OS POVOS-NOVOS E OS POVOS EMERGENTES
Os povos-novos, dentre os quais se inclui o Brasil, originaram-se da conjunção de matrizes étnicas diferenciadas como o colonizador ibérico, indígenas de nível tribal e escravos africanos, imposta por empreendimentos coloniais-escravistas, seguida da deculturação destas matrizes, do caldeamento racial de seus contingentes e de sua aculturação no corpo de novas etnias. Sua característica distintiva é a de species-novae no plano étnico, já não indígena, nem africana, nem européia, mas inteiramente distinta de todas elas. Ao contrário dos Povos-Transplantados que conservam o perfil europeu e dos Povos-Testemunho das Américas que conduzem dentro de si as duas tradições originais sem conseguir fundi-las, os Povos-Novos concluíram sua auto-edificação étnica, no sentido de que não estão presos a qualquer tradição do passado. São povos em disponibilidade, uma vez que, tendo sido desatrelados de suas matrizes, estão abertos ao novo, como gente que só tem futuro com o futuro do homem.
Mais ainda que os povos das outras configurações, os Povos-Novos são o produto da expansão colonial européia que juntou, por atos de vontade, as matrizes que os formaram, embora só pretendesse criar empresas produtoras de artigos exportáveis para seus mercados e geradoras de lucros empresariais. Esta intencionalidade de seu processo formativo distingue também os Povos-Novos como sociedades, em certa medida, instituídas; que surgiram como "certidões de nascimento", como a carta de Pero Vaz Caminha e suas equivalentes, que eram também títulos de posse da nova terra; que tiveram suas primeiras cidades fundadas por ordens expressas e continuam criando-as artificialmente; que foram sempre reguladas em sua vida econômica, social, política, religiosa e espiritual pela vontade estatal, representada por burocracias coloniais e continuam regidas por patriciados civis e militares, confiantes em que, pela outorga de leis e decretos paternalísticos, possam resolver todos os problemas dentro da velha ordem institucional.
Os primeiros instrumentos de implantação dos Povos-Novos foram as feitorias de escambo que trocavam com os índios bugigangas por produtos da terra. As instituições reguladoras fundamentais surgiram depois com a fazenda e a escravidão. A primeira forneceu o modelo organizacional de empresa que permitiu viabilizar economicamente a colonização, atrelando os mundos do além-mar aos mercados europeus. A segunda forneceu o mecanismo de conscrição da força de trabalho que permitiria reunir e desgastar milhões de homens, convertidos, também aqui, no principal combustível das empresas produtoras de ouro e prata, de açúcar, de algodão, de café, de cacau e de muitos outros gêneros tropicais.
As fazendas e as minas escravocratas, pondo em presença os europeus, como senhores, e os africanos e índios, como escravos, criaram condições para o advento maciço de mestiços gerados por europeus e índias, e de mulatos, gerados por europeus e negras, fazendo surgir, simultaneamente, um estrato sócio-racial intermédio, igualmente distanciado das matrizes originais. Este operaria como um novo agente de caldeamento racial e de entrecruzamento cultural para produzir novos mestiços e a todos incorporar na etnia nascente.
Os Povos-Novos se configuraram segundo padrões distintos, conforme fossem ou não estruturados como economias de plantação e, em conseqüência, contassem ou não com contingentes negros, e conforme se originassem ou não a partir de protocélulas étnicas, plasmadas antes da expansão do sistema de fazendas.
No caso do Brasil, da Colômbia, da Venezuela e de algumas das Antilhas, o negro não só esteve presente mas foi chamado a integrar-se em comunidades preexistentes já capazes de preencher requisitos mínimos de sociabilidade antes de sua chegada. O negro saía, assim, do desenraizamento de sua própria tradição - através da deculturação - para aculturar-se num corpo de compreensões co-participadas, de técnicas bem definidas de provimento da subsistência, de crenças e de valores de uma etnia embrionária. Ali onde, ao contrário, faltaram essas protocélulas étnicas, o escravo se encontrou só diante do capataz e do senhor. Não podendo entender-se com seus companheiros, tomados de outras tribos, teve de apelar ao mais fundo de sua humanidade para conservar-se humano, na condição de besta de trabalho a que fora reduzido. Nestas circunstâncias, ao ser deculturado, só aprendia a falar boçalmente a língua do amo e a produzir, segundo técnicas inteiramente novas para ele, exibindo, por isso, uma infantilidade que parecia corresponder ao seu primitivismo, mas que só exprimia as terríveis condições em que vivia, como carvão humano das lavouras e das minas. Este foi o caso do Sul dos Estados Unidos, das Antilhas inglesas, holandesas e francesas.
Ali onde a grande lavoura não se implantou - como no caso do Chile e do Paraguai - não se contou, por isto mesmo, com o negro e a influência indígena pôde prevalecer por mais tempo. O europeu teve então de indianizar-se mais ainda e as populações neo-americanas resultantes do cruzamento se constituíram predominantemente de mestiços índio-europeus falando freqüentemente - como os paraguaios - as línguas aborígenes e conservando muitos dos costumes originais, embora atuassem como os principais agentes da erradicação do gentio tribal.
Na formação racial e na configuração cultural destas variantes dos Povos-Novos, cada contingente contribuiu em proporções distintas. O indígena contribuiu, principalmente, na qualidade de matriz genética e de agente cultural, principalmente, na qualidade de matriz genética e de agente cultural que transmitia sua experiência milenar de adaptação ecológica às terras recém-conquistadas. O negro, também como matriz genética, mas principalmente na qualidade de força de trabalho geradora da maior parte dos bens produzidos e da riqueza que se acumulou e se exportou e, ainda, como agente da europeização, que assegurou às áreas onde predominava uma completa hegemonia lingüística e cultural européia. O branco teve o papel de promotor da façanha colonizadora, de reprodutor capaz de multiplicar-se prodigiosamente; de implantador das instituições ordenadoras da vida social; e, sobretudo, de agente da expansão cultural que criou nas Américas vastíssimas réplicas de suas pátrias de origem, lingüística e culturalmente muito mais homogêneas que elas próprias.
O quarto bloco de povos extra-europeus do mundo moderno é constituído pelos Povos-Emergentes. Integram-no as populações africanas que ascendem em nosso dias da condição tribal à nacional. Na Ásia se encontram também algumas configurações de Povos-Emergentes que cumprem neste momento esse trânsito. Isto se dá principalmente na área socialista, onde uma política de maior respeito às nacionalidades permite e estimula sua gestação.
Essa categoria não comparece na América, apesar do avultado número de populações tribais que ao tempo da conquista contavam com centenas de milhares e até milhão de habitantes. Esse fato, mais que qualquer outro, é demonstrativo da violência do domínio, tanto colonial - prolongado por mais de três séculos - como nacional, a que se viram submetidos os povos tribais americanos. Alguns deles foram rapidamente exterminados; os demais, subjugados e consumidos no trabalho escravo, se extinguiram como etnias e como substratos de novas nacionalidades. Entretanto, seus equivalentes africanos e asiáticos, a despeito das duríssimas formas de compulsão que sobre eles se exerceram e do terrível impacto sofrido, emergem hoje à vida nacional.1
Os Povos-Novos das Américas - e entre eles o Brasil - demonstram, em seu atraso relativo, o que resulta de processos formativos institucionalizados pelo sistema de fazendas e pela escravidão dentro de movimentos de colonização que se exercem sobre populações de nível tribal. Seus desempenhos evolutivos, tanto no curso da civilização agrário-mercantil como na urbano-industrial, foram e são medíocres e contraditórios. Criaram, ontem como hoje, empresas prodigiosamente prósperas mas de prosperidade não generalizável à população, nem capazes de permitir um crescimento econômico acelerado porque transferem ao exterior a maior parte dos frutos do trabalho nacional. Como tal, geraram uma estratificação social encabeçada por uma classe dominante consular porque dependente de interesses exógenos, e retrógrada porque oposta a qualquer transformação profunda na estrutura sócio-econômica. E classes oprimidas, ontem afundadas na penúria como escravos e hoje marginalizadas da força de trabalho regular. Entre estas classes prevalece uma oposição tão profunda quanto a seus interesses fundamentais, que se torna inviável qualquer institucionalidade democrática. Nestas condições, nem chega a constituir-se um povo como categoria política correspondente à totalidade da população e capaz de influir em seu próprio destino, e toda ordenação sócio-política é despótica ou virtualmente insurgente.
1. Na segunda metade do século passado se levantou na América o único grupo indígena aparentemente capaz, por sua importância numérica e por seus ethos, de afirmar-se como Povo-Emergente; as tribos araucanas e as araucanizadas dos pampas e dos vales andinos. Acossados por argentinos e chilenos, esses índios foram finalmente dizimados; seus sobreviventes, os Mapuche chilenos, confinados em reservas, sofreram uma decadência muito acentuada, da qual ascenderão, provavelmente, como um modo variante de ser chileno.
(Os brasileiros. Livro I - Teoria do Brasil, 1972.)