É prática ritual e salutar que, no momento da assunção do mandato de cada nova Diretoria, o presidente eleito perpasse instâncias inerentes à Academia e se situe diante delas. Passo a fazê-lo, no cumprimento do rito.
Asseguro-lhes que, atento ao antigo preceito latino, garantia de boa acolhida da opinião, serei breve.
A Academia Brasileira de Letras sedimentou e segue sedimentando, há algum tempo, no espaço da ação que se propõe, o cultivo de quatro procedimentos basilares. Privilegia o conhecimento. Assume a coragem de abrir-se para o novo. Orienta-se pelo que é justo. Não descura da prudência, do equilíbrio e da harmonia.
A eles, alia a atuação desinteressada e a atualização. Pensa a Cultura. Celebra a memória. Promove e estimula as práticas estéticas. É o que a reabastece. É o que a singulariza.
A Diretoria que ora assume o mandato estará atenta à continuidade do percurso histórico pavimentado, ao longo de seus gloriosos 118 anos, pelas que nos antecederam.
Sabemos camonianamente que “as coisas árduas e lustrosas se conseguem com trabalho e com fadiga”. Na compensação, o prazer de fazer e fazer bem feito.
Na melhor tradição da Casa, o Secretário-Geral ascende à presidência. Não por mera rotina. A sábia orientação privilegia a experiência adquirida, a intimidade com a realidade do agir e do administrar. Fundamenta-se na avaliação silenciosa do empenho e do desempenho. No presente caso, seguramente matizada pela generosidade.
Peço vênia para externar a minha gratidão pessoal ao Presidente Geraldo Holanda Cavalcanti pela corajosa confiança com que me distinguiu, ao convidar-me para integrar a sua Diretoria. Saibam todos que, do trabalho comum que nos reuniu ao longo do mandato, resultou a sedimentação de uma sólida e fraterna amizade que muito me desvanece.
E seja-me permitido fraturar a modéstia, para um registro extremamente honroso e tranquilizador: a presença na Diretoria, pela primeira vez na história da Casa de Machado de Assis, de duas ex- presidentes: Ana Maria Machado e Nélida Piñon, e de dois ex-secretários: Marco Lucchesi e Merval Pereira, que, para meu privilégio, me distinguiram com a aceitação do convite para dela participar.
Não bastasse a comprovada alta competência e o convívio fraterno, outros poderosos fatores asseguram a harmonia no trabalho a ser levado a termo: a amizade solidária, a total confiança mútua, a dedicação plena à Academia, a prevalência da Instituição sobre os interesses pessoais, preceito pétreo que cultuamos os diretores que ora assumimos.
Aos quatro companheiros de percurso, expresso o mais fundo agradecimento por terem concordado, e com entusiasmo, em coparticipar da missão. Em nome de todos, agradeço fundamente o alto privilégio da inédita votação por unanimidade com que fomos privilegiados. A distinção superlativa a nossa responsabilidade. Em contrapartida, oxigena o estímulo.
Estou consciente do que representa a investidura na presidência. Como ser individual, como ser social. As evidências, literalmente, me eximiriam de qualquer explicitação. A circunstância histórica, entretanto, ainda a recomenda.
Individualmente, gratifica em grande o voto de confiança. Significa também a culminância de um gradativo aprendizado de Academia, exercido ao longo de um cursus honorum que se estendeu pelos últimos nove anos, seis deles como integrante da Diretoria, talvez, por força de alguma ponta de masoquismo, prazerosamente.
No âmbito comunitário, a presidência reveste-se de representatividade, em função dos espaços ainda necessários, na realidade brasileira, da afirmação da identidade cultural da etnia de origem negra. Mesmo diante da privilegiada condição mesclada e miscigenada própria da comunidade nacional que integramos.
Nessa direção, indicia a assunção pela Academia, da tomada de posição para além dos estereótipos e do preconceito étnico ou epidérmico, nesse espaço ainda vigente no comportamento de muitos, veladamente; explicitamente; agressivamente; envergonhadamente; vergonhosamente.
Nesse sentido, a Casa de Machado de Assis, uma vez mais, situa claramente o seu posicionamento, em termos de nossa contingência comunitária. Não nos esqueçam os tempos fundadores de Joaquim Nabuco e de Machado de Assis, a ação pioneira de Afonso Arinos.
Entendo, a propósito, que, na realidade brasileira, respeitadas as opiniões em contrário, o núcleo de preocupação deve ser o combate contínuo e vigoroso ao racismo.
Os tempos são ásperos, sabemos todos.
Estamos cientes e conscientes da grave crise econômica literal e etimologicamente vivida pelo país. Somos a Diretoria da crise. Árduo será o percurso.
Estamos preparados para o desafio. Graças, sobretudo, aos que nos precederam e construíram progressivamente o caminho, ao longo do passado mediato e imediato.
Recebemos a Casa bem aparelhada e bem arrumada. Mas, sabemos, nem por isso invulnerável.
No traçado do rumo, buscaremos manter a altitude rotineira e a velocidade de cruzeiro, alertas ao aviso de apertar o cinto aos primeiros sinais de turbulência. Esperamos que não se faça necessário. Caso sejamos agraciados pelas benesses dos bons ventos, não hesitaremos em aproveitá-los para subir mais alto e acelerar, sem que seja preciso despender mais combustível.
A Academia nos imanta com a sua aura. Cada Acadêmica, cada Acadêmico, no passado, no presente e, ouso afirmar, no futuro assegura e assegurará, com a biografia de cada um e com a continuidade de sua produção e de sua ação, a permanência do brilho, a sua consistência, a respeitabilidade que a identifica junto à sociedade brasileira.
Somos os eventualmente agraciados, quarenta entre tantos que têm todas as condições de integrar seus quadros. Entretanto, como assinala com pertinência Alberto da Costa e Silva, a Casa não tem a pretensão de reunir todos os melhores da inteligência brasileira, mas os que a integram têm plena consciência de sua responsabilidade histórica. Desde o momento em que em menos de dez anos de sua fundação, a Academia passou a representar para os brasileiros, a excelência no plano da cultura, simbolização que persiste na atualidade.
Essa qualificação e esse reconhecimento nos honram e nos transcendem.
A missão de cada nova Diretoria implica continuidade e acrescentamento. Tem sido assim. Assim seguirá sendo.
Permaneceremos fiéis à cláusula pétrea do Estatuto e aos princípios que fundamentam a atuação da Casa.
A Academia é uma sociedade civil sem fins lucrativos.
Congrega cultores de ação e pensamento prioritariamente reunidos em torno da causa da língua que falamos, da literatura que nos identifica e que alimenta o imaginário brasileiro. E atua com independência.
Alerta à dinâmica dos registros idiomáticos, permanece atenta ao percurso e à mutabilidade do idioma oficial, imune a qualquer perspectiva radicalizante. Sabe do potencial político e econômico da língua portuguesa, mais que nunca evidenciado nos albores do século atual. Está ciente de que a sociedade brasileira, há muito, atribui a ela a condição de guardiã do nosso principal meio de comunicação. E seguirá fiel a essa confiança.
A língua e a literatura exigem de todos nós, mais do que nunca, o bom combate. Em especial a arte literária.
É consenso, a propósito, entre os que a ela se dedicam, que, impressa ou digitalizada, luta, há algum tempo, para assegurar o seu lugar de centro como produto cultural e seu prestígio no espaço educacional e pedagógico.
A tal ponto, que se faz oportuno e pertinente reafirmar a sua importância. Entre outros aspectos, lembrar que o convívio com o texto literário ajuda as pessoas a organizar o seu universo cultural. Possibilita-nos conhecer melhor a nós mesmos, ao mundo que nos cerca, à nossa relação com o mundo e com o outro. E mais: que o escritor é testemunha do seu tempo e que a literatura interpreta o presente, restaura emocionalmente o passado, possibilita projeção do futuro.
Cumpre reiterar que o texto literário contribui para a estruturação do imaginário nacional e para a formação da nacionalidade, leva o leitor ou ouvinte a questionar a realidade social que o cerca, propicia abertura para a transformação enriquecedora e mesmo para a afirmação de identidades, contribui para a formação da cidadania.
Sabemos todos os que navegamos nesses espaços. Sabe-o a Academia.
De par com o culto da língua e da literatura nacional, a Casa de Machado de Assis, numa visão aberta e moderna, dirige também a sua atuação para outras manifestações da cultura. De início, no âmbito da cultura feita, há algum tempo, no constante processo de atualização que a caracteriza, e logo da cultura fazendo-se no cotidiano brasileiro e planetário.
Assim direcionada, assegura a sua permanência significativa e a sua atualidade. É mais um de suas marcas singularizadoras, relevante, na contemporaneidade, em termos de cultura de consumo e de cybercultura. Parodiando e ampliando Machado de Assis, nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos e os pós-modernos: com os haveres de uns e de outros é que se constrói o patrimônio cultural do país.
Situo-me entre os que entendem que, forjada sob a égide da tradição, só assegurará a sua permanência e sua imagem comunitária, se aberta às exigências da dinâmica do processo cultural e consciente de sua função social. Respeitado o pensamento divergente.
A Diretoria que ora toma posse dará seguimento ao trabalho desenvolvido pelas que nos antecederam no processo de contínua construção. Para tanto, aberta ao diálogo, espera contar com a colaboração e a participação de todos os seus integrantes, para além de eventuais desencontros e divergências. Não nos esqueçamos de que a Academia são os acadêmicos e as acadêmicas e de que a Casa é para o Brasil. E, sobretudo, nos ultrapassa.
Não temos dúvidas de que o corpo de funcionários, que nos garante a imprescindível infraestrutura operacional seguirá fiel à dedicação e ao entusiasmo que é a marca da atuação de todos. E disso dou testemunho.
Na melhor tradição da Casa de Machado de Assis, posso assegurar-lhes, os diretores que ora assumimos, procuraremos agir com sabedoria, decidir com justiça, atuar corajosamente, e, mais que nunca no tempo brasileiro hoje, cultivar a temperança.
Muito obrigado.