Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Cyro dos Anjos > Cyro dos Anjos

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Aurélio Buarque de Holanda

De quem serão, Sr. Governador, senhores acadêmicos, senhoras e senhores, os versos que vou ler? Escutai-os:

Sem rima nem metro
no ritmo do suspiro, do gemido
dialoguei com a Morte
que na riba do Aqueronte passeava
entre o Mantuano e o Florentino.
Não é caveira, esqueleto,
nem traz ao ombro a foice longa –
mostrou-se bonita moça
de compassivos olhos, castos gestos.
Sorriram os Divos ante a arenga,
na hora do aperto – pensariam –
cada qual se arranja como pode.
Se fiz verso ou prosa, importa pouco,
fui à raiz da aflição, descarnei-a
Aos poetas de ofício
pedido vai:
não castigueis com vosso reproche a Belmiro Montesclarino,
menestrel dos mais pobres.
(O de Mariana
pelos caminhos
de romaria
ouro de lei
distribuía.)
E sobraçando a desconjuntada lira
aqui me despeço das nobres damas e cavalheiros
que na simpatia e na amizade
superlativamente me honraram
aplaudindo esta fraca função.

Formulada a pergunta em outro ambiente e circunstância, eu decerto ouviria um quase unânime – “Como saber? Adivinhar é proibido!” Mas, nesta circunstância e neste ambiente, e, mais, com aquela chave do “Belmiro Montesclarino”, a resposta não apresenta dificuldade: é de Cyro dos Anjos o poema. Contudo, o espanto há de ser, praticamente, geral: talvez nem pela cabeça de meia dúzia dos presentes passasse que o grande prosador é também poeta. Sim, poeta ele é e foi o enfarte a sua musa. Musa que lhe inspirou, em 1963, doze poemas – os Poemas Coronários, “Lira ingênua / de Belmiro Montesclarino / Cavaleiro da Ordem Hospitalária / e / Escritor Menor, / Membro da Academia dos Angustiados. / Compostos / durante a Enfermidade / do Autor, Que, segundo se Verá, / é Imperito nas Artes Poéticas / Mas / em Temerário Assomo / Quis Dar Expressão / às Visões e Efusões / das noites / em / claro”.

Em carta a Mestre Aires da Mata Machado Filho, confessa, após declarar que não considera o livro (em edição de cem exemplares, de alto luxo) como peça literária:

Seriam apenas uma espécie de testamento. Achei que ia morrer, queria dizer umas coisas, e essas coisas recusavam os trilhos da prosa. [...] Escrevi-os [os versos] quase imobilizado no leito, depois que as dores do enfarte cederam. [...] Estava tremendamente deprimido e chorava como um herói romântico, eu que nunca fui chorão!

No poema inaugural, louva, franciscanamente, o

... Irmão dia
que com o fogo da alvorada
espanta o Anjo da Morte.
 
Versos menores, circunstanciais, apesar de alguns irrecusavelmente belos, como aquele “no ritmo do suspiro, do gemido”, com a pungitiva assonância dos is. Porque o poeta Cyro dos Anjos comparece, de verdade, e com alguma frequência, é no Cyro dos Anjos prosador.

Não no ensaísta de A Criação Literária, obra de ocasião, apanhado de releituras e leituras feitas para atender, como declara, à curiosidade teimosa de antigo aluno seu de Literatura na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais. Apanhado, inteligente, lúcido, abrangente de não pequena bibliografia; e, claro, bem escrito. Contudo, não é o ensaio gênero por onde se possam, em regra, aferir as virtudes de poeta subjacentes no prosador, e muito menos se acha entre os gêneros em que Cyro dos Anjos está no seu elemento, como o peixe dentro da água.

Como o peixe dentro da água está ele – isto, sim – é no Romance e nas Memórias.

Com efeito, Sr. Cyro dos Anjos, vossas páginas de romancista e memorialista, poucas para a nossa gula, mas essenciais, vos incluem na categoria dos autores para serem mais de uma vez versados e conversados. De O Amanuense Belmiro, vossa estreia, que, por si só, bastaria para vos dar assento na Cadeira que nesta Casa viestes a ocupar, diz um crítico da altura de Antonio Candido ser, sem dúvida, obra-prima – lida por ele já cinco ou seis vezes quando, há um quarto de século, sobre ela escreveu. É –acrescenta – “o livro de um homem culto”, razão por que “ressoa tão diferente no nosso meio, com um som de coisa definitiva e necessária”.

Vai para ele a minha predileção, embora o segundo, Abdias, seja psicologicamente mais trabalhado, mais fino.

São ambos de peso, decerto: este, tem mais força; aquele, mais graça; O Amanuense é alado, arielesco, e Abdias prende-se mais à terra; um tende mais para o mágico; o outro, para o lógico. Constituem, em boa parte, uma longa ruminação interior, uma série de avanços e recuos, de marchas e contramarchas, em torno das poucas certezas, e dúvidas muitas, do amanuense e do professor, devorados pela autoanálise.

Há, entre eles – incluíveis (segundo a classificação de Wolfgang Kayser) na categoria “romance de personagem”, “propenso para o subjetivismo lírico e o tom confessional” –, analogias evidentes, e já muito proclamadas. Abdias personagem prolonga e completa a personagem Belmiro. A timidez, o humor e o lirismo, comuns aos dois, além de uns traços de cepticismo, de raiz sobretudo anatoliana, acham-se mais presentes no segundo que no primeiro. Com razão ressalta Álvaro Lins, como prova de ser Abdias menos tímido, a circunstância de se haver casado, enquanto Belmiro se manteve celibatário. Em todo caso é lícito indagar se o casamento do professor não está no âmbito das virtualidades da história do amanuense; se não é o próprio Belmiro quem, metido na pele de Abdias, se decide ao matrimônio. Romance aberto, deixando os destinos em suspenso, inconclusos, O Amanuense Belmiro permite essa hipótese. A história de Abdias já o apresenta marido de Carlota; e seria de interesse conhecermos os antecedentes dessa ligação, de que talvez Belmiro fosse capaz desde que – sendo sua castidade, afinal de contas, relativa – topasse com a mulher em quem visse a condição animal, e não a de mito. Esta mulher poderia ter sido Jandira, assaz capitosa, não fosse ela marcadamente arisca, inclinada à misogamia. Carlota, quero crer, não terá sido objeto de paixão do professor: o amor que este lhe dedica, no romance, é mais razão do que paixão. É o dia a dia do amor. Tão tímido e respeitoso em relação a Gabriela – projeção, até certo ponto, da Carmélia geradora do mito arabeliano, do romance antecedente –, o inquieto Abdias é calculista e algo frio com a esposa. Em face de Gabriela, já viúvo (pesar da diferença dos anos), não se decide, como Belmiro não se decidira em relação a Carmélia. O ente mítico persiste. O ter Abdias o duplo da idade de Gabriela não seria, penso eu, razão de maior importância para o professor não tentar a sério o casamento. Não. O motivo real é a necessidade de persistência do mito no espírito abdiano. Já dizia Belmiro que a sua união com Carmélia não baniria os mitos. Porque: “Mito tocado é mito morto, e a imaginação busca outros, sentindo-se ludibriada.”

Porém as analogias entre os vossos dois grandes personagens não representam, Sr. Cyro dos Anjos, nenhum sinal de fraqueza criadora. E também de Álvaro Lins, mestre da crítica, a afirmação de que pertencerdes “à família dos escritores de um só livro em vários livros, como obras que se desdobram e se comunicam como se fossem uma só”, é “um caráter, uma espécie de criação literária”, e não um defeito. E, assinalando a influência de Machado em vossa obra, acentua que “isto de modo nenhum significa que a posição intelectual do romancista mineiro seja subserviente ou secundária”. Não sois – acrescenta ele – “um imitador ou um copista, mas uma natureza humana semelhante à de Machado de Assis e que por isso mesmo encontrou no criador de Brás Cubas certos recursos e estímulos especialmente adequados para a sua natural expressão literária”. E mais: “nunca por inspiração de outras obras seria possível a criação de livros tão densos em conteúdo humano e estético como O Amanuense Belmiro e Abdias.”

Aliás, observa Antonio Candido, no seu estudo acerca de O Amanuense, que, tendo-se falado tanto em Machado a propósito de vós, ninguém se referiu à “diferença radical” que vos distingue do patrono desta Casa: “Enquanto Machado de Assis” – diz o crítico –, “tinha uma visão que se poderia chamar dramática, no sentido próprio, da vida, Cyro dos Anjos possui, além dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens.” E não é pequeno o elogio.

Mas – bem machadiano, deliciosamente machadiano, é o capítulo “Finados”, de O Amanuense:

Defunto metódico esse que deliberou morrer no próprio dia de Finados, poupando, aos seus, visitas extraordinárias ao cemitério. Aproximei-me do local e fui deitar, também, minha pá de terra ao morto. O coveiro não se assemelhava em nada ao de Vila Caraíbas, que enterrava as pessoas com um pesar que se adivinhava sincero, amigo que era de todos. Lembra-me que, informado da morte de um compadre, não encontrou outras palavras, senão estas, para exprimir à viúva sua grande dor: “Console-se, arranjarei uma terrinha virgem para ele...”

Assim também os capítulos “Um Vira-Latas” e “Agradeço-vos os Salpicos”. E não menos este passo, no qual o amanuense, “velho profissional da tristeza”, confessa haver amanhecido com certo peso no coração, peso que é uma soma de sua melancolia “com um pouco daquilo a que o Silviano chama ‘inquietação fáustica’”, e ajunta:

Depois de nossa última conversa, achando bonita a expressão, dei para me sentir um tanto ou quanto fáustico. Grande coisa é encontrar-mos um nome imponente, para definir certos estados de espírito. Não se resolve nada, mas ficamos satisfeitos. O homem é um animal definidor.

De Gabriela escreve Abdias, em um de seus numerosos acessos de lirismo:

“A fronte e o colo, claro e doce, emergiam do azul desmaiado das rendas, como uma rosa branca que pendesse, solitária, de um vaso.”

Ora, aqui fostes, de leve, traído pela memória, “velha cidade de traições” (no metaforizar de Machado), em um de cujos “becos escuros” se escondera isto, do Quincas Borba: “Rubião admirou-lhe ainda uma vez a figura, o busto bem-talhado, estreito embaixo, largo em cima, emergindo das cadeiras amplas, como uma grande braçada de folhas sai de dentro de um vaso.”

Traição leve, insisto; mas comprobativa do influxo que em todos nós exercem as grandes admirações, sobretudo aquelas que remontam à meninice, como a vossa admiração ao velho mestre. Não esquecer quanto são numerosos os rios que deságuam no largo mar do próprio Machado de Assis.

E, porque de influências estou falando, cabe recordar outra, da maior altura: nada mais nada menos que de Proust, vosso autor de cabeceira, talvez mais que outro qualquer. Não é preciso ser um proustiano – e infelizmente não o sou – para reconhecer nesta passagem de O Amanuense uns toques das pegadas do autor de Em Busca do Tempo Perdido:

Já estava palmilhando a terra vaga do sono, para frente, para trás, segundo a luta surda que se trava em nós, entre uma parte do eu, que aspira ao abandono, e outra que contra ele reage, talvez pelo receio inconsciente que inspira o adormecer, imagem da morte; ganhava-me o corpo uma doce lassidão, e o espírito se embebia no torpor que afrouxara os nervos; apenas impressões vagas, prestes a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscência tênue, quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrança permanente com que, no estado de vigília, a memória sustenta, a cada instante, nossa precária unidade psíquica, ligando o momento que passou ao momento presente. De corpo e espírito, achava-me, pois, preparado para o repouso e já me aconchegava, repetindo, instintivamente, as posições do embrião no ventre materno, quando, arrancando-me daquele quebranto, o cão dos fundos se pôs a ladrar, com um método que indicava disposição sólida de latir pela madrugada toda.

Glória positiva é, para um escritor, apresentar influências como as que em vós acabo de apontar. Não faltou a Goethe – e mais era Goethe – humildade para proclamar, nas Conversações com Eckermann:

Fala-se continuamente em originalidade, e afinal, que quer dizer isso? Logo ao nascermos começa o mundo a agir sobre nós, e assim prossegue até o fim. Que podemos chamar nosso, propriamente, senão a energia, a força e a vontade? Se eu pudesse dizer quanto fiquei devendo aos meus grandes predecessores e coevos, de mim não restaria grande coisa.

Criastes dois tipos – Belmiro e Abdias – dos pouquíssimos destinados a permanência na Ficção Brasileira; e criastes um grande mito, não menos duradouro: Arabela. Sois, assim, um demiurgo e um miturgo.

Menos feliz que os anteriores é o romance Montanha. Melodista, abalançastes-vos à polifonia, e o resultado não correspondeu ao vosso propósito. Em entrevista ao Suplemento Literário do Minas Gerais (número comemorativo de vosso sexagésimo aniversário), Valdemar Versiani dos Anjos, vosso irmão, e escritor de classe, acha que Montanha “não ‘rimou’ com o clima de Cyro”; e que “as personagens dessa obra não têm a força e a duração de Belmiro ou do Professor Abdias”. “Entretanto – ajunta –, a figura feminina ‘rimava’, e esta pode fazer durar o livro.”

Figura dramática, pungentemente humana, essa, Ana Maria, digna de ser por vós retomada, em outra obra onde venha a constituir nitidamente o centro da ação.

A parte política de Montanha peca por se tratar de romance à clef, onde pessoas e fatos estão, a despeito de todos os disfarces, muito próximos e presentes à memória do leitor, de jeito que o livro mal se pode firmar na posição independente de obra artística, prevalecendo o contingente da vida real ao duradouro, desejavelmente eterno, da vida da criação. Todo um jogo de simulações – no tempo, no espaço geográfico, na toponímia –, foi insuficiente para que deixasse a obra de confundir-se com os modelos captados no real, e até de a eles se sobpor. Em suma: a realidade estrangulou a ficção.

Ao quase naufrágio, porém – repito –, escapará o vulto humaníssimo de Ana Maria, em cujo diário pondes este fino conceito:

“Mas... pode alguém saber em que momento isto começa? Quando o amor se revela já existe por inteiro. Como desabrocha pela manhã uma flor que à véspera, ainda em botão, passara despercebida.”

Consolai-vos da queda, Sr. Cyro dos Anjos: tendes os títulos, bem altos, dos dois romances anteriores – garantia do pulso do ficcionista. Lembrai-vos de Thibaudet, que, mostrando, em Flaubert, o desnível entre obras mais recentes e mais antigas, escreve: “O progresso regular de obra a obra nunca existiu em nenhum escritor. [...] O que se deve ter em vista não é uma linha com altos e baixos, é um conjunto, uma região moral e literária em sua duração e em sua complexidade.”

E, no vosso caso, o conjunto é bem significativo: a dois romances de altíssimo plano acrescentais um livro de reminiscências capaz de ombrear com eles em substância literária.

Vossas Explorações no Tempo revelam um Cyro dos Anjos da linhagem dos nossos memorialistas mais insignes. Da fisionomia da obra – fisionomia particular e própria – direi aproveitando elementos da orelha do volume, assinada “M. N.” (mas em verdade do próprio autor), e na qual se finge resumir entrevista concedida por ele “sobre como enfrentou o problema da captação do passado”. Dou a palavra a Cyro dos Anjos:

Basta às vezes um raio de sol oblíquo [...] para que sejamos, como noutra máquina de Wells [refere-se, é claro, à Máquina de Explorar o Tempo], transportados às fronteiras mais remotas do perdido reino da infância.
Esculpindo no arvoredo uma forma nova ou mostrando-nos, ao canto da janela, o vaso de begônia antes não percebido, esse toque de luz suscitará, no “eu” profundo, a súbita eclosão de certos dias por completo esquecidos, ou de que só guardávamos esbatida imagem, sem traço de pensamento, de pulsação vital: a tarde em que o rapazinho, sepultado em nós, brigava com a namorada, ou aquela outra em que firmemente prometera jamais deixá-la enquanto vivesse.

Adiante:

[...] não quis dar unidade arbitrária àquilo que se apresentou descontinuadamente à sua lembrança. Aqui e ali, o real ter-se-á prolongado na esfera do possível, nunca, porém, a ponto de falsear o vivido.

Montes Claros, a cidade natal do memorialista, aparece, na obra, como Santana do Rio Verde, pela razão – e aqui ele recorre a palavras de Maritain –, de que “o poeta, à semelhança do menino, entende que, chamando as coisas pelos nomes de sua predileção, consegue domesticá-las e com elas construir o seu paraíso”. Assim denominada, fica a cidade “liberta da geografia e da história para atingir a sua verdadeira essência”.

No livro, usa um processo de filtragem: da memória – dirá no capítulo 7 –, quer “apenas a essência das lembranças”.

Falta-me tempo para dizer destas Explorações quanto elas me sugerem. Nelas o memorialista ilumina muitos aspectos do romancista. “O apaixonadiço” que é Belmiro e é Abdias já se mostra, nelas, de longo a largo.

Pelos nove anos (como fostes precoce!) é vossa inflamadora paixão Maria da Glória, que já ia nos seus dezenove, ou vinte, de “grandes e negros olhos à Segundo Reinado”, e que ao violão cantava “as mais lindas modinhas deste mundo”. E em vosso peito as modinhas, o luar e as donzelas inoculavam – contais –, “desesperados amores que nem mesmo aspiravam a ser correspondidos, pois a amada, por definição, havia de sobrepairar, distante e intangível como uma deusa. Amores que se alimentavam de sua própria chama, encontrando em si mesmos o seu objeto.”

Mas – há tantas outras! Uma delas, Risoleta, que, “com a sua voz de flauta e fonte, cantava hinos à Virgem, nas novenas de maio”, e era, “para o pobre menino”, “o Dia e a Noite, a Lua e o Sol”.

E Priscila, com quem trouxestes vivo amor, que vos abriu no coração uma chaga, talvez não muito funda, pois Nazaré, vossa parenta, em cuja casa, estando de viagem, vos hospedastes, não tardou a ser o alvo de vossa paixão? Fulminado vos sentistes por ela, que tinha tudo para vos arrasar, “inclusive o negrume dos olhos sobre o branco-mate do rosto, as tranças de retrós, que amarram e não soltam mais, e o ar nostálgico e cismador das mulheres de Andrea del Sarto”.

Porém, na véspera do retorno a Santana, a ânsia de rever Priscila já devorava a saudade da cismativa Nazaré.

Nem tardará muito que, em Buenópolis, reencontreis Florisbela, companheira de infância. Estava “no esplendor de moça feita”, e o “apaixonadiço” coração de pronto pegou fogo.

E não quereis que vos digam volúvel:

Não me chamem de volúvel nem desfaçam da seriedade dos sentimentos que me empolgavam. Meu amor era demasiado grande, para que uma só criatura o retivesse. Nesse universal amor cabiam Florisbela, a Signora Paola e várias mulheres mais, inclusive Nazaré e Priscila. Eu movia-me para o amor, sem escravizar-me às formas em que ele se individuava.

Mais para diante:

Talvez Florisbela e a Signora Paola, tais como as estações perdidas no mapa, os vales que se estendiam em torno delas, as montanhas que as encobriam, a roseira à margem da via férrea, tudo, enfim, que me extasiava a vista, me trouxesse, já àquele tempo, em forma embrionária, a lacerante ideia de que o belo não passava de um arranjo efêmero no mar eterno de coisas que se agregam e se desagregam. Arranjo efêmero que – ai de mim! – eu jamais poderia reter.

Apesar de toda a castidade – e ainda tão jovem –, mais de uma vez vos sentastes ao lado de Priscila, com quem rompêreis, no automóvel da tia Perpétua, e:

“Ficava apertado, entre as duas, pois a velha possuía ancas descomunais. Eu abençoava essas ancas, que me atiravam contra o leve e perfumoso corpo daquela em quem Simonetta Vespucci se reencarnara.”

Rompido com ela, tereis talvez suspirado, mas, como havíeis declarado oficialmente nada mais haver entre os dois, mantivestes a palavra, “Deus sabe como”. O certo, porém, é que vos beneficiastes do aperto.

Contudo, éreis, vós e os vossos amigos, “tímidos e pudicos” diante das amadas, que acháveis honesto “não fossem objeto de desejo, e sim de pura adoração”.

Mas:

“Não nos fazia mossa despencar das alturas do amor platônico sobre aquele pobre e triste charco” da Rua do Marimbondo.

Contemplador de estrelas, Órion tornou-se vossa predileta, porque nessa constelação brilhavam as Três Marias. Brigado com Risoleta, ou com os vossos companheiros, vos estendíeis na grama e quedáveis a contemplar o Caminho de São Tiago.

Precoce no gosto da leitura como no gosto do amor, falais, nas Explorações, de Os Três MosqueteirosO Conde de Monte Cristo, as Memórias de um Médico, sucessores, na vossa predileção, das aventuras de Arsênio Lupin e de Rocambole. E não tardareis a passar a Vítor Hugo.

Contribuição de valia ofereceis para o folclore, de que vos mostrais curioso. Descreveis, por exemplo, a marujada (chegança lá nas minhas Alagoas), e, ao contrário de outro grande memorialista, Graciliano Ramos, que penteia o Português do material colhido na boca do povo, usais deixá-lo autenticamente desgrenhado:

Eu estava na estação
Quando o meu amor chegou,
Deu um vento na roseira,
O salão encheu de flor.

Graciliano haveria anteposto um “se” àquele “encheu”, não admitindo, em produção popular, “o salão” como objeto direto”.

Não vos escapam superstições:

O telheiro do pátio recebeu todos os nossos dentes-de-leite, pois a velha [Luísa Velha] exigia que os atirássemos para cima dele, gritando: “Mourão, Mourão! Toma seu dente podre e dê cá um são!” Era imprescindível, senão os definitivos jamais viriam. E tomássemos cuidado: se ricocheteassem e caíssem no chão, as galinhas poderiam comê-los; nesse caso, adeus dentes novos! Não apareceriam nunca.

Da fazenda paterna das Quebradas belamente dizeis que se aninhava “na intimidade da paisagem, à semelhança de um rio, de uma serra, de uma pedra ou de uma árvore. Dir-se-ia que nascera do solo, como um fruto, sem interferência do homem”.

E referis, com um toque metafísico, o “desenganado silêncio das fazendas decaídas –, [...] uma vida subjacente, abafada, que o Tempo desintegrou, mas afinal triunfara sobre o Tempo”; e a “fórmula do patético imanente às velhas fazendas, ou melhor, a composição da mágica substância que elas segregam e que em nós produz o êxtase, a comunhão com as coisas”.

Assinalais a nossa proverbial dendrofobia: a Câmara de Santana do Rio Verde não conseguira ajardinar o Largo de Cima, porque, segundo os comerciantes, “canteiros atrapalhavam o tráfego e árvores só serviam para feirantes amarrarem os cavalos”.

Quando surgiu em Santana a motocicleta, tomou-se o povo de tal frenesi que

[...] um porta-voz do Bispado, pelas colunas da Sentinela, se julgou no dever de advertir os desprevenidos: conquanto se associasse à população, em seu legítimo júbilo, a Mitra não podia deixar de lembrar-lhes que o Demônio, para melhor se insinuar nos lares santanenses, recorrera, com astúcia, a meios aparatosos. [...] Convinha que as boas ovelhas observassem o exemplo dos seus maiores e não se entusiasmassem demasiado com motocicletas e quejandos.

Voltado bem mais para os homens que para os aspectos da Natureza, apresentais, no entanto, esta incisiva observação fisiográfica:

O sertão das gerais é feio, ríspido e seco. Para oprimir mais ainda o coração do viajante, acontece-lhe percorrer dezenas de léguas, a passo de mula, sem encontrar ao menos um ranchinho ou qualquer sinal da presença humana. Os escassos sitiantes penduram-se nas grotas, ao pé de algum olho d’água; a gente não os enxerga; o que se oferece à vista é só a vegetação enfezada, de troncos retorcidos e folhas vermelhas de pó.

Quando o caminho apanha a crista das chapadas, amplas perspectivas se rasgam, escalonadas em ondulações que vão cambiando do verde para o azul, até se diluírem na fímbria do horizonte. Tem-se a impressão do mar. Isso, porém, não dura muito. Logo o cavaleiro de novo se embrenha por entre as árvores raquíticas do tabuleiro, na infinda monotonia da paisagem.

Falais, com ironia, humor, ou malícia, de seres e coisas várias. Do Mercado, “famoso pela variedade e discrepância dos pesos e medidas, só aferidas nas ocasiões em que a política mudava”. Porém – acrescentais:

“Honra se faça a alguns negociantes honestos, que usavam o quilo de novecentas gramas, quando podiam reduzi-lo até oitocentas, conforme a jurisprudência local.”

Do para-raios instalado numa torre do campanário, e que os coriscos evitavam, “como que receando cometer sacrilégio”, indo “cair na torre do Mercado, onde auferiam dupla vantagem: assustar a assembleia de tratantes e ter mais público para suas fuzilações”.

Aos criminalistas ofereceis boa matéria. Sob a capa do humor e da ironia, apresentais aspectos lamentáveis, infelizmente não privativos de Santana, que, aliás, esclareceis, “ocupava posição assaz modesta em confronto com a da Vila das Almas, onde, houvesse ou não eleições, as carabinas de papo-amarelo funcionavam o ano todo, Só descansando um bocadinho nas intermitências necessárias à correção do tiro”.

Note-se, aí, a miséria do crime político; melhor: eleitoral.

Rapazes descarregavam armas, no escuro da noite, sem produzir grande número de mortes, talvez “por simples virtuosismo, apenas para enriquecer de novos ritmos a sinfonia da noite santanense, amalgamando-os com o tropel das mulas-sem-cabeça, dos gigantes, dos lobisomens e das bruxas”.

Vários dos presos de Santana tinham matado sem razão maior, “ou para pegar seus quinze mil-réis, preço de tabela, naquele tempo de moeda forte; ou, senão, só pelo gosto de ver o tombo do cabra, segundo diziam”.

Desafreguesada, a loja do Major Quintiliano
[...] mostrava-se pura e virginal como sua filha Belkiss, cuja mocidade se consumiu na expectação do amor... [...] Belkiss confeccionava asas de anjo para as coroações de maio. Quando morreu, deve, com um grande par de asas, ter subido ao Céu, onde as solteironas virtuosas se indenizam da melancolia e da solidão deste mundo.

E a figura do pai, austero, disciplinador, admirador de Rui Barbosa, dado a acordar desnecessariamente cedo, numa cidade como Santana, e afirmando que, “se a Nação madrugasse como o Conselheiro, as coisas não andariam tão mal”?

Com ele não se brincava: nem o contentamento suscitado por alguma concessão generosa de sua parte poderia exprimir-se espalhafatosamente, para não o escandalizar e irritar.

A Mãe, “sombra doce, mas distante”, herdara

[...] o temperamento dos Versianis, que, sendo de procedência italiana, antes pareciam ingleses, pelo ar cerimonioso, contido, se não frio. Não me lembro de que me haja feito outro afago, além do olhar manso que acaso pousava em mim. Em Santana, acariciar meninos era coisa desacostumada.

E o avô médico, generoso, mas distraidão? Dele contais que, “chamado a atender uma senhora que se sentia mal, disse-lhe, com uma palmadinha no ombro, querendo significar que estava grávida: ‘Não é nada. Não é nada. São artes do Sobreira!’” “Ora” – acrescentais –, “a dama [...] era esposa do Sr. Amaral, da firma Sobreira & Amaral, e meu avô trocara os nomes, desastradamente. Mas o homem teve a presença de espírito de responder: ‘Sobreira, não, Seu Doutor, a sociedade é só na loja!’”

Fora da família, lembremos o Cel. Pedro Araújo, hiperbólico a ponto de afirmar que possuía porcos em tal abundância que, “ao vender uma partida, jamais os contava por cabeça, e sim pela fração de tempo que a manada gastasse ao atravessar a porteira do curral. Assim, vendia quinze ou vinte minutos de porcos, e não 500 ou 1000 cabeças”.

Reservei para o fim desta galeria de tipos o de tia Perpétua, a da “inóspita verruga”. Era, essa velha, useira e vezeira na citação de provérbios. Desprezava os muito corriqueiros, catava outros em antigos almanaques, e, não contente, mostrava-se incansável em forjar outros mais. Como em Santana fosse pouco difundido o hábito de presentear, sobretudo a meninos, o que se tinha quase por escândalo, porque, já sendo eles arteiros, assanhados, não convinha dar-lhes corda, a velha rosnava indignada quando alguém, “imitando hábitos forasteiros, cometia tal imprudência”: “Quem a menino dá mimo é tolo supino.” E assim vários outros, já existentes, ou de sua lavra.

Exemplos: “Tiveste filho? Andarás em sarilho; Gostas de alarido? Pede filhos ao marido!”

De vossa experiência de farmacêutico aprendiz resultaram páginas das mais belas: páginas onde, discorrendo acerca das drogas com que lidáveis, citadas, personificadamente, com iniciais maiúsculas, entrelaçais o amor, a lembrança de leituras, a Poesia, a sensibilidade vossa à pura magia verbal, ao poderoso encanto das palavras.

Lástima não vos poder citar com largueza. Não deixarei porém de, em síntese, dizer dos extratos fluidos, que não arrumáveis “segundo as comodidades do manipulador”, mas de acordo com a “força encantatória” que tais substâncias possuíssem, isto é, o poder de vos transportarem “a ilhas desertas, batidas por mares ignotos: Drósera, Cólquico, Beladona, Convalária, Polígala, Jaborandi, Grindélia, Estramônio, Valeriana...”; da Tintura de Lírio-Convale, que vos levava a pensar nos amores de Félix Vendesse com a Sra. de Mortsauf, em O Lírio do Vale, de Balzac; da Tintura de Alóe, cujo nome vos parecia “belo em si mesmo, como som puro, nenhuma imagem sensual despertando”; do Benjoim, da Baunilha, da Cáscara-Sagrada, do Hamamélis, do Meimendro..., nomes cuja sonoridade vos influía “ação emoliente”, comunicando-vos “ao corpo uma preguiça voluptuosa”; das “drogas aristocráticas, com fumos de gente importante”, ou das despretensiosamente plebeias – o Ruão, a Cochinilha, o Alcaçuz, a Erva-Tostão ou das alegres, e das tristes, “com ares de luto pesado”, e das que “tinham um jeito entre esperto e humorístico”; e o Creosoto de Faia, que, “pelo milagre de uma assonância”, vos levava ao golfo de Biscaia; e a Centáurea-Menor, que vos embalava em “cosmogonias mitológicas, quando não em espaços siderais”; e a Canela-de-Ceilão ou o Cravo-da-Índia, que, com seus “ares embarcadiços”, vos acendia no peito “uma ambição marítima” que não vos atrevíeis a alimentar; e o Extrato Fluido de Cinco Raízes Aperientes, o qual, receitado para Priscila, adquiriu a vossos olhos especial prestígio:
 
“Acariciei muitas vezes o frasco azul de rótulo gótico, imaginando que o seu conteúdo, mais feliz do que eu, conhecera o mistério daquela doce boca donde me viera o simulacro de um beijo, quando eu representava de Eixo da Terra e ela de Primavera, no apólogo das Quatro Estações.”

Alonguei-me no citar, e de indústria, por não haver esta obra-prima das Explorações no Tempo alcançado, de crítica e público, o excepcional acolhimento a que tem direito.

O penúltimo de uma família patriarcal de quatorze filhos, fostes criado, como os demais, em regime de rija severidade. Contrastando com vossa mãe, que perdestes aos quinze anos de idade e perpassa, em vossas memórias, como sombra doce (a “Mãe Lolota, a mansa”, dos Poemas Coronários), de ternura vigilante, porém sofreada (à maneira de tantas mães do meu Nordeste), o “velho” Antônio dos Anjos, “sujeito a zangas e birras”, conquanto em regra procurasse impor-se menos pelo autoritarismo que pela persuasão, era carne de pescoço. Comerciante, fazendeiro, lecionava História, lia os modernos, pitadeava o seu latim, traçava o seu Horácio, e, em matéria de respeito, não só filial, senão também linguístico, trazia a turma inteira num cortado.

Aprendestes a ler aos quatro anos; e entre os oito e os nove rabiscáveis um jornalzinho manuscrito. Tínheis dez ao lançardes O Civilista (este impresso), nome devido à campanha de Rui, de quem era vosso pai fremente partidário. Pela altura dos quinze-dezesseis, já líeis Machado, Eça, Herculano, Camilo, Fialho d’Almeida.

O gosto da Língua Portuguesa, que vos transmitiu vosso pai, vos fez sofrer, quando beiráveis os vinte anos. Ocupáveis cargo modesto na Subinspetoria de Reclamações dos escritórios da então Estrada de Ferro Oeste de Minas; e o açúcar vos amargou a vida. Escrevestes com cê-cedilha essa palavra, cuja grafia usual era com dois esses. E fostes chamado à presença do subinspetor, que entrou de sola: “‘Açúcar’ com cedilha? Onde já se viu?”

Ao começardes a dar as razões gramaticais daquela escrita, fostes asperamente interrompido: “Basta! Não me convenço! Fique sabendo – ouviu? – que, enquanto eu for chefe na minha seção só se escreve “assúcar”, com dois esses!” E terminastes perdendo o emprego.

Depois, a serenata, as danças. Brilhastes como um razoável pé-de-valsa.

Bacharel, regressais a Montes Claros, onde abris banca de advogado. E só vos apareceu um cliente. Caso de cobrança executiva, contra um velho jogador profissional. Escrevestes-lhe uma carta, a que o velho respondeu com lamúrias, lembrando antiga amizade de família. Como é que o menino que ele tratara tão carinhosamente ia agora, homem feito, submetê-lo àquele vexame? O jovem advogado se enternece, desiste da ação – e da Advocacia.

O advogado falhou. Falhastes, ainda, como homem de negócio, como coroinha, como jogador de futebol; e – coisa muito para espantar em quem revela tamanho senso musical na Prosa –, falhastes na Música. Ao violino dedicastes, em vão, horas muitas, de que talvez houvésseis tirado proveito no aprendizado de seu primo pobre, o tão brasileiro violão, ao qual poderíeis acompanhar as modinhas entoadas com uma voz aceitável de seresteiro amador – amador nos dois sentidos –, ao luar caraibano (vale dizer, montes-clarense) e ao luar belo-horizontino. Em serenatas e pagodes Belmiro gastou – gastastes –, as vitaminas do tronco dos Borba.

“Onde estão em mim” – perguntará o amanuense – “a força, o poder de expansão, a vitalidade, afinal, dos de minha raça? O pai tinha razão, do ponto de vista genealógico: como Borba, fali.”

As “serenatas e outras relaxações” também vos impediram prolongar o “brilho rural” dos Borbas: em vez de fazendeiro de fato, como era desejo paterno, tomastes-vos “fazendeiro do ar”. Porque – confissão de Belmiro – “Eu não podia ouvir uma sanfona. Tocavam a Varsoviana e eu me dissolvia (lá na Vila lhe chamavam Valsa Viana...).”
Assim lhe chamavam, igualmente, nas minhas Alagoas; e – permiti-me a reminiscência – bem me lembra a Valsa Viana segundo a cantava em Porto Calvo, para mim e meus irmãos, Maria Araquã, ex-escrava dos meus avós maternos. Era assim:

Minha mãe, foi,
 foi, foi,     {bis
Nunca mais me escreveu.

Oh que dor, oh que dor,     {bis    
Oh que dor sinto eu!
E adiante:

Passa via, passa via,             {bis
Passa via, viana.

Falhando em tantas coisas, viestes a vencer nas Letras, a que apontava, desde cedo, a vossa verdadeira vocação.

O talento e gosto para elas – diga-se de passagem – é mal de família: escritores são vossos irmãos Valdemar Versiani dos Anjos e Antônio Versiani, e vossa filha Margarida, cultíssima, até hoje incapaz de vencer a timidez, e que por isso não deu testemunho público de seus méritos, mas escreve como gente grande; e o pendor para as Letras filosóficas, já manifesto no filósofo Tatá, vosso tio, deu renome a Artur Versiani Veloso, primo vosso, autor de vários trabalhos sobre a matéria, de que é professor na Universidade de Belo Horizonte.

Sr. Cyro dos Anjos,

Sois dos mais dignos de pertencer a esta Casa: a um tempo criador válido e letrado sutil. “Bacharel em linguagem”, como achava deverem ser os escritores o velho e amável Rodrigues Lobo.

Compreendeis, decerto, a importância do conhecimento da língua até para o exercício da faculdade de pensar. Pensamos com palavras, e “em” palavras. Se aquele escultor do apólogo de Oscar Wilde só sabia pensar “em” bronze, era porque em bronze se haviam transubstanciado as palavras, matéria-prima de suas concepções. A palavra não é, tão-só, o veículo do pensamento: é a própria “matéria” dele.

Para Paul Valéry, a Literatura “é um exercício de linguagem, uma busca rigorosa da linguagem pura e essencial, a construção de um universo de palavras que, subtraído ao acaso, se afirma como um ser autônomo.”

Não vos lançais ao papel – “às resmas”, como espirituosamente costuma dizer o fino escritor meu amigo Herberto Sales – a uma simples aragem da especiosa inspiração. A ela nunca vos abandonais, porque sabeis quanto ela expõe a descaminhos. Antes, ides a cada passo policiando-a, sujeitando-a, subjugando-a, num permanente aparar e aspar de arestas, frouxidões e derramamentos, até acomodá-la aos vossos objetivos. Trabalhais em terreno pré-delimitado, mas com absoluta ciência dos meios e consciência dos fins. Passais pelo crivo da realidade vivida e mentada as arremetidas, não raro arbitrárias, da fantasia.

Tendes dos bons autores leitura extensa e intensa.

Com os pés fincados na tradição da língua, não voltais as costas, porém, às tendências de vossa época, embora ao comedimento de vosso espírito repugnem os excessos.

Consulente pertinaz de dicionários, sabeis, como poucos, refrescar e revitalizar vozes antiquadas, ou afetadas, fazendo-as convizinhar, em boa paz e feliz efeito, com as palavras da tribo. É o caso de “sorrelfo” e de “vianda”. Vocábulos que se diriam de mau gosto, tendes tal arte e jeito de os encaixar que soam como perfeitamente naturais: “mancebo”, por exemplo, que nas páginas cirianas adquire graciosa tinta de ironia ou de humor.

Nem fugis a neologismos, como “futingar” e dezenas de outros, nem vos correis de incorporar em vossa obra as criações populares; “malinconia”; “tirar a barriga da miséria”; “ser farinha do mesmo saco”; “tirar uma tora”; “fazer uma pestana”... Em vosso romance Montanha podem-se colher dezenas e dezenas de expressões giriais.

Possuís a arte de matizar semanticamente as palavras, emprestando valores novos a muitas já cansadas, prova de haverdes bem aprendido a lição de mestres vossos e nossos, como Eça de Queirós e Machado de Assis.

Ágil, flexível, musical, sois invariavelmente claro e preciso. Nem vos falta Poesia.

Hiperbolizando um pouco – apenas um pouco –, eu afirmaria que isto vos custa sangue, suor e lágrimas.

Porque pertenceis à legião dos torturados do estilo. “Um mártir da escrita”, de vós escreveu Aires da Mata Machado Filho, dizendo que

[...] Cyro dos Anjos verga ao sofrimento de escrever. Da parturição literária suporta as ânsias, padece as dores, vibra na alegria da criação terminada...
Primeiro, delivra-se trabalhosamente. Depois risca, emenda, substitui, rasga, para recomeçar depois, até chegar ao resignado fim.
 
A ânsia de perfeição poderia fazer-vos repetir Sá de Miranda, de cuja écloga “Basto” existem cerca de quatorze redações diferentes, e que, “em frases soltas e suspiros mal dissimulados”, na expressão de Carolina Michaëlis, confessava: “Emendo muito. Eu risco e risco, vou-me de ano em ano. Ando com os meus papéis em diferença. Nunca acabo de os lamber, como ursa os filhos mal proporcionados.”

Ganhais para o velho clássico: emendais cerca de quinze vezes, segundo me confessastes.

Travais com as palavras aquela áspera luta que, ao que rezam os versos drummondianos, principia “mal rompe a manhã”.

Eça de Queirós, Graciliano Ramos, Balzac, Proust, Anatole France, os Goncourts não sofreram mais do que vós a tortura da escrita. Nem um Baudelaire, que levou quase dez anos às voltas com os Pequenos Poemas em Prosa, aos quais “volvia sem cessar, sempre desbastando, riscando, emendando”, e indo ao quase desespero quando via, nas provas, uma vírgula omitida ou deslocada; nem, talvez, Flaubert, que, em carta a Maxime du Camp, se queixava de estar morto de cansaço por haver escrito vinte páginas em um mês, e gastou cerca de novecentas horas para escrever “Hérodias”, um dos Trois Contes, de pouco mais de trinta páginas.

Longe estais da “família dos farfalhantes”, a que se refere Augusto Meyer. Nada tendes de “gordo”: antes pertenceis à linha dos “magros” – para usar a classificação de José Lins do Rego, por ele anteposta àquela de Azorín, em “ricos” e “pobres”. De vosso tecido literário excluís toda a enxúndia; e contudo não sois um descarnado, um pele-sobre-o-osso. Conquanto desdenheis as pinceladas quentes, às quais preferis as meias-tintas, não vos falta colorido. Desamando os excessos, os dós-de-peito, entanto não chegais a ser um puro vegetariano do estilo, porém um vegetarista. Às substâncias vegetais de que se compõe, exclusivamente, a alimentação daqueles, usam estes, bem se sabe, adicionar algumas de origem animal, como leite e ovos. Sois, assim, um prosador enxuto e nutriente. A graça e número da vossa prosa – permiti-me um símile musical, ó inveterado melômano – afasta-vos da linha polifônica, da composição orquestral, à Fialho d’Almeida, e situa-vos entre os cultores da Música de Câmara: um Azorín, um Mérimée, um Anatole France. Praticais um prosar quase surdinante, de ressonância muito mais interna que exterior. As palavras, em vossas páginas, constituem a roupagem correta, e harmoniosamente exata, da vossa operação mental, por vezes densa e tensa. Roupagem sem atavios supérfluos. Compreendeis, com Spencer, que só no estágio primitivo das civilizações o adorno prevalece ao vestuário. Na faixa da Língua Portuguesa estareis sempre vizinho da melodia de Frei Luís de Sousa e longe do grandioso tanta vez barroco de um Vieira; e, entre autores mais recentes, em posição mais ou menos equidistante de Machado de Assis e de Eça de Queirós, duas de vossas vivas admirações e sensíveis influências.

E assim fazeis a vossa festa: a festa (sofrida) de vossa escrita, sem alardes maiores, como as festas da Montes Claros de vossa meninice; até mais discreta do que elas – porque sem os seus fogos de artifício e bandeirinhas de papel de seda: apenas animada do movimento e vida de vossas personagens, que, aliás, gravitam em redor de vós mesmo, personagem central. Sim: dir-se-iam, vossas figuras, convocadas a circunvagar-vos, como para vos auxiliarem no deslindar do vosso enredo íntimo, no dirimir das vossas ânsias e perplexidades.

Escreveis devagar – e sois para ser lido devagar. Amais a Música e a Pintura, mostrais vocação filosófica – e dessa vocação e desse amor poderia aqui mencionar numerosas provas.

Espaço e tempo não me permitem, contudo, citar mais do que uma – do talento e gosto de filosofar:

A sabedoria tem evidências talvez mais perceptíveis às crianças que aos adultos, desviados como são estes das realidades intrínsecas por um longo exercício racionalista. E, como uma flor, uma árvore, um regato, a sabedoria não precisa de palavras para captar a nossa adesão. Crianças gostam de regatos, flores e árvores.

Entrevistando-vos, há vinte anos redondos, escrevia Homero Senna que éreis, segundo se dizia, “forte concorrente” à primeira vaga que nesta Casa se verificasse. E durante vinte anos a Academia vos foi a jovem Carmélia, sempre desejada, mas transfeita em mito: a donzela Arabela. Ao longo deste longo tempo, fostes bem o Belmiro, encaramujado na própria timidez. Até que resolvestes assumir uma das faces de Cyro dos Anjos, que, em geral tão belmiriano, súbito se lembra de que é das Minas Gerais, e mineiro dá um boi para não entrar na briga, mas dá uma boiada para não sair dela. E, com essa disposição ciresca não comum a Belmiro, topastes a parada. Se eleição, na Academia, não chega a ser briga, é por vezes luta das mais duras. Do nosso Mário Palmério ouvi – dele, tão afeito às campanhas eleitorais políticas – serem bem mais renhidas que estas as da Academia Brasileira. Mas avançastes – e fostes, como diz certo personagem eciano, de Os Maias, “rápido e medonho”. Pelejastes feio e forte. Em menos de um mês cumpristes o penoso e moroso ritual das visitas; aliciastes eleitores, decidistes indecisos, “clareastes” votos (para usar a deliciosa expressão de Josué Montello), numa batalha brava e sem tréguas. Era um ir-e-vir incessante de Brasília ao Rio e do Rio a Brasília (afora a viagem a São Paulo), com o que aumentastes bem o movimento e lucro das empresas de transporte aéreo. Porém o coração – o vosso coração de “apaixonadiço” que tanto e tanto bateu por moças em flor (e não em flor, também – quem sabe?) –, o coração, que já tivera a visita indesejável do enfarte, punha-vos em pânico, volta e meia, ao terminar de cada dia de batalha. O coração e os nervos. E eram telefonemas aflitos para mim: “Estou exausto. Ontem só peguei no sono às três. O Cardim foi encantador comigo, reteve-me por mais de duas horas, carreguei no uísque, contei casos de Minas, fiquei engraçado, ele riu a valer... mas, em matéria de voto, moita.” Em vão procurava eu sossegá-lo: “Muitos – e às vezes dos mais firmes – não dizem que vão votar. A bom entendedor...” “Mas nem a meia-palavra eu tive.” Um inferno. Eu, que, ajudado por essa dama admirável que é Lilita, vossa mulher, vos havia decidido à candidatura, para a qual dizíeis não ter “preparo físico” –, eu cheguei, uma noite, a passar mal. Nada de vir o sono:“Diabo! Se o Cyro bate as botas, que será de mim?” Felizmente, tudo correu às mil maravilhas.
 
Entre outros, contastes com três cabos eleitorais muito fortes: dois homens, sobretudo – Abdias e Belmiro –, e uma mulher: Ana Maria. Irresistíveis. Votantes que porventura os desconhecessem, certo a eles se renderam quando os vieram a conhecer. Outro cabo eleitoral poderosíssimo: a vossa pessoa: a finura do vosso trato, a certeza que nos dáveis, e para nós importante, de excelente convívio. Com eles vencestes – e vos tomastes sucessor, aqui, de Manuel Bandeira. Daquele Manuel, alto entre os altos, de quem eu quase diria – à maneira de Schmidt no poema de “Luciana” – que não se repetirá. Creio não se repetirá: porque dificilmente se repete aquela suma de inteligência, cultura, dignidade, e teor humano.

Em vosso elogio, finamente meditado e modelarmente equilibrado, do poeta que foi, ainda, um mestre da prosa, como soubestes ver com lucidez, encontrastes “uns longes de gabolice” na “Canção do Vento e da Minha Vida”, onde Bandeira diz, do vento, que varria as flores, frutas, aromas, luzes, sonhos, amizades... tudo, ficando-lhe a vida cada vez mais cheia de quanto o vento varria. Ora, Sr. Cyro dos Anjos, porque o processo da criação artística só se ultima no leitor, como tão bem reconheceis em A Criação Literária, podendo cada um sentir e interpretar o poema a seu modo (mesmo quando se trate de versos despojados, sem hermetismo, como é o caso da “Canção”), atrevo-me a divergir do que a respeito dela sentis. Quer-me parecer que esse poema representa, na obra de um poeta de religião vacilante, um momento de humildade cristã. Todos aqueles bens de que a sua vida se enchia tanto mais quanto mais o vento lhos arrebatava, seriam, em realidade, bem pouco; mas, cristamente humilde, ele os recebe por bênção: como se, num instante de fé, agradecesse a proteção divina que lhe emprestava forças para a batalha com a sorte má. Assim chegam os místicos a gratular a Deus pelos sofrimentos mais duros, porque estes de Deus os aproximam. A dádiva era tão pequena! Mas era crescentemente grande para o Poeta: porque – e mais uma vez cito Augusto Frederico Schmidt, sobre quem vai caindo um silêncio injusto –, para os cegos, “a luz é mais bela do que a luz”. Demais, poder-se-ia também lembrar o verso, já exaustivamente repetido, de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor.” Em sua Teoria da Literatura, René Wellek e Austin Warren chegam a dizer que, em Poesia, o termo “sinceridade” parece vazio de sentido; que o poema não é uma expressão sincera nem do “suposto estado emocional” de que resultou, nem daquele em que foi escrito, e sim “uma expressão sincera do poema, isto é, da construção lingüística que vai tomando forma no espírito do poeta à medida que o escreve”. E insistem: “O poema é uma expressão sincera do poema.”

Mas, ao cabo de contas, quem dirá, em Poesia, a última palavra? Lembremos aquilo de Dámaso Alonso em seus Ensayos sobre Poesía Española: misterio, misterioTodo en poesía es misterio. Y en este campo la Humanidad no ha avanzado nada. No sabemos hoy más de la Poesía de lo que se sabía en la época de Virgilio o en la de los primeros trovadores provenzales o en la de Garcilaso.

Trovadoresco e clássico, romântico e parnasiano, simbolista, modernista, concretista, passou Manuel Bandeira por todas as experiências, viveu a Poesia, e praticou-a com mestria e força que lhe conferem lugar cimeiro entre os irmãos de Língua Portuguesa e pôde nivelar-se a um Camões em versos como os do “Soneto italiano”, que todos deveríamos saber de cor:

Frescura das sereias e do orvalho,
Graça dos brancos dos pequeninos,
Voz das manhãs cantando pelos sinos,
Rosa mais alta no mais alto galho:

De quem me valerei, se não me valho
De ti, que tens a chave dos destinos
Em que arderam meus sonhos cristalinos
Feitos cinza que em pranto ao vento espalho?

Também te vi chorar... Também sofreste
A dor de ver secarem pela estrada
As fontes da esperança... E não cedeste!

Antes, pobre, despida e trespassada,
Soubeste dar à vida, em que morreste,
Tudo – à vida, que nunca te deu nada!

Sr. Cyro dos Anjos,

Vencestes o enfarte – e a eleição. De membro da Academia dos Angustiados passais a membro da Academia de Letras. Já desde vinte anos a namoráveis (e ela, decerto, a vós); mas éreis Belmiro, tímido, irresoluto, abúlico, e a víeis como o Donzel da Rua Erê à inatingível, “impraticável” donzela.

Por fim, como se Belmiro levasse a peito uma tardia fidelidade à linha Borba, enfeixastes energias e vos deliberastes a pedir a mão de Arabela, a bela. E o casamento se fez, e ora se completa, com solenidade grande e alegria geral.

No “Sermão da Sexagésima”, escreve o Padre Vieira que “A definição do pregador é a vida, e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia.” E adverte:

Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia... Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: Ua cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja: ua cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, ua cousa é o semeador, e outra o que semeia: ua cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação.
 

A diferença reside, pois, entre apenas ter o nome, o título, e atuar em função e à altura dele. Ora, senhoras e senhores, fundando a distinção em termos diversos, eu, com respeito ao escritor, inverteria a fórmula: uma coisa é o que escreve, e outra o escritor. Escritor é quem tem, com o título, o talento para atuar honrando-o; os outros, aqueles que do título se pavoneiam, faltando-lhes, porém, o dom, a força, a graça, estes são, simplesmente, os que escrevem – escritores, nunca. Tantos e tantos escrevem! Mas, como nas Escrituras, muitos são os chamados, e poucos os escolhidos. Vós, Sr. Cyro dos Anjos, sois um destes raros: o dom está convosco. O dom, e a cultura e paciência para exercê-lo. Sabeis dignificar o nome de escritor: pelo engenho e pela Arte.

21/10/1969