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Discurso de posse

Senhores Acadêmicos:

Foi longo o percurso e demorado o tempo para chegar às culminâncias desta tribuna e me incorporar à vossa ilustre Companhia. Parti da ilha de Santa Isabel, no delta do rio Parnaíba, nos longes do Piauí, e muitas escalas fiz pelo caminho, numa sucessão de acasos felizes, que hoje se alteia ao páramo, nesta Academia, com o fardão, o colar, o diploma e a espada, sinetes do galardão consagrador com que o vosso acolhimento generoso premiou a vida de trabalho intelectual, cívico e profissional de um antigo bacharel em ciências jurídicas e sociais. Tenho o vosso gesto, que tanto me desvanece e me comove, como o coroamento da carreira de um devotado cascabulho do direito, que, passados 67 anos, não arrefeceu o ânimo para continuar na liça, em defesa da liberdade individual e dos direitos da cidadania, agora acrescida, por força de meu ingresso nesta Casa, da dedicação à cultura da língua e da literatura nacional. Antes de exercer cargos públicos, a minha atividade, de advogado e de professor, só formalmente era privada. Na realidade, pela sua própria motivação social, ela sempre se ligou à vida e à evolução da sociedade. A essas circunstâncias devo acrescentar uma preocupação constante da problemática política brasileira, nascida, quem sabe, de uma tendência do meu espírito, e assim terei explicado que, mesmo afastado dos encargos formais da vida administrativa e sem o exercício de uma militância político-partidária, sou um homem, no fundo, e em essência, de natureza aberta ao trato da coisa pública.

Como sabeis, antes da veste talar, que hoje envergo, por vossa magnanimidade, três outras usei, a beca de advogado, a beca de procurador geral da República e a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal, e a elas devo, sem dúvida, influência muito importante, senão decisiva, no verdadeiro concurso de títulos que é a escolha do sucessor de um titular da Academia Brasileira de Letras.

Confesso que entre as aspirações que poderia normalmente alimentar não figurava a de ocupar, algum dia, uma cadeira de membro efetivo deste Cenáculo. A Corte Suprema, segundo supunha, havia sido o apogeu, o topo, o final da escalada, tanto que escrevi em livro (A defesa tem a palavra) esta epígrafe:

Supremo Tribunal Federal, ponto de chegada, cume, envaidecedor coroamento de uma carreira, cátedra maior, cenário político, poder da República. Intérprete da Constituição, para a preservação de seus princípios e para a garantia das liberdades públicas, a Corte foi-lhe fiel e arrostou difíceis transes. Estavam tranquilos os seus juízes, mas sabiam que era a “calma no meio de um furacão”. Não foi suficiente a força moral do Poder Judiciário para deter os ímpetos da intolerância e do despotismo contra as instituições democráticas. O resto é história.

O Supremo e a Academia

A marcha, porém, não estava terminada. Não me acudiu que Themis e Minerva, de vez em quando, aqui se encontram, como aconteceu em outras ocasiões, desde os primórdios da formação desta Academia. Repete-se, nesta noite de ufania e desvanecimento, para este vosso novo confrade, o entrelaçamento episódico entre as duas instituições, com a pompa e a circunstância do ritual acadêmico. Themis sempre quis contar com os oráculos de Minerva. Com o preclaro confrade Josué Montello, principal historiador desta Instituição, aprendi que foi Lúcio de Mendonça, ministro do Supremo Tribunal Federal, o idealizador da criação da Academia Brasileira de Letras. Na ata da primeira sessão preparatória, para a concretização da ideia, realizada em 15 de dezembro de 1896, está consignado: “É aclamado presidente  o senhor Machado de Assis”, que “convida para secretários os senhores Rodrigo Octavio e Pedro Rabelo”.

São sete atas das sessões preparatórias, presididas por Machado de Assis. Houve o consenso, desde o primeiro instante, de que a ele cabia a presidência da nova Instituição, que congregava as figuras mais representativas da inteligência brasileira.

O carisma de Machado de Assis impôs-se, de súbito, a sua personalidade de escritor maior, o seu dom de comando, a sua energia serena, a sua capacidade de harmonizar inevitáveis litígios nos desencontros de feitios e temperamentos diversos daquele grupo de intelectuais, as suas qualidades de liderança, tudo, tudo que os seus biógrafos, Josué Montello à frente, como o mais autorizado de todos, registram ao traçar o perfil psicológico do patrono desta Casa, que a ele se deve, magna pars, o prestígio que ela passou a ter, desde o começo, como o sodalício mais importante da inteligência e da cultura do País.

Lúcio de Mendonça, a essa época, já era ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado e empossado que fora em 24 de abril de 1895, no governo de Prudente de Morais. Como assinalam seus filhos Edgard e Carlos Sussekind de Mendonça, em pequena biografia do pai, “o que o arrebata, o que mais o apaixona, por este tempo, é a ideia da criação da Academia. A documentação do seu esforço já está hoje toda feita. Mesmo ao reconhecimento da sua prioridade, como idealizador, e de sua dedicação em realizá-la, nada há que acrescentar”.

O próprio Machado de Assis, segundo essa biografia, num almoço por ele presidido e oferecido a Lúcio de Mendonça, pela primeira vez, proclama-o, em público, “o verdadeiro fundador da Academia Brasileira” (p. 68).

No discurso de recepção a Aníbal Freire, o nosso saudoso confrade e grande orador João Neves da Fontoura, no trecho intitulado “A Academia e o Supremo Tribunal”, disse:

Há mesmo entre a Academia e o Tribunal uma certa e antiga contiguidade: quando os juízes não entraram na Academia, foram os acadêmicos que entraram no Tribunal. Pois não nasceu a Academia, antes de qualquer outra, da inspiração de Lúcio de Mendonça? Morto este, a Academia vai buscar-lhe, como sucessor, o grande Pedro Lessa. Depois, são os acadêmicos João Luís Alves, Ataulfo de Paiva e Rodrigo Octavio que passam a honrar as bancas da Corte Suprema.

Hoje, a lista está acrescida de Cândido Mota Filho, Hermes Lima e Oscar Dias Corrêa, ministros do Supremo Tribunal, professores de direito, os dois primeiros falecidos e o último ainda honrando uma das Cadeiras desta Casa, todos ex-ministros de Estado e autores de valiosas obras de direito e de ensaios.

Voltando a Lúcio de Mendonça, uma afinidade nos liga, como vejo no livro de seus filhos. “A princípio advoga só no crime. Vive à espera dos júris. Recebe cartas dos detentos que lhe escrevem das cadeias. Não são constituintes que lhe rendam muito” (p. 26). Outro laço de simpatia por sua figura é que fui amigo e companheiro de escritório, juntamente com Roberto Lyra, de seu filho Carlos Sussekind de Mendonça.[1]

Juristas e advogados na Academia

Se havia contiguidade entre o Supremo e a Academia, também sempre houve uma natural aproximação entre os advogados e a Casa de Machado de Assis. Digo natural porque os advogados, pela própria natureza da profissão que exercem, são obrigados a escrever e a discursar todos os dias. É certo que, nem por escrever ou falar todos os dias, o bacharel ou o advogado se credenciará ao ingresso na Academia. Sobre esse tema há uma brilhante conferência pronunciada no ciclo Cem anos de cultura brasileira, comemorativo do I Centenário da Academia Brasileira de Letras, pelo ilustre confrade Alberto Venancio Filho.

O “estilo forense”, normalmente, não seduz; é produzido, em geral, de modo tosco, rotineiro, cheio de lugares-comuns, fórmulas repetitivas, sem nenhum encanto. É o que San Thiago Dantas chamava “boca de foro”, o jargão profissional, que coloca em fôrma os modelos adotados nos trabalhos judiciários. A essa gíria os iconoclastas costumam aplicar a sátira de Lima Barreto: “Para eles (os doutores javaneses) é boa literatura a que é constituída por vastas compilações de cousas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfadonho com fingimento de língua arcaica” (Histórias e sonhos, p. 55).

Dessa caricatura fugiram, para honra e glória da profissão, advogados inúmeros, a começar pelo maior de todos, o nunca assaz lembrado Rui Barbosa, cuja obra é motivo de orgulho para todos nós e paradigma para quem quiser escrever com correção e brilho a língua portuguesa.

Os bacharéis sempre estiveram presentes entre vós, mesmo os que tomaram outros rumos que não a advocacia ou a magistratura. No começo, nas sessões preparatórias, lá estão as atas, manuscritas, do punho de Rodrigo Octavio, que bem depois passou a ser ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado em 5 de fevereiro de 1929 pelo presidente Washington Luís, vindo da Consultoria Geral da República, cargo que exercia desde 1911. Neste momento, têm assento nas cadeiras de membros efetivos mais de 20 diplomados em direito, mais da metade do total dos acadêmicos.

Talvez se possa dizer que Levi Carneiro tenha sido aquele que recebeu as insígnias acadêmicas, sobretudo pela sua condição de advogado, de fundador e primeiro presidente da  Ordem dos Advogados do Brasil. Nessa qualidade, ele representou a sua categoria profissional, como deputado classista, na Constituinte de 1934. Foi ele que deu corpo e alma à entidade que passou a reger o exercício da profissão de advogado, incumbindo-lhe a seleção, defesa e disciplina da classe. Honrou o título de batonnier e imprimiu, em Código de Ética específico, regras de conduta perenes para os seus integrantes. O saudoso Acadêmico Alcântara Machado, ao recebê-lo, aqui, bem definiu o pensamento da Academia sobre as qualidades do advogado para condignamente integrá-la:

Só o leguleio e o rábula poderão satisfazer-se com o manuseio das leis, o convívio mesquinho dos comentários, o espiolhamento dos julgados. Para quem exerce honestamente a advocacia é necessidade vital fazer nas altas esferas da doutrina uma provisão diária de ideias gerais. Não lhe basta, porém, o conhecimento do direito, por mais intenso e largo que seja. Ir-se-á definhando pouco a pouco, asfixiado insensivelmente no ar confinado da especialidade, se não mantiver escancaradas, de par em par, aos quatro ventos, as janelas do espírito.

Que diremos agora, diante da complexidade crescente das relações jurídicas e quando o Estado se arroga a competência de regulamentar os próprios fatos da natureza, desde o volume das safras até à reprodução da espécie? E como se há de ensimesmar, indiferente ao que passa lá fora, um homem arriscado a discutir com os técnicos no cível e no crime problemas de psiquiatria e de balística, de contabilidade mercantil e de genética, de arte e de finanças?

Aqui posso contar-vos um episódio, do qual participei, ocorrido há mais de meio século, que liga o nome de Austregésilo de Athayde, que depois viria a ser presidente desta Instituição, durante 33 anos, de modo indireto, à Ordem dos Advogados. Em dezembro de 1944, foram presos cinco cidadãos ilustres da República que combatiam a ditadura de então - o Estado Novo: os jornalistas Austregésilo de Athayde e Rafael Corrêa de Oliveira, os advogados Dario de Almeida Magalhães, Adauto Lúcio Cardoso e Virgílio de Melo Franco. Adauto era membro do Conselho Secional da Ordem, de que eu também fazia parte. O Conselho reuniu-se extraordinariamente e houve protestos veementes contra a arbitrariedade da prisão. Estava suspenso o habeas corpus para as prisões de natureza política. A Ordem não o patrocinaria, mas a reunião inspirou outra solução. Seria requerido habeas corpus como um documento de denúncia, de desmascaramento da ditadura e da violência praticada, subscrito por todos os advogados que o quisessem assinar.

Centenas de advogados subscreveram a petição que tive a honra de redigir. Com muito orgulho, trago no meu currículo este crachá: fui advogado de Austregésilo de Athayde.

Muitos advogados têm chegado aos píncaros da fama pela descoberta de solução para temas os mais variados e oferecendo contribuições notáveis em questões complexas ainda não resolvidas pelas pesquisas e estudos dos especialistas. Enrico Altavilla, num livro clássico - Psicologia judiciária -, mostra como a questão técnica há de ser tratada pelo advogado, havendo casos notáveis de assimilação da matéria, provocando manifestações surpreendentes: “As discussões sobre odontologia, arte naval, etc., de Gaettano Manfredi, constituíram verdadeiras monografias científicas, diante das quais se inclinaram os mais profundos e competentes especialistas das matérias.”

A Academia Francesa, ao longo de sua história, elegeu muitos dos seus integrantes entre magistrados e advogados. A relação que consegui, por intermédio da advogada paulista Olívia Raposo da Silva Telles, a quem agradeço a colaboração, contém nomes de dezenas de juristas e advogados, muitos deles de projeção universal, como Corneille, Montesquieu, D’Arguesseau, Tocqueville, Berryer, Poincaré, Malesherbes, De Sèze, Henri Robert, Maurice Garçon...

Malesherbes e De Sèze defenderam Luís XVI perante o Tribunal Revolucionário. O rei foi condenado à morte e Malesherbes também foi guilhotinado porque o defendeu. Quanto a De Sèze, também esteve preso, mas foi depois libertado.

Os dois últimos da lista - Henri Robert e Maurice Garçon - sempre foram autores constantes das minhas leituras em torno da profissão, sobre a qual o primeiro escreveu um livro clássico - L'avocat, repositório inigualável de observações aparentemente destinada aos jovens advogados, mas que é uma obra escrita com graça e leveza, e é lida prazerosamente pelos não iniciados nos temas forenses. Henri Robert ainda é autor de outro livro clássico, Os grandes processos da história, que seduz e encanta a qualquer tipo de leitor.

Maurice Garçon é escritor notável, autor de livros de grande sucesso: Eloquência judiciária, Procès sombres, Lettres ouvertes à la justice, Defense de la liberté individuelle e o notável Plaidoyers chimériques, que são defesas de personagens da literatura, de Electra, Otelo, Julien Sorel, Don José, Lafcadio... Dentro dessa mesma ordem de ideias, há o livro famoso de Enrico Ferri, Os criminosos na arte e na literatura, no qual são analisados os criminosos nas artes decorativas, os assassinatos incestuosos na tragédia grega, a trilogia de Shakespeare - Macbeth, Hamlet e Otelo, Os bandidos, de Schiler, os crimes nos romances e nos dramas judiciários, O último dia de um condenado, de Victor Hugo; os criminosos nos romances de Zola, Thérèse Raquin, Germinal e Besta humana; nos romances de Bourget, de Coppel, de d’Annunzio, de Ibsen, de Tolstoi, de Dostoievski.

Faço o registro e puxo a brasa para a minha sardinha: Henri Robert, Maurice Garçon e Enrico Ferri foram advogados criminalistas...

Malesherbes, também, ligado aos enciclopedistas, teve atuação muito destacada na divulgação do pequeno grande livro Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria, editado em 1764 e que ainda não perdeu a atualidade, porque é a base, o alicerce, o sustentáculo de um novo direito penal, que enfrentou as concepções atrasadas e os métodos tenebrosos dos praxistas da Idade Média, no combate à pena de morte, por sua pregação abolida em toda a Europa ocidental na maior parte do mundo.

O Patrono Adelino Fontoura

No livro do Centenário da Academia Josué Montello assinala que, na sua criação, prevaleceram os fatores de ordem cordial sobre os de ordem intelectual, tanto em relação aos seus fundadores quanto à escolha dos patronos das diversas Cadeiras. E frisa que Adelino Fontoura foi um dos beneficiários desse “critério afetivo”, apesar de seus “escassos méritos intelectuais”.

Afonso Taunay, sucessor de Luís Murat, não lhe encontrou obra ou atividade que pudesse justificar um comentário a seu respeito. Ivan Lins, no discurso de posse, sucedendo a Afonso Taunay, principia a sua fala com ironia, invocando observação de Afrânio Peixoto, segundo a qual pessoas como Adelino Fontoura se têm valido da Academia como um seguro de vida literária, que lhe garante a imortalidade: “Não fosse ele o patrono da Cadeira nº 1, ninguém saberia nem mesmo da sua existência”.

O espírito pesquisador de Ivan Lins fê-lo descobrir dados pessoais e quase toda a produção literária de Adelino, por intermédio de Múcio Leão, que honrou uma das Cadeiras, de 1934 a 1969, e foi presidente da Academia em 1944. Ficou apurado que o patrono da Cadeira no 1 nasceu no Maranhão, em 1859, veio para o Rio de Janeiro aos 20 anos, era amigo de infância de Artur Azevedo, trabalhou no comércio e se iniciou na imprensa no jornal O Combate, de Lopes Trovão, consagrado à propaganda republicana. Depois, a convite de Ferreira Menezes, que muito o apreciava, passou a trabalhar na redação da Gazeta da Tarde, e “foi aí que desabrochou plenamente o incontestável talento de Adelino”. Ivan Lins ainda informa que ele publicou em O combate o terceiro capítulo de O imbróglio, romance que seria escrito por 20 autores, e cujos Capítulos 1 e 2 já haviam saído antes, da autoria de Araripe Júnior e José do Patrocínio.

João Ribeiro, que o conheceu, diz que ele lhe dava a impressão de “um sujeito de bom gosto nas letras, mas ignorante e talvez presumido”.

Ivan Lins ainda transcreve a opinião de Aluísio Azevedo sobre o patrono da Cadeira que hoje passo a ocupar, na qual o perfil de Adelino Fontoura é apresentado como um grande espírito de contradição:

Ele deixa transparecer o seu talento, porque supõe que com isso desagrada. No dia em que se convencesse que o desejavam inteligente ele se fingiria estúpido. Tudo, menos concordar com a opinião pública! Entretanto, quer ele queira, quer não queira, há de ser fatalmente um talento de primeira mão. Mas o seu talento vê uma légua adiante da sua instrução. Fontoura o que possui não vem de fora, vem de dentro. Tirem-lhe o grande espírito original, que constitui a sua individualidade artística, e ele ficará reduzido a um tipo rabugento e vulgar. Com um pouco de trabalho poderia ser uma das rodas principais da geração antipática ao Sr. Sílvio Romero, mas Fontoura aborrece o trabalho de paciência e deixa que o talento vague a seu bel-prazer. Adora o Ramalho Ortigão e tem 23 anos incompletos. Sabe fazer versos, e, quando alguém o desagrada, ele ataca seis adjetivos e oito advérbios explosivos, que atordoam o adversário. De resto, um caráter perfeito. Tem garras ferinas no estilo, mas penugens angélicas no coração. Uma mulher dificilmente o amaria, porém qualquer criança o adora.

Adelino Fontoura morreu tuberculoso aos 25 anos de idade e, segundo o discurso de Ivan Lins, é o único patrono da Academia que não deixou nenhum livro publicado, e só pelo depoimento dos que com ele conviveram se pode ajuizar do seu valor.

O certo é que Adelino Fontoura causou uma forte impressão, por seu talento pessoal, junto à intelectualidade do seu tempo, o que atenua, de certo modo, a estranheza por sua escolha para patrono da cadeira no 1. Ele devia estar atravessando uma aura popular no momento em que Luís Murat indicou o seu nome. É o que se pode razoavelmente presumir. Decerto, a razão do coração deve ter prevalecido, porque ele, embora bom poeta, não tinha a nomeada, a obra ou o prestígio intelectual exigível para ser padroeiro de uma curul da Academia. Murat deixou-se influenciar pelo sentimento. A escolha de Adelino Fontoura era mais uma homenagem do que o reconhecimento das qualidades excepcionais que todos imaginam devessem ornar a personalidade de um patrono.

Luís Murat

É o fundador da Cadeira nº 1. Tanto Afonso Taunay, seu sucessor, quanto Ivan Lins, que o sucedeu, fizeram demorada apreciação sobre a vida e a obra de Luís Murat. Taunay destaca, no adolescente, a inteligência agílima e penetrante, aliada à exuberância do temperamento, que o levava a destaque merecido entre mestres e colegas na Faculdade de Direito de São Paulo. Ainda preparatoriano, fundou o Ensaio Literário, órgão do Clube Literário do Curso Anexo, que tinha como dístico, no alto da primeira folha: “O homem nasceu para o trabalho, como as aves para o voo”. Taunay observa que “o mote calhava bem às tendências do estreante que, de fato, sempre se mostraria, durante meio século, escritor apaixonado no manejo da pena”.   

Formado em direito, Murat passou a advogar no Rio de Janeiro, quando se operava acentuada renovação intelectual, na década em que se abolia a escravidão e se proclamava a República. Havia uma ambiente de agitação política, a que aderiu, com entusiasmo, o fundador de nossa Cadeira. Publicou o primeiro livro em 1885, aos 25 anos de idade - Os quatro poemas ­­-, com um duro prefácio, em linguagem violenta, num estilo rococó, cheio de ornatos, contra os possíveis ou futuros críticos de sua obra.

Houve resposta, à altura, da agressão, e Murat replicou usando a mesma contundência do prefácio, rompendo “com a rapaziada de sua geração, por quem, como era de esperar, não se viu poupado”.

Murat publicou depois A última morte de Tiradentes, muito criticada por Taunay, que a considera inverossímil e estrambótica, assinalando que o próprio Murat a refundiu 25 anos depois.

José Veríssimo comparou-o a Casimiro de Abreu e recebeu resposta áspera: “Não sou discípulo de Casimiro de Abreu nem de ninguém: mon verre n’est pas grand, mais je bois dans mon verre.”

Veio a República e Murat teve reconhecida a sua dedicação à causa, com a escolha para compor a delegação fluminense à Assembleia Constituinte, onde se revelou, ainda segundo Taunay, parlamentar saliente, orador fogoso, espontâneo, fluentíssimo possuidor de vocabulário opulento, angariado pelo exercício contínuo da poesia e da rebusca da linguagem. Antes imprimira o primeiro tomo de Ondas em que se lhe acentuara a feição filosófica da poesia."

Em seguida às peripécias da política, quando ficou ao lado de Deodoro contra Floriano, Murat exilou-se no Prata. Taunay faz uma exposição extensa e magnífica sobre esse exílio, que tornava Murat infelicíssimo, com o reavivamento de antiga paixão da mocidade, e escrevia os versos de Sara. Floriano sufocou a revolta da marinha e do federalismo rio-grandense. Murat voltou e foi absolvido por um júri paranaense.

Deixando a política, voltou à poesia e publicou o segundo e o terceiro tomos de Ondas, firmando neste último a “feição filosófica” de sua poesia. (Taunay)

Retornou à política, em 1909, fez tenaz oposição ao governo de Hermes da Fonseca.

Em 1917, empolgado pelas doutrinas de Emanuel Swedenborg, fez profissão de fé religiosa, e a elas se dedicou “com as veras do habitual arrebatamento”. Dessa religião talvez haja sido ele o único seguidor de renome no Brasil.

Luís Murat teve um sucessor que não só lhe traçou um perfil magnífico, mas deu, também, no seu discurso de louvor, uma dimensão à altura da personalidade do sucedido.

Afonso Taunay

No discurso de posse nesta Academia, Ivan Lins fez uma longa exposição em que o perfil de Afonso Taunay aparece de modo tão completo e perfeito que os sucessores seguintes quase se sentem dispensados de focalizar a sua personalidade e a sua obra, porque nada de novo podem trazer ao vosso conhecimento.

Essa razão pela qual pouco direi sobre a figura do notável historiador que foi o segundo ocupante da Cadeira nº 1. A ele se deve a reorganização do Museu Paulista, onde revelou aptidão incomum de administrador. Ivan Lins registra uma excentricidade de Afonso Taunay: ele não admitiu o retrato da Marquesa de Santos na galeria do Museu, conservando-o no chão, num canto do almoxarifado.

Ao substituí-lo, Sérgio Buarque de Hollanda revogou a discriminação e mandou colocar o retrato da Marquesa ao lado dos demais. Mais tarde, visitando o Museu, Taunay estranhou a presença, na galeria, do retrato condenado, não se conteve e exclamou: “Mas então penduraram o retrato dessa tipa! Não ofenderão os melindres das famílias de São Paulo?”

Taunay publicou vários trabalhos e livros de história e é realmente um culto conhecedor dos fastos do passado. Ivan Lins salienta que ele, “quase sem o perceber, estabeleceu uma nova era em nossa historiografia e trabalhou para que outros, valendo-se dos tesouros por ele desencavados, possam fazer livros e mais livros em que somente terão de preocupar-se com a forma e a apresentação, interpretando e sintetizando os documentos que generosamente pôs ao alcance de todos”. Os escritos de Taunay chegam a uma centena e meia de volumes e foi notável a sua contribuição para os Anais do Museu Paulista, onde publicou tantos documentos preciosos.

Ivan Lins ainda destaca a prodigiosa memória de Afonso Taunay para “reter nomes, datas e fatos”, e “conservou-a até os seus últimos dias”.

Taunay deixou o professorado na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo para não abandonar a direção do Museu, que foi a grande paixão de sua vida.

Afonso Taunay era apontado unanimemente, “há vários anos como o nosso maior historiador, e desde 1944, ao ser eleito membro da American Historical Association, por proposta de historiadores do valor de uma Bernadotte Schimitt, de um Valdo Leland e de um Guy Stanton Ford, pode antecipadamente ouvir a voz consagradora da posteridade, que tal é, para os vivos, no dizer de Capistrano, a voz do estrangeiro”.

Afonso Taunay mereceu a imortalidade que lhe destes e honrou a Cadeira acadêmica em que se assentou, durante 46 anos, por vossa escolha.

Ivan Lins

De Ivan Monteiro de Barros Lins posso falar sem consulta a qualquer documento. É só puxar pela memória, fechar os olhos e lembrar. A nossa aproximação vem de longa data, desde 1930, das minhas frequentes visitas à sua casa, onde também morava o seu irmão - Miguel -, meu colega de Faculdade, meu amigo durante mais de 50 anos, amizade que durou até a sua morte, há dois anos. Desde aí, Ivan era um estudioso, um leitor compulsivo dos clássicos, aprendia latim com o pai, ministro Edmundo Lins, então presidente do Supremo Tribunal Federal, homem de grande saber, de cultura enciclopédica. Tornara-se um humanista. Numa das estantes do meu escritório há uma prateleira repleta de livros de Ivan Lins. Levanto, apanho um deles e leio, na dedicatória afetuosa, que até o nome Lins, indicador de longínquo parentesco, como seu pai tinha descoberto em alfarrábios dos quais tirava os elementos para levantar a árvore genealógica da família, era razão para fortalecer os vínculos de afeição que nos prendiam. É uma amizade hereditária que se vem transmitindo às novas gerações.

Ivan Lins tinha, como poucos, as qualidades para integrar a Academia. Era um humanista com um currículo invejável. Mais do que isso, era autor de obras clássicas como Thomas Morus e a utopia; Aspectos do Padre Antônio Vieira; História do positivismo no Brasil; Erasmo, Descartes: época, vida e obra; A Idade Média, a Cavalaria e as Cruzadas; Lope de Vega; e mais e mais. Ivan Lins era, sem dúvida, um candidato hors concours à Academia. E o prêmio lhe veio por um reconhecimento natural de seu valor, valor autêntico, comprovado por obras valiosas de um escritor de eleição, que sempre atuou nas mais altas atmosferas morais e mentais. Intelectuais como Ivan Lins são candidatos natos à Academia.

Por uma coincidência extraordinária fui advogado de Ivan Lins num processo movido por um filho de Agripino Grieco, quando este faleceu, sob a alegação de injuriar a memória do morto, injúria que estaria contida num artigo de jornal, em que havia uma apreciação crítica sobre a obra de um literato e se constituía num direito de quem comenta e faz história sobre a personalidade de um escritor. Em vários trechos dessa defesa, é invocada a condição de Ivan Lins como membro da Academia e é lembrada uma carta do próprio Agripino dirigida a Ivan, reconhecendo nele “uma alma sem linhas oblíquas, sem recantos de sombra”, não havendo nos seus livros “palavras que apunhalem e envenenem”. O processo era, realmente, uma inversão de valores. O morto - dito injuriado - fez da irreverência, do sarcasmo e do epigrama o seu próprio estilo literário, a razão do seu êxito como escritor. Ivan Lins, homem reto e bom, viveu estudando para produzir uma obra literária inconfundível e séria, como ensaísta, crítico, historiador e filósofo. O outro foi, sem dúvida, um notável epigramista, que feriu, agrediu e ofendeu, sem contemplação, mortos e vivos, com o dito malévolo, com o trocadilho faceto, com a zombaria chocarreira, com o gracejo atrevido, com a chalaça grosseira. Nessa defesa mencionamos vários acadêmicos que haviam sido vítimas das aleivosias de Agripino, como Viriato Correia, Múcio Leão, João Ribeiro, Jorge de Lima, Rodrigo Octavio.

O Tribunal Federal de Recursos, foro privativo, à época, para julgar os conselheiros dos Tribunais de Contas, repeliu a queixa e absolveu Ivan Lins.

Vinte e cinco anos depois, a Academia me elege, por uma combinação caprichosa do destino, para ocupar a mesma Cadeira em que aqui se assentou o meu amigo e cliente ocasional, o erudito Ivan Monteiro de Barros Lins.

Personalidade de Bernardo Élis

Bernardo Élis, quando aqui chegou, veio acompanhado de uma vasta e bela obra literária, que o colocava entre os grandes escritores de sua geração. No discurso de recepção, o saudoso Acadêmico Aurélio Buarque de Holanda fez um magnífico estudo de todos os livros do nosso confrade. Em determinado momento, quando fazia objeções à sua linguagem popular, não se conteve e, num arroubo, exclamou:

... o santo Bernardo é forte, Sr. Presidente. Eu, que estou aqui a opor-lhes algumas reservas, se pego a reler um conto seu, ou o seu romance, sinto que há no diabo do homem algo de um poder mágico. É a magia do criador poderoso que ele é. Criador e estilista dos grandes, dos altos, dos sérios deste País.

Pois é dessa extraordinária figura de intelectual, privilegiado homem de letras, talentoso semeador de cultura e de beleza, fascinante incitador de emoções, que hoje tenho de apreciar a personalidade e a obra.

Bernardo Élis Fleury Curado, é seu nome por extenso, nasceu em 1915, e um traço característico de sua personalidade, no depoimento de seus biógrafos e de seus amigos, era uma invencível timidez.

A professora Nelly Alves de Almeida, no livro Presença literária de Bernardo Élis - Antologia, escreve que ele, “dono de grande inteligência e séria timidez, traz, neste último fator, uma das características muito fortes de sua personalidade” (p. 11).

De seu amigo o escritor Gabriel Nascente, de quem obtive preciosas informações, também recebi carta, na qual destaca: “Homem de pouca conversa, silencioso e tímido, estupidamente tímido”.

Sua viúva e prima, a artista plástica Maria Carmelita Fleury Curado, enviando-me dados sobre a personalidade do marido, frisou a sua “simplicidade”, ele “não foi somente um escritor, foi dono de uma vasta cultura” e “sua grande alma era retratada na sua figura física, altaneira, nobre, sem ser orgulhosa”. Informa, ainda, que “ele foi um cidadão que sempre esteve na vanguarda de novas tendências socioeconômicas e políticas do País”. Dela ouvi que ele foi do “Partidão”, isto é, Partido Comunista Brasileiro. Em outubro de 1964, foi aposentado na Escola Técnica de Goiânia e demitido de sua cadeira na Universidade Federal de Goiás. O Diário da Manhã, de Goiânia, do dia seguinte à sua morte, dedica várias páginas ao escritor, e entre o noticiário está referência a um relatório do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) revelando a sua participação na fundação, em 17 de março de 1946, da seção regional do Partido Comunista.

A professora Nelly Alves de Almeida, na apresentação de seu livro, resume, em traços largos, dados pessoais de Bernardo Élis:

Fez primeira comunhão, andou a cavalo, viajou de caminhão, Ford modelo T, que transportava malas de correio... tomou bomba nos exames de admissão ao ginásio, graças às complicações de um maldito carroção... banhou-se gostosamente nos rios, fez pescarias, misturou-se às gentes simples, sonhou muito e leu demais. Andou a braços com Victor Hugo, Camões, Bernardes, Balzac, Flaubert, Drummond de Andrade, José Américo de Almeida, Machado de Assis e muita “gente boa”. Teve conhecimento das marchas e contramarchas da Coluna Prestes e andou se escondendo, com a família, ora aqui, ora ali, tanto dos revoltosos como das tropas legalistas. Viveu vida de gente do mato, lidou com campeios, desleitamentos, plantios de roças, assistiu a “festas rodeias”, onde, sem dúvida, colheu muito do que, hoje, salta em profusão em suas produções literárias, através da linguagem dos temas, das mensagens que o engrandecem.

E esta curiosidade, que, até agora, não tínhamos lido em canto nenhum:

Estudou flauta e quis também aprender bombardino com pretensão de integrar a “Banda 13 de Maio”, de Corumbá... Sonhou com cidades grandes, teve paixão pela obra dos modernistas, a cujo lado, hoje, caminha levado pelo sucesso. Assistiu às lutas para a mudança da Capital do Estado. Sofreu dificuldades financeiras. Trabalhou em jornais. Foi escrivão do crime e até prefeito de Goiânia por duas vezes. Sonhou com a cidade do Rio de Janeiro antes de conhecê-la. Viu de perto Mário de Andrade, Graciliano e teve carta elogiosa de Monteiro Lobato. Colecionou prêmios honrosos que elevam nossa literatura. É ocupante da Cadeira 18 na Associação Goiana de Letras - e já foi seu presidente. (pp. 11 e 12) 

O pai, Érico José Curado, comerciante, era poeta de projeção nos meios intelectuais do Estado, e dedicou um soneto (genetlíaco) ao filho quando este nasceu.

Em 1930 já lia Camões, Machado de Assis, Vieira, Padre Manuel Bernardes. Em 1933 as suas leituras eram de livros de Zola, Victor Hugo, José Américo de Almeida.

Em 1935, passou a trabalhar na redação do jornal oposicionista A Voz do Povo.

Com uma intensa atividade intelectual, foi ao Rio de Janeiro, em 1943, já com os dois primeiros livros - Primeira chuva (poesia) e Ermos e gerais (contos).

A saída de Ermos e gerais encontrou calorosas manifestações críticas, altamente favoráveis, de Tristão de Ataíde, Mário de Andrade, Rosário Fusco, Herman Lima...

Já formado em direito, tendo sido o orador da turma, passou a advogar em todo o Estado e a frequentar congressos de escritores e jornalistas. Em 1953 viajou à Europa e foi à União Soviética.

Continuou a desenvolver intensa atividade intelectual e, em 1956, publicou o seu romance O tronco, editado pela Livraria Martins, de São Paulo, por interferência de Jorge Amado, segundo a informação da professora Nelly Alves de Almeida, livro que teve muito sucesso.

A partir de 1961, passou a lecionar a cadeira de geografia humana, para a qual foi nomeado professor e vice-diretor do Centro de Estudos Brasileiros.

Não cessa a atividade intelectual de Bernardo Élis, e, em 1965, ganha o Prêmio José Lins do Rego, com o livro Veranico de janeiro, com a Comissão Julgadora composta por Herman Lima, Valdemar Cavalcanti e Otto Lara Rezende.

Nos anos seguintes recebeu o Prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, de São Paulo, considerando Veranico de janeiro o melhor livro de contos do ano.

Em 1967, passou a lecionar a cadeira de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia da Universidade de Goiás (Católica).

Nesse ano recebeu o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo livro de contos Caminhos e descaminhos.

Foi paraninfo e patrono de formandos de várias faculdades e fazia frequentemente conferências em grêmios literários e bibliotecas.

O currículo de Bernardo Élis é imenso. Dificilmente se encontrará um intelectual - mormente dos estados menos desenvolvidos - que tenha tido uma atuação igual à sua, com o reconhecimento ainda em vida da excepcionalidade do seu preparo, da sua competência e da sua criatividade.

A entrada na Academia

Com a publicação de tantos livros e com a conquista de tantos prêmios literários, Bernardo Élis tentou três vezes o ingresso na Academia e da última vez o seu concorrente era o ex-presidente da República Juscelino Kubitschek. Foi um pleito renhido, e Bernardo proclamado vencedor.  Só refiro esse episódio pela circunstância de Juscelino ter praticado um gesto de fidalguia e delicadeza, que só enaltece a sua figura de homem civilizado, superior, sem ressentimento: compareceu à posse de seu antagonista, cumprimentou-o e “foi ruidosamente aplaudido, de pé” (Gabriel Nascente). O Dr. José Luiz Bittencourt, ex-vice-governador de Goiás, também registrou o acontecimento, em artigo publicado no jornal de Goiânia O Popular, de 16 de janeiro de 1998:

Compartilhei da alegria de todos quando, já iniciada a cerimônia, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, solene, majestoso, altaneiro, elegante e nobre, desfilou pelo salão principal da Casa de Machado de Assis e se acercou do adversário no pleito acadêmico para cumprimentá-lo efusivamente. Uma cena que jamais esqueci, pois naquele instante a velha Diamantina, a tradicional Goiás e a histórica Corumbá se abraçavam numa mineirice goiana...

Ainda alguns traços da sua personalidade

Agora, no fim da vida, aceitou o convite do governador do Estado para presidir a Fundação Cultural Pedro Ludovico e sofreu uma terrível pressão dos artistas e dos escritores para deixar o cargo. Assim, compelido e atacado, pediu demissão. Sofreu muito com isso, e disse a Gabriel Nascente três dias antes de morrer: “Já não sinto mais nada pela vida. E tudo, em mim, tem gosto de sabão da terra”. Tudo indica que estava sob forte crise depressiva. Andava às voltas com ideias de suicídio e chegou a dizer confidencialmente: “Eu só não me mato com revólver porque tenho medo do estampido da bala”. Comenta Nascente: “Ele tinha coisas assim satânicas e jocosas. Tinha tão grande ódio da espécie humana que vivia exorcizando a sua própria presença”.

Todos salientam a dedicação e o carinho com que o tratou até a morte sua esposa e prima, a ex-freira Maria Carmelita Fleury Curado. Ele fora casado, antes, com a poetisa Violeta Metran (já falecida), de quem teve três filhos: Ivo, Silas e Simeão.

A obra de Bernardo Élis

Bernardo Élis teve consagração subitânea com a publicação de seu primeiro livro - Ermos e gerais –, saudado imediatamente e com entusiasmo por Monteiro Lobato, que vaticinava: “... teremos em Bernardo Élis o mais prodigioso escritor do Brasil moderno, o primeiro grande manejador de imensa massa de dores, estupidez crassa e tragédia que é o imenso Brasil analfabeto do interior...”

A unanimidade da crítica aplaudiu o livro e o Acadêmico Francisco de Assis Barbosa fez uma apreciação laudatória, dando ao nosso homenageado o pioneirismo em novo ciclo da ficção literária brasileira:

Desde 1944, com Ermos e gerais, Bernardo Élis se tornou vanguardeiro de um novo ciclo da ficção brasileira - o do sertanismo goiano-mineiro. Cronologicamente, é ele o primeiro. Vieram depois Guimarães Rosa (Sagarana é de 1946), Mário Palmério (Vila dos confins, em 1956) e José J. Veiga (Os cavalinhos de Platiplanto, 1959). E a literatura do Oeste passou a competir em prestígio e significado nacional com a literatura do Nordeste...  Ermos e gerais bem que pode ser considerado o marco deste da nossa rosa-dos-ventos literária, uma antecipação, tal como A bagaceira para o ciclo nordestino.

Quando da posse de Bernardo Élis, o discurso de recepção de Aurélio Buarque de Holanda fez um primoroso exame de toda a sua obra e comparou a ascensão de Élis àquela que fizera Machado de Assis, com pertinácia e confiança. Aqui, sem estabelecer paralelo, faço o registro de que o escritor goiano tinha o mesmo defeito de elocução do nosso patrono: também sofria de gagueira, não muito acentuada.

Alceu Amoroso Lima recebeu com entusiasmo a criação linguística de Bernardo Élis:

Acostumou-se, desde menino, a falar a língua do povo e a sentir de perto o drama dos pobres, dos injustiçados, dos perseguidos. Assimilou tudo isso de tal modo, tanto a realidade social inumana como a expressão linguística extremamente humana daquele povo, que no dia em que a sua vocação literária irreversível despertou, o que nos deu foi ao mesmo tempo uma obra de verdade social impressionante e uma criação linguística de uma beleza e de uma originalidade absolutamente singulares.

O estudo do seu estilo já está em ponto de merecer uma análise linguística científica, tal a sutileza da sua oralidade... É uma fusão rara entre o culto e o falar popular.

E Antonio Candido, autor do hoje clássico Formação da literatura brasileira, afirmou: “A minha impressão é que subiu a uma altura de mestre original com Veranico de janeiro, e que na literatura brasileira poucos podem gabar-se de ter encontrado uma fórmula narrativa tão eficiente”.

Ninguém mais autorizado que Guimarães Rosa, de seu naipe de escritor, sobre o emprego de uma linguagem ao mesmo tempo culta e popular. Rosa ficou fascinada com uma segunda leitura de O tronco e escreveu a Bernardo Élis dizendo que o fez “com a mesma viva admiração de quem se entusiasma com uma urdidura bela, palpitante, nova”. E é hiperbólico quando refere que se deliciou com o livro Caminhos e descaminhos: “Formidável aquele conto (‘Aqui, ali acolá?’) dos índios, da indiazinha com a veadinha. Ninguém, em país nenhum, nenhum tempo, parte alguma, escreveu coisa melhor!” (grifo nosso).

Cada conto de Bernardo Élis é um artefato produzido por seu engenho e imaginação para penetrar e ficar na memória do leitor. Ninguém esquece mais o seu enredo e os seus personagens.

Aurélio, no discurso do dia da posse do saudoso confrade a quem hoje sucedo, transcreveu trechos de muitos deles. Decerto terão sido os que mais o agradaram, como “Rosa”, por exemplo. E lá está escrito:

“Rosa” é um pedaço da natureza. Uma força da natureza. No conto que lhe traz o nome, não só os seres humanos, mas a natureza toda, animais, vegetais, coisas, são personagens. Toda aquela armação de tempestade é antológica: antológica é a história inteira. Os pios aflitos dos sabiás-de-rabo-mole “varavam o coração de Rosa e punham em suas feições uma sombra de bruteza e dor”.

O talento de Bernardo Élis tem vocação dirigida para representar o trágico e transmite ao leitor a sensação das angústias, sofrimentos e desgraças dos seus personagens.

Muitos outros contos do nosso homenageado, talvez possamos dizer todos, têm a marca do seu alto poder de descrição. Por exemplo, “A enxada”, que Aurélio Buarque de Holanda considera “o mais aclamado sobretudo (creio) pelo seu alto teor e substância social, pela extraordinária pungência que o assinala. É um ferrete. Conto rico, soberbo, mas igualado por outros...”

Quando Élis morreu, o editor da revista do Diário da Manhã, de Goiânia, Welliton Carlos, escreveu um artigo magnífico comparando “A enxada” a um dos filmes mais importantes do cinema italiano, Ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica. O personagem do filme é um operário que, logo depois da guerra, sem emprego, para sustentar a família, adquire, com o maior sacrifício, uma bicicleta de segunda mão como instrumento de trabalho, mas ele foi roubada no primeiro dia, tirando-lhe o único meio de subsistência de que podia dispor num país que saíra derrotado da guerra. O jornalista mostra a similitude: “A enxada é para o homem do campo o mesmo que a bicicleta representa para o operário da Roma urbana”. O conto de Bernardo Élis é comovente, dramático, é a estória da amargura de um homem que precisa trabalhar e não consegue o instrumento necessário, é “um personagem de fazer inveja aos mineiros de Germinal, obra-prima do mestre Émile Zola... deve ser difícil encontrar alguém no mundo que tenha sofrido tanto como os tipos encontrados nos causos (sic) contados pelo maior escritor goiano”.

Gilberto Mendonça Teles, no seu trabalho O conto brasileiro em Goiás, fala de “A enxada” para dizer que Bernardo Élis aí aparece novamente em contato com a preocupação social, neorrealista e praxista na sua filosofia literária, agnóstico no caracterizar a vida e a alma das suas personagens, comprazendo-se na exploração do grotesco e desumano, como aqueles farrapos humanos de “A enxada”, cujas mãos se transformam na enxada negada pelo patrão e se exibem como “duas bolas de lama, de cujas rachaduras um sangue grosso corria e pingava, de mistura com pelancas penduradas, tacos de unhas, pedaços de nervos e ossos”.

Esse conto é, talvez, o mais dramático e característico do “humor negro” em Bernardo Élis, preocupado sempre com o fundo social de sua obra, em que as personagens são sempre os párias, indigentes, loucos, agregados miseráveis, enfim, toda uma galeria de personagens neonaturalistas, teratológicas, com suas taras e problemas, numa visão macabra e terrível do mundo, como se não houvesse, nunca, para o homem pobre a beleza da felicidade material, porquanto a outra felicidade, aquela que mais se identifica com a natureza do espírito, esta parece completamente alheia à obra de Bernardo Élis.

Vale dizer, ainda, para concluir, que o conto “A enxada” termina acentuando e dando continuidade a um estado de vida de conformação na pobreza, de resignação no medo, numa passagem realmente admirável e também cinematográfica - o bobo carregando a mãe nas costas, pedindo esmolas - que não deixa de ter grande semelhança com um episódio dos retirantes, em A bagaceira, numa possível influência de leitura.

O tronco foi o livro com que Bernardo Élis estreou como romancista e, segundo Gilberto Mendonça Teles, aproveitando fatos reais da história de Goiás, ocorridos por volta de 1920, no Município de Dianópolis, no norte do Estado, que deu lugar “a polêmicas, principalmente por andarem os críticos confundindo história e ficção, como se o romancista, em vez de romancista, fosse historiador”. E acrescenta:

Estruturalmente tradicional (na linha tradicional da novelística brasileira), mas vazado numa linguagem plasticamente satisfatória, o romance de Bernardo se inscreve entre aquelas obras que, sem constituírem grandes mensagens humanas, têm o mérito de permanecer como documento, ilustrativo de  uma época e de uma sociedade. Mas, além disso, O tronco é portador de um material de fundo político-social que se reacende e se transforma num conflito de força dramática admirável e terrivelmente humana.

O Poeta

Bernardo Élis também foi bom poeta (Primeira chuva). Para a minha sensibilidade, prefiro os seus contos, que foi o que ele de melhor produziu. Na ordem do meu gosto, depois vêm os romances, especialmente O tronco, se bem que me tenha agradado muito o outro – Chegou o governador. A poesia não tem o vigor, a chama, o calor que ele imprime à prosa, em que é, na opinião geral, a que me agrego, um grande escritor. Mereceu a distinção que a Academia lhe conferiu.

Conclusão

Há um simbolismo na escolha do dia de hoje para esta cerimônia. Em 11 de agosto de 1827 fundavam-se os cursos jurídicos no Brasil e se instalavam as Faculdades de Direito de São Paulo e Olinda. Para um bacharel nada poderia haver de mais significativo do que esta data, em que recebo a nímia distinção que me outorgastes. Pela data, pelo evento em si mesmo, pelos personagens em cena, olho para trás e não posso deixar de ligar esta festa à Ordem dos Advogados do Brasil, de cuja criação sou contemporâneo, pois comecei a minha carreira, na tribuna do júri, quando ela estava sendo fundada e instalada por Levi Carneiro, primeiro batonnier da classe, que honrou uma das Cadeiras desta Academia; dela fiz parte como conselheiro regional e federal durante mais de 20 anos, em épocas diversas, e dela recebi a láurea maior da medalha Rui Barbosa, que me dá regalia de participar de suas reuniões, como se membro nato fosse; a ela prestei serviços no curso deste século tão atribulado e tão cheio de turbulências, em períodos ditatoriais, na defesa da liberdade e da cidadania de perseguidos políticos; a ela, na pessoa do presidente Reginaldo Oscar de Castro, faço uma saudação especial, e a quem peço que transmita a todos os advogados, dos mais distantes rincões aos grandes centros do País, a mensagem de um dos decanos da profissão que, apesar dos temores e inquietações que o mundo atravessa, numa fase de profunda transição, em que estão sendo abaladas estruturas e conceitos de poder, continua fiel ao ideário democrático que Rui Barbosa nos legou, a democracia social, por ele pregada no famoso discurso de 1919, quatro anos antes de morrer, quando frisou “a incomensurável transformação das noções jurídicas do individualismo, restringida agora por uma extensão cada vez maior dos direitos sociais”. As incertezas e nuvens que ainda me preocupam, entretanto, não alteram a minha fé no futuro. Como Miguel Torga, continuarei “com a mesma pertinácia a ser sinaleiro da esperança no caminho de quantos, neste vale de lágrimas, desesperaram de a encontrar”.

Não me sentiria bem se, neste discurso, não fizesse uma referência aos que, no limiar da carreira, me mostraram a porta de entrada e serviram de inspiração e modelo a um atrevido principiante: Antônio Eugênio Magarinos Torres, juiz presidente do Tribunal do Júri e meu padrinho de formatura; João da Costa Pinto, advogado não diplomado, que me ensinou o caminho da tribuna do júri; Evaristo de Moraes, a maior formação de advogado criminal do Brasil, 41o Acadêmico, pela obra que deixou, pela atuação profissional e pelo prestígio intelectual de que desfrutava (não foi acadêmico, mas mandou o filho, seu herdeiro pelo talento e pela cultura, para a Cadeira no 40); Roberto Lyra e Mário Bulhões Pedreira, que só não estão na Cadeira 41 porque ela já está ocupada pelo velho Evaristo...

Se mencionei tanta gente, devo uma palavra à minha mulher, Musa, companheira de 41 anos, que, se viva fosse, este discurso teria certamente um condimento de Proust (ela era proustiana de fé), um dedo de Anatole, uma pitada de Eça, um tempero de Machado de Assis, e talvez um soneto de Camões e um verso de Guerra Junqueiro, de Drummond ou de João Cabral...

Dirijo, agora, comovido agradecimento a todos os que compareceram a esta solenidade, autoridades que compõem a mesa, parentes, amigos e colegas, prestigiando-a com a sua presença.

Senhores Acadêmicos:

Subi em todas as tribunas do Poder Judiciário. Foi o meu cotidiano durante mais de meio século. Nessas andanças, para dar uma notícia de sua abrangência, posso dizer-vos: fui do marítimo ao canônico. Sim, um acidente no mar e uma anulação de casamento religioso. Falei desde a mais modesta pretoria até a Corte Suprema. Falei perante o Senado e em Comissões Parlamentares de Inquérito. Falei no odioso Tribunal de Segurança Nacional, no Tribunal de Justiça Esportiva e até em alguns comícios. Falei vezes sem conta no Tribunal do Júri e falei em julgamento fictício de uma personagem de Shakespeare. Quando leio no livro de Maurice Garçon – Plaidoyers chimériques – que ele fez a defesa de Otelo, o passional da tragédia de Shakespeare, diante do público de uma universidade, vem-me à mente uma saudosa evocação do passado. Por instância de Pascoal Carlos Magno, poeta, diplomata e grande incentivador das artes, vi-me, certo dia de 1958, no palco do belo Teatro Santa Isabel, no Recife, para fazer a defesa de Hamlet, outro personagem famoso criado pelo genial dramaturgo inglês. Lá estavam Sérgio Cardoso, consagrado intérprete, e Carlos Araújo Lima, talentoso criminalista, com o encargo da acusação.

Maurice Garçon, com o seu talento incomum, dirigiu-se aos juízes imaginários de  Veneza e disse que a causa a ser por eles julgada era daquelas “em que, se a razão está revoltada, o coração se recusa a condenar”. Aqui, o advogado, sem os ornatos e louçanias do estilo do mestre francês, fez ardorosa defesa, que sustentou a inexigibilidade de outra conduta, nas circunstâncias em que agiu o louco personagem da tragédia.

Hoje o discurso é diferente: não estamos em assembleia de magistrados ou em suas variantes profissionais ou simuladas. Quem ascende a esta tribuna recebe o batismo da imortalidade acadêmica e dela desce ungido com a sagração do dito desvanecedor de Machado de Assis: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”.

[1] Do escritório também faziam parte Adelmar Tavares, que foi membro do Ministério Público, desembargador e membro efetivo desta Academia, e José Pereira Lira, ministro do Tribunal de contas da União, Chefe da Casa Civil do Presidente Eurico Dutra e professor de direito civil da UERJ e da Universidade de Brasília.