, toda ela responde, embora transcendentalmente, à política irlandesa de seu tempo. Em Dubliners, está todo o ambiente popular e político de Dublin, da Irlanda, em uma palavra. Já um de seus críticos disse que James Joyce e esses seus escritos serão sempre irlandeses, em qualquer tempo e vistos de qualquer lado. Sente-se nas novelas curtas de Dubliners o cenário externo, o mundo da infância de Joyce.

Ulysses, sua obra-prima, que Valéry-Larbaud acha a mais digna do nosso tempo para passar à posteridade, é um verdadeiro documento ao fim de uma civilização. Para Waldo Frank, por exemplo, assim como A divina comédia sintetiza toda a época do pré-Renascimento, Ulysses representa a desintegração do nosso tempo, em verdadeira atomização dos seus elementos. O “monólogo interior” e silencioso de Joyce, que ele declara ter aprendido em Les lauriers sont coupés de Dujardin, é de pura técnica freudiana. Não escapa à característica irracionalista da época presente. O desenvolvimento do “monólogo interior” consiste em libertar a imaginação de qualquer censura intelectiva ou voluntária, deve ser afastada toda repressão psicológica.

Para Charles Duff, em estudo aparecido em 1932, Platão, Goethe, Shakespeare e Dickens são os precursores reais de Joyce. E, termina aquele crítico, se Freud mostrou a confusão constante entre o sonho e a vigília, Proust a viveu e Joyce a executou como ninguém. Por onde se vê que a obra de James Joyce, que parecia a princípio inteiramente original, nada mais é do que um exemplo a acrescentar-se da unidade de estilo de cada época. E Joyce, que procurou fugir a seu tempo, não pôde deixar de ser um grande exemplo do realismo dos dois lados. Aliás, segundo sua própria confissão, desde a infância que nutrira uma ardente admiração por Flaubert. Dubliners é um livro realista, como em Ulysses há por igual cenas de puro realismo, como “a cerimônia da cloaca” do quarto episódio.

Outro grande realista dos dois lados foi Marcel Proust. Ele, que a princípio parece um puro interiorizado como um homem que viveu entre paredes forradas de cortiça, é um grande cronista do seu tempo. Já alguns dos seus críticos mostraram esse outro ângulo da literatura proustiana: o de fixar os costumes da sua sociedade, da sua época, como os velhos cronistas dos séculos XVII e XVIII em França. Para Middleton Murry, À la recherche du temps perdu e Ulysses são os dois maiores documentos da decadência da nossa civilização. Proust retrata ao vivo e ridiculariza aqueles tipos de aristocratas decadentes do fim do século XIX. Toda a sua obra é a crônica desapiedada e cruel dos vícios, dos rebaixamentos, dos prazeres fáceis da sociedade do fim do século XIX e começo do XX. Ainda em obra recente – Le Romantisme social (1944) – não deixa Roger Picard de fixar esse aspecto da obra de Proust, não hesitando em colocá-lo ao lado de Balzac, exemplo típico de pintor de costumes do seu tempo: “Le romancier social passera ainsi, tout d’abord, pour un bon témoin de son époque; on étudiera chez lui la société où il a vécu, comme on se plait à le faire chez un Rétif de la Bretonne, un Balzac ou un Marcel Proust.”

Esse o lado que importa ressaltar, porque o outro – o da interiorização, o da busca do tempo perdido, o da morbidez psicológica – já o foi exaustivamente. Releva lembrar somente que toda a complexidade da obra proustiana já se encontrava em Dostoievski e se partilha, na hora presente, entre os grandes autores do nosso tempo. Os seus casos de dissociação da personalidade, de intermitência mental, de confusão, enfim, o são igualmente da nossa época. Sua concepção do tempo é a mesma de Bergson, o que constitui outro exemplo da concomitância filosófico-literária. Sabe-se que Proust sempre negou ter sofrido influência direta de Bergson, mas a prova dessa influência se manifesta por todos os poros de sua obra. Como esforço mais penetrante para o elucidamento dessa questão, não conhecemos nada mais completo do que o estudo de Floris Delattre, aparecido no primeiro volume de Les Études Bergsoniennes (Paris, 1948). Basta este trecho: “Aussitôt que l’on pénetre dans l’oeuvre de Proust, À la recherche du temps perdu, on est frappé des analogies nombreuses qui s’y rencontrent entre le roman et les traités, ou comme il préférait les désigner lui-même, les ‘essais’ du philosophe. Bergson était parti de la critique de l’idée de temps conçue par lui sous un jour nouveau; et il en était venu à faire de sa définition de la durée réelle le centre de sa doctrine, au point qu’il y attachait plus d’importance, me confiait-il un jour, qu’à sa théorie méme de l’intuition. Le premier objet de Proust, tout pareillement, sera d’introduire, de restituer dans son roman la durée vivante. Sa démarche initiale, comme celle de Bergson encore, sera celle de l’introspection, du repli constant sur soi, les seize volumes de son rornan-fleuve n’étant qu’un ample monologue, qu’une vaste autobiographie à peine romancée, l’écrivain s’étant appliqué, avec son énergie méticuleuse, à transposer dans le domaine littéraire, dans sa Recherche du temps perdu, les résultats acquis avant lui par la recherche bergsonienne.”

Sob o signo da memória, foram escritas as principais obras deste século, as de Joyce, Huxley, Virginia Woolf, Roger Martin du Gard, Reymont. Thomas Mann chega a dizer, no prefácio da sua Montanha mágica: “Cela pourrait ne pas être un inconvénient pour une histoire, mais plus un avantage: car il faut que les histoires soient passées, et plus elles sont passées, pourrait-on dire, mieux elles répondent aux exigences de l’histoire, et c’est tant mieux pour le conteur, évocateur murmurant du prétérit.”

Em resumo, Proust, que é justamente classificado em todos os livros críticos como um representante do romance introvertido, interior, pode ser também, quando visto em conjunto, o mais belo exemplo do realismo dos dois lados. Da importância dele, só Dostoievski. Depois de ambos, o romance passou a ser um retrato de corpo inteiro, apanhou a figura e o fundo, a árvore e a paisagem toda. Em termos de psicologia moderna, quase poderíamos dizer: tornou-se gestaltista. Em uma das suas conversações com Ekermann, Goethe tivera a mesma concepção do romance. Falando de Wolff, a quem aconselhara a descrever, como exercício literário, a sua volta a Hamburgo, disse-lhe o genial autor de Wilhelm Meister: “Não foi a volta a Hamburgo que ele me descreveu, mas somente as sensações de um filho que volta aos seus país, aos seus parentes e amigos. O seu poema poderia servir também como a volta a Melseburgo e a Iena como a Hamburgo E, no entanto, que cidade notável e original é Hamburgo!”

Se Joyce confessou grande admiração por Flaubert, Proust não escondeu a sua por Balzac. Nos seus primeiros livros, encontra-se o nome de Honoré citado muitas vezes. De Sodoma e Gomorra para diante, porém, vai sendo esquecido. É que Proust abandonara o mundo exterior, recolhera-se a seu mundo íntimo para a busca do tempo perdido. Mundo exterior – foi o ambiente em que viveu, foi o mundanismo que mais tarde iria retratar como o Saint-Simon do seu tempo. Mundo interior – foi o domínio da sua doença, do seu isolamento, da sua separação. Não fosse essa solidão, esse tempo de verdadeira hiperestesia, e ele teria permanecido talvez como um simples naturalista. Em Proust está sempre presente o seu público, a gente que enchia os salões onde ele gastou, entre blagues e futilidades, grande parte da vida. Por essa presença da existência real em suas páginas, principalmente da sociedade do seu tempo, é que alguém já disse que a sua obra é “uma grande carta à posteridade”.

O romance de hoje tornou-se bem mais complexo do que o fora no século XIX. Surgido no princípio daquele tempo, só agora é que alcança o seu completo desenvolvimento. As classificações dos livros de história literária não bastam, são pobres, não podem mais se manter as mesmas; de romance realista, psicológico, naturalista, etc. Aqui também nestes assuntos, como em quase tudo, as classificações são sempre demasiado simplistas. E isso porque todos os romances são realistas. Importa, sim, que sejam bifrontes, realistas dos dois lados, que abranjam a vida total do homem, do doente e do são, em sociedade e em cismas as mais secretas. Penetrar fundo é a palavra de ordem em todos os sentidos: não mais ver a criatura nem a sociedade pela rama, pela epiderme. É preciso ir além do simples contato pessoal em sociedade, é preciso descobrir o que colocou essa gente em contato, que espécie de relação existe entre ela, por que se apresenta assim, o que pensa verdadeiramente quando reunida. Expliquemo-nos com um exemplo: seria puramente objetivo, pela classificação antiga, o romancista que dissesse o que viu e ouviu em um agrupamento humano, mas somente o que viu e ouviu como uma máquina cinematográfica e registradora de som. Agora, um outro romancista que, além de descrever o que viu e ouviu, ainda procurasse penetrar as consciências e, o que é mais, o próprio lado irracional dessas criaturas, as suas intenções, os seus recalques, os seus temores, as suas desconfianças, seria um romancista completo, um realista dos dois lados, da nossa classificação. O que o realista dos dois lados deixa patente é que o monólogo interior não é de modo algum contrário ao romance das massas, ao romance dito social. É ou não é de um intrincado subjetivismo La condition humaine, de André Malraux? O monólogo interior, por ser profundamente humano, é um novo caminho de análise literária, útil a qualquer espécie de romance. Waldo Frank, por exemplo, emprega-o em Rahab e Holiday, novela viva, agitada, cheia de angústias e desesperanças.

O que importa é não se ficar no joycianismo puro e se fazer do romance uma coisa fora do mundo e da história, como algo transcendental. O joycianismo puro seria tão absurdo como uma cabeça sem corpo, um pêndulo sem atrito ou um voo no vácuo. Seria tão irreal e fora da vida como o mais rude dos naturalismos. O monólogo interior só é possível dentro do conjunto maior da angústia social. Primeiro, o homem em sociedade, perdido na dor, na luta, na miséria, na incompreensão; depois, o homem isolado, só, monologando se quiser, mas fazendo-o sobre o material humano e social que lhe foi proporcionado. O indivíduo rumina os seus problemas, as suas emoções e ideias, monologa sem dúvida, mas como parte de um todo maior. Ele sabe que outros indivíduos devem estar meditando e sofrendo a mesma coisa em outras partes do mundo. Por isso é que só ficam os romances que interpretem e fixem a sua época diretamente ou através de tipos representativos, de personagens que caracterizem todo o seu tempo. Descritivo ou ideológico, preencherá a sua função e servirá à época em que vive o romancista que conseguir colher, num instantâneo fotográfico, o corpo e a alma dos seus contemporâneos, com todos os vícios e virtudes, heroísmos e baixezas. E é essa gente que vive nas páginas de Marcel Proust, como alguém que envia uma longa carta à posteridade...

 

 

(Marcel Proust e o realismo dos dois lados, separata da Revista Branca, 1950)