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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. CONSTÂNCIO ALVES

SENHORES:

Ao iniciar seu discurso de recepção na Academia Francesa, declarou Rostand haver coligido os exórdios de todos os recipiendários e verificado, pela leitura deles, ter vindo muito tarde para encontrar um modo original de ser modesto.

Tudo já fora dito pelos seus antecessores durante mais de duzentos e cinqüenta anos de Academia e de modéstia acadêmica.

Apesar disto, o criador de Chantecler sempre deu com uma fórmula nova para, segundo a praxe, deprimir o seu merecimento; autorizando assim a malícia a suspeitar, no poeta, o intuito de valorizar mais o seu achado, acentuando, primeiro, a impossibilidade de o descobrir.
De tais leituras me dispensaria eu, por considerar que, em solenidades como esta, convém mais à modéstia o silêncio que o discurso.

O sentimento que fala aqui, agora, o que cabe, neste momento, por ser natural, verdadeiro, e não censurável, porque o compreendeis, é o orgulho que deve experimentar quem quer que receba a honra da vossa escolha.

As palavras que o seu reconhecimento disser, hão de estar, forçosamente, em muitos exórdios, mas vibrarão com a nota individual de quem as enuncia, exprimindo no timbre de sua voz a natureza de sua emoção.

A que ora me domina, inspira-se no respeito que sempre consagrei a esta Casa, e tingi-me em melancolia de recordações.
Amei a vossa Instituição, desde os seus primeiros dias, nos lineamentos do seu programa e na individualidade dos seus fundadores.
Criou-a o desejo de garantir e perpetuar, pelas obrigações de um estatuto, o que, espontaneamente, já realizara a convivência de alguns homens, divergentes por vários motivos, mas unificados pelo culto das Letras.

Foi, assim, o sentimento da amizade que edificou essa obra de confraternização literária, nos moldes da mais ampla tolerância intelectual; não por ambição de glória ou de vaidade, não com esperança de exercer qualquer tirania, mas com o propósito singelo de proporcionar um refúgio de serenidade a almas congregadas pela religião da literatura.

Nada testemunha, com maior expressão, o caráter dessa companhia, a cordialidade, a urbanidade ali reinantes do que o encanto que nela encontrava Machado de Assis.
Naquele ambiente de simpatia animadora, parecia desencapotar-se da sua discrição desconfiada, fazendo entrever mais um pouco de sua alma, que era delicadeza e recato, bondade revestida de timidez, humanidade com disfarces de misantropia, e até, o que parece surpreendente, firmeza com aparências de dubiedade.

Pela sua feição, podia ser Machado de Assis o fautor da Academia.
Mas quem a planejou, quem mais se interessou por ela, com tenacidade e entusiasmo, quem lhe deu existência, foi Lúcio de Mendonça, que muitos, e sem inverossimilhança, julgariam inadequado a esse empreendimento.

A sua intransigência militante de republicano radical, a sua veemência de polemista apaixonado, eram contra-indicações para a tarefa pacificadora de harmonizar, no interesse da literatura, dissidências políticas e hostilidades de crenças.

Todavia, é ele o arquiteto dessa construção e não admira que o seja, pois nesse batalhador de tão rigoroso partidarismo e tão ásperas guerrilhas, luzia um nobre espírito de homem de letras, com largo e fervoroso amor das coisas belas.
Poeta e prosador, consagrava à língua em que escrevia os cuidados do artista consciencioso que escolhe, para esculpir as suas figuras, o mármore mais perfeito e para fixar os quadros de sua imaginação, as tintas mais puras.

Julgava com finura educada na familiaridade dos mestres.
Estimava o trabalho alheio e, não raro, essa estima levantava-se da cadeira de leitor e saía à publicidade no generoso impulso de louvar.
A sua simpatia era imparcial no acolher os talentos, viessem de onde viessem, até de um trono. Não hesitaria, creio, em admirar um rei, autor de bons versos; mas cumprida a obrigação, imposta pela sua consciência literária, de aplaudir o poeta, não se consideraria impedido de, em nome de seus princípios políticos – depor o monarca.

Se Lúcio de Mendonça não elogiou verso ou prosa de testa coroada – demonstrou de modo indubitável que a sua admiração literária era sobranceira a paixões políticas – indigitando para fundador da Academia o seu atual presidente.

Essa justa homenagem ao valor intelectual do denodado polemista católico e monárquico, prestada por um homem que nunca beijou a mão de El Rei, nem beijaria o pé ao Santo Padre, – assume relevo maior, como expressão de nobreza d’alma e de superioridade de espírito – para quem sabe o temeroso redator do Brasil e o seu futuro companheiro de Academia, cruzaram as penas em duelos iracundos – que eu acompanhava como aprendiz, grato a ambos, por me haverem honrado com a mais generosa simpatia.

Não me perdoaria a consciência se, no momento em que recordo favores do colaborador da Semana, deixasse de rememorar e de agradecer os obséquios de quem redigia o Escrínio do Brasil.
Trinta anos já passados não apagaram a lembrança, e coisas passadas não alteraram a doçura daquelas palavras de animação e de prestigiosa benevolência.
Sendo de tanta beleza o feitio moral de Lúcio de Mendonça, não admira que sua compreensão da camaradagem literária abrangesse a todos sem discernir idades nem condições.
Louvava os moços, como se os considerasse irmãos, e também se batia com eles como se os tivesse por condiscípulos.

Essas discussões eram, a meu ver, a prova mais significativa da sua fraternidade.
Quem louva, pode louvar na situação de superior, à distância, do alto de soberba protetora, deixando cair o louvor como o sol inacessível lança a esmola de sua luz. Mas quem desce, acudindo a um desafio, afirma que se julga o igual do adversário e o tem por digno do seu combate.

Ora Lúcio de Mendonça, possuindo já o prestígio de uma reputação literária, conquistada por trinta anos de atividade – já ministro do Supremo Tribunal, já acadêmico – empenhava-se em lutas com estreantes; e uma das suas rijas polêmicas travou-a com um dos nossos companheiros, cuja fulgurante vocação jornalística irrompera, rubramente, no tumulto de uma juventude belicosa.

Conservo cicatrizes da sua pena, mas também guardo o eco das expressões de benignidade com que, sem me conhecer, foi surpreender-me na humildade do meu jornalismo provinciano; e não poderia omitir que a sua generosidade me inscreveu entre os que iriam constituir a Academia.
Essa indicação, o voto persistente de Joaquim Nabuco – a quem minhas escusas, aceitas por outros, não demoveram – são títulos que eu devo lembrar aqui, não por serem de glória, mas por serem títulos de dívida.

Poderia esquecê-los, ao dar-vos os meus agradecimentos?
A mesma gratidão que se dirige aos vivos, vai procurar aqueles desaparecidos cuja intervenção, à distância, me favoreceu.

Não foram estranhos ao êxito da minha candidatura o patrocínio de Lúcio Mendonça e o voto de Joaquim Nabuco, a quem a minha saudade glorifica e venera.
Vi-o, pela primeira vez, ao passar pela Bahia, quando regressava do exílio voluntário que padecera em Londres, pela sua fidelidade à causa dos cativos.

Desse encontro, guardo apenas a impressão de uma formosa cabeça de moço, entre duas grandes sombras, a da noite que caía e a da espessa multidão que subia, aclamando-a e à qual ele excedia pela estatura, feita para dominar nas horas tempestuosas de guerra e de glória. Conheci-o, porém, de perto, quando ele já não era o tribuno do abolicionismo e começara a ser o historiador do Segundo Império.
O combatente inda não emudecera; no entanto já se fazia, pouco a pouco, em seu íntimo, o apaziguamento das paixões políticas, que iam cedendo lugar à calma das criações literárias, finalmente entrecortadas por murmúrios de preces e silêncio de meditações religiosas.
As mãos que gesticularam, sobriamente, nos improvisos da oratória popular e parlamentar, já se demoravam no lavor de páginas de arte luminosa e serena, e talvez já descansassem desses trabalhos tranqüilos, juntando-se na imobilidade da oração.

Esse período da vida de Nabuco, iniciado na colaboração do Jornal do Brasil, continuando na convivência da Revista Brasileira de José Veríssimo, pertence também à história da nossa Academia, e merece ser lembrada aqui, não só por esta circunstância, mas por ser de maturidade intelectual e da perfeição artística do nosso primeiro secretário.

É o tempo de Minha Formação, de Um Estadista do Império, que engrandecem o prestígio da Academia Brasileira; é também a época de elaboração de Pensées détachées, livro admirável onde Faguet viu cintilações do estilo de Chateaubriand e que seria excelente recomendação de uma candidatura à Academia Francesa.

Se o escritor, na plenitude do seu poder mental, grava páginas definitivas, o homem apura qualidades e virtudes para que a derradeira imagem de sua fisionomia moral – fosse uma obra-prima.
Essa formosura interior já transparece no seu rosto.
O Nabuco dos últimos dias da nossa convivência apresentava na sua figura o que raramente se vê – a beleza e a majestade da velhice.

Graça Aranha, com a alegria criadora do artista que encontra um tema correspondente à sua estética, pintou admiravelmente a mocidade heróica de Nabuco; os clarões da sua manhã, o deslumbramento do seu meio-dia; as horas radiantes e vitoriosas.

Falta a réplica a este quadro: o da honra inefável do entardecer, quando a violência cromática do crepúsculo começa a suavizar-se em melancolia, e tudo parece preparar-se para o momento augusto e misterioso de concentração e piedade, em que, no silêncio da terra e na atenção dos céus, revoarão com os derradeiros pássaros as primeiras badaladas da “Ave Maria”.

É o Nabuco dessa hora crepuscular, coroado de neve, com alma resplandecendo alvuras alpinas – o que se alteia em minha memória e sinto junto a mim ao ocupar a Cadeira cujo patrono é Laurindo Rabelo.
Se houvesse entrado para esta Casa quando os acadêmicos elegeram os seus paraninfos, é certo que, no momento da escolha, o lembraria entre os dignos de compor, acima da Academia mutável dos vivos, a Academia suplementar de sombras inamovíveis que assim são, verdadeiramente, aqui, os imortais.
Laurindo figura entre estes com direito adquirido por um punhado de versos, remanescentes de grande acervo extraviado.

Perdia as suas obras com a mesma facilidade com que as compunha. Algumas delas não poderiam vir a lume em publicações da nossa Academia.
Outras, porém, coligidas e por coligir, merecem reedições, para que seja sempre lido e amado esse poeta, bem nosso, de profunda sinceridade, quase de todo alheio a influências estranhas, que encontrou o melhor de sua poesia dentro de si mesmo, na amargura de sua alma ulcerada pela hostilidade dos homens e pela crueldade do destino.

O que mais brilha em suas estrofes são lágrimas e lágrimas, que foi derramando pelo caminho da vida, onde encontrou mais que sete passos de amargura.
E, no entanto, essa figura dolorosa aparece como herói de uma espécie de romance cômico. A sua legenda é, como a de outro infeliz, Bocage, uma série de casos divertidos em que o poeta se destaca – espadachim do sarcasmo – replicando com seguras estocadas às agressões da tolice e da soberba; ou entretendo o vulgo com o fogo de artifício de sua improvisação inesgotável, ou gozando ociosidade de boêmio em descantes ao violão.

São numerosas as anedotas da sua existência inquieta, de estudante de seminário, de acadêmico de Medicina, de cirurgião do Exército; muitos também os seus epigramas a lentes, autoridades militares, a quantos enfim, por qualquer motivo, lhe desagradavam.
Na admiração popular, durante muito tempo, cabeça erguida, semblante carregado, polegares metidos nas cavas do colete, balanceando o corpo esguio, e muito mal vestido, passou pausadamente, o chamado – poeta Lagartixa.

O vestuário de Laurindo foi causa de muito riso.
Contam que, regressando tarde à casa que o hospedava, e não querendo bater à porta, estirou-se num banco de jardim, para esperar a manhã, e do seu chapéu alto, ainda novo, fizera travesseiro.
Ajunta-se que, certa vez, voltou do mercado com uma tainha no bolso interno do paletó abotoado, indiferente às cócegas que lhe fazia na barba a cauda do peixe.
Improvisador extraordinário era, na Bahia, procurado para todas as festas e aplaudido em todos os salões.

O entusiasmo dos admiradores perdoava-lhe as roupas.
Mas, muitas vezes, chegavam elas a tal estado que até os mais complacentes se resignavam a perder a encantadora companhia do poeta.
Um desses, a quem a família pedira que convidasse Laurindo para um baile, escusou-se, ponderando:
“Agora não. Esperem que ele tenha outra roupa.”
Assim que isso se deu, fez-se o convite, logo aceito.

Mas o sarau começou sem o poeta. Quando já estavam cansados de esperar, bate alguém à porta. É ele. E todos correram para receber o retardatário. Quem chegava era um carregador trazendo em tabuleiro a roupa nova do poeta e este bilhete: “Aí vai o Laurindo.”
Não procuro apurar a veracidade de algumas dessas histórias.

As que, porventura, forem falsas, mais não fazem que carregar na intensidade das verdadeiras, sem lhes mudar as cores. A inexatidão do quadro consiste antes no que dele se exclui, do que nele se exagera.
Vemos o boêmio que fere ou distrai os homens, meneando a cabeça, como uma árvore cujo topo o vento agita; mas não vemos nessa árvore sobranceira o que se nota no pinheiro que Théophile Gautier mirou à beira do caminho, ereto e altivo, qual soldado a sangrar, que quer morrer de pé; isto é, a chaga que lhe abriram no flanco, e por onde a seiva escorre.

Laurindo pode ser comparado a esse pinheiro ferido que, na visão do ourives de Émaux et camées, simboliza o poeta que, nas dunas deste mundo, quando lhe golpeiam a alma, derrama os versos seus, divinos prantos de ouro.

Na coleção de cenas, mais ou menos autênticas, da legenda do poeta, faltam as que ela excluiu, e que, juntas às jocosas, formariam antíteses de trágico efeito artístico e de absoluta verdade; as em que Laurindo aparece na miséria e na dor; tirado, por mãos amigas, do socavão onde altivamente morre à fome; ante o cadáver do irmãozinho assassinado; vendo o pai ensangüentado por mão homicida; espectador atribulado da angústia da irmã – irmã também pelo gênio da poesia – acabando na loucura e morrendo de saudades do noivo prostrado no chão da guerra; inclinando-se, com a graça triste e o gesto piedoso de roseira desgrenhada, a sacudir sobre um túmulo pétalas e orvalho, lastimando-se em versos que mais pungiam por serem as últimas lágrimas de sua desventura e as derradeiras flores de sua razão agonizante.

E como remate desses e de outros tormentos que ele sofreu sem se revoltar – no tempo em que o romantismo era revolta – sem blasfemar – e a poesia da época blasfemava – vede o episódio da suprema resignação, quando aquele que poderia julgar Deus seu inimigo aperta o crucifixo nos braços que nunca levantou contra o céu – e morre cristãmente.

Esse poeta sincero e simples, sem surpresa de ninguém, foi, por outro poeta, de natureza semelhante, Guimarães Passos, erigido em patrono da Cadeira que inaugurou.
Mas já deixou de causar estranheza a substituição do trovador da Casa branca da serra pelo cronista Cinematógrafo.
Alguém teve por esquisita a lembrança de elegerem para aquela Cadeira, em vez de quem “como Laurindo e Guimarães fosse na vida o prisma azul por onde não se vê a vida”, um “espectador desta sociedade que se constitui...”

Esse a quem tal sucessão maravilhava e nela até divulgava ironia, era o candidato eleito.
Se a Academia quisesse obedecer ao critério de reservar cada cadeira para determinada família de espíritos, de modo que só admitisse pretendente ligado ao morto por afinidades intelectuais, Paulo Barreto não teria proferido o discurso de recepção em que afirmava haverem desaparecido os boêmios líricos e se ter extinguido na arte o sentimentalismo.

Esta Cadeira não seria o seu lugar e nem sei que outra lhe quadrasse, porque antes de sua entrada, não houvera aqui, ou em figura de vivo, ou em fantasma de patrono, quem vigorosamente representasse o gênero literário que ele, no Brasil, cultivou com tamanha superioridade.
Assim só porque nele era grande o dom da simpatia artística, que lhe tornava penetráveis e compreensíveis naturezas diferentes da sua, pôde, com pincel amistoso, tonalidade exata e traços irrepreensíveis, fazer o retrato do outro, de quem muitas diferenças o separavam.
Guimarães Passos era essencialmente poeta e Paulo Barreto nunca fez versos.
Quando, pela reorganização de serviços no jornal em que colaborava, Guimarães Passos foi incumbido de trabalhos de repórter, preferiu retirar-se a aceitar a nova profissão; e Paulo Barreto era repórter por excelência, dizia ser repórter, de ser repórter se ensoberbecia.

Guimarães Passos amava a boêmia e desejaria que ela fosse sem fim. Paulo Barreto, pelo contrário, nela via feição transitória da mocidade, que devia ser brevíssima. Acusava-a de “desperdiçar energias e criar hostilidades ao ambiente real” e dizia que “se Labruyère a conhecesse certo havia de considerá-la um vício”.

Depois de assim formular a sua aversão à boêmia, manifesta o seu desprezo pelo boêmio, nestas palavras do seu discurso:

Durante muito tempo, o escritor não passava no Brasil de um curioso anormal, desprendido das coisas terrenas, sem roupa, sem conforto e sem dinheiro, sem pouso certo, lacrimosamente dentro do seu sonho, a escrever sobre mesas de duvidoso asseio os poemas inspirados por uma bela hipotética.

 Não eram feitos para se entenderem o bardo descuidoso que não pensava no dia de amanhã, nem no de hoje, e o prosador disciplinado, de espírito prático, que amava as letras sem descurar dos negócios e prezava o trabalho pelo conforto que assegura e a consideração que conquista.
Quando se encontravam na rua, embora fossem pelo mesmo caminho, e juntos, levavam intenções opostas.

Um ia pelo ofício e o outro por divertimento. Guimarães Passos passeava a fantasia distraída e Paulo exercia a observação vigilante.
Mas, apesar dessas dessemelhanças, Paulo, a quem interessavam todos os incidentes da vida e todos os tipos da cidade, não podia querer seriamente que, das ruas e das letras, desaparecesse o boêmio. Quem ama, como artista, a existência na variedade do seu pitoresco, há de admitir tanto o jornalista que faz inquéritos da mais palpitante modernidade quanto o trovador que faz serenatas do mais antiquado romantismo. A um cronista como ele o foi, competiria, por dever profissional, aprovar a edilidade pela proteção dispensada aos pássaros que cantam nas árvores urbanas, e censurar a polícia pela perseguição aos cantadores que trinam nas esquinas.

Referindo-se com tamanho desamor à boêmia, Paulo, parecendo visar Guimarães Passos, atirava em outros, nos que o hostilizavam, em inimigos recentes ou antigos, que também destes os tinha apesar de bem moço, porque começara muito cedo. E onde havia de ter começado senão na Cidade do Rio?
Era ali que as vocações precoces iam esperar pela celebridade e pelo buço, José do Patrocínio, alma afetuosa, braços abertos, recebia carinhosamente os plumitivos implumes.
Paulo Barreto parece ter entrado para a Cidade do Rio na idade em que muitos ainda não saíram do colégio. Os primeiros artigos, turbulentos e temerários, revelavam o inevitável nas obras da juventude: a convicção da infalibilidade, a certeza de que tudo está errado e a esperança de tudo endireitar, a irreverência demolidora.

O estilo desses primórdios era obscuridade e desordem, o que não admira: o caos é o começo de tudo.
Em Paulo Barreto, que madrugara na imprensa, havia névoas do alvorecer, pontilhadas de centelhas promissoras.
Pouco a pouco a frase se aclara; através das sombras que se adelgaçam, o sol começa a sua tarefa de colorista e escultor, dando contornos e tintas às coisas informes e apagadas. Perdurarão apenas, aqui e ali, alguns farrapos de nuvens opacas.

O jornalista que começara a falar no tom de quem já soubesse tudo, conhece que alguma coisa ignora, e lê, lê muito, com muita pressa e compreensão rápida e fácil, nos intervalos do seu labor imenso, nas curtas horas de descanso do seu dia exaustivo.

Lê Anatole France, Maeterlinck, Eça de Queirós, D’Annunzio, Jean Lorrain, Oscar Wilde, os Goncourts, os modernos de nomeada mundial e principalmente os mestres da crônica francesa, os grandes artistas do jornalismo, os reporters culminantes, como Huret e Brisson, os que, pelo estilo, pereneficam o efêmero e tornam digno de ressuscitar no livro o que morrera nas gazetas.

Deles aprendeu e imitou a arte de enquadrar em artigos e crônicas a aquarela de uma paisagem, a silhouette de um escritor, a caricatura de uma personagem, o comentário de um fato, a crítica de um momento social, a história de um crime, o enredo de um drama, o deslumbramento de uma festa, cenas de rua, peripécias de batalhas, tudo, enfim, dos dias que passam.

E caso o dia que passa for tão miserável que não dê um tema sequer ao jornalista, nem por isso o jornalista desprevenido deixará de dar o seu artigo ou a sua crônica.
O jornalista sem assunto será como um sujeito sem vintém. Mas quando essa penúria alcança quem possui vocação para o ofício, ele não pensa em sair à rua, para esmolar uma idéia pelo amor de Deus.
Arroja-se pela tira em branco que nesse momento difícil parece alongar-se em estrada sem fim.
E não raro, feito o artigo, terminada a crônica – quando o autor repassa, na leitura, por esse caminho de papel que, ainda há pouco, o inquietava com a sua árida alvura de areal, surpreende-se ao ver o deserto povoado, animado, transmudado por figuras que nem sempre lhe apareceram em dias de abundância, por imagens da mais sedutora beleza, exprimindo, como nunca, a ironia, a ternura, o contentamento, a piedade, o amor.

Assim, quem começara incerto, por se julgar tão pobre, pode acabar admirado de ter sido tão inteligente, sentindo que Deus o fizera à sua imagem e semelhança, também criador, com restrições: para tirar de nada – um folhetim.
Paulo Barreto era desses. A obra que deixou, com exceção de poucos livros, foi feita para o jornal que não espera e para um leitor que se não demora: o de banco de bonde, diferente do de poltrona de biblioteca. É a obra de cronista, não o que no silêncio de um convento redigia para a posteridade, e por isso tinha lazeres, mas o que improvisa no rumor de uma tipografia, para daqui a algumas horas, e por isso tem pressa.

Para o seu gênero de literatura, ele possuiu as qualidades necessárias: a sobriedade do traço, a elegância airosa e fácil; o dom da simpatia comunicativa, a leveza, o colorido, o movimento, a rapidez, a fantasia que empresta ao bom senso, pesado e rotundo, asas de borboleta e guizos de loucura e apresenta a verdade em travesti de paradoxo. A sua prosa trai a redação imediata que a paciência não retocou.

Perdia com isso em profundeza? Ganhava em vivacidade. Não ostentava o bem acabado da meditação? Palpitava com a instantaneidade do improviso.
Não produzia o quadro que reveste de solenidade uma parede de museu, mas a mancha, o esboço que colecionadores delicados podem guardar com zelo e rever com agrado.
Para a fatura dessas obras, dispunha Paulo Barreto da visão pronta que apanha o fato ou a idéia e do estilo espontâneo que logo os fixa, e que lhe não custaria aprimorar.

Do seu entranhado amor a Portugal, deu as mais calorosas afirmações: venerando-o nas glórias do seu passado, admirando-o na vitalidade do seu presente, embevecendo-se na contemplação da sua natureza, estudando-o na originalidade dos seus costumes, enternecendo-se com a poesia de suas canções. Mas não quis sujeitar-se à disciplina dos seus clássicos, nossos também, o que faz lembrar o dito de certo professor de Paris, atordoado por uma clamorosa manifestação de estudantes, a favor da Grécia, vitimada pelo turco: “Como eles amam o grego, fora das aulas!” É pena, porque a familiaridade desses mestres favoreceria o artista com recursos preciosos para dar à sua prosa mais ductilidade, mais força, mais beleza, mais elementos de duração, mais modernidade até e tudo sem prejuízo e antes benefício da originalidade.

Na trabalhada frase de Anatole France, clássica e nova, lampeja, com limpidez inda não vista, o velho ouro de lei de Racine, Montaigne e Rabelais.
Não há, nessa observação, censura, haverá quando muito, queixa, nascida justamente da admiração e da simpatia.

Para atenuação da culpa, basta considerar que quando Anatole France começou realmente, perante o grande público, a sua carreira literária, aparelhada com uma erudição formidável que lhe pesava tanto quanto pesa à abelha o néctar das mil flores que sugou, e senhor de uma forma perfeita, contava quarenta anos, isto é, a idade exata de Paulo Barreto, ao deixar a imprensa e o mundo, legando-nos uma obra avultada, não totalmente contida nos seus livros numerosos.
Levou-o a morte, precisamente na época normal da maturidade, quando inspiração e experiência se equilibram e se completam e se ajudam em fraternal harmonia.

A sua produção é, para bem dizer, de infância e mocidade, toda ela feita aos nossos olhos, sem descanso. Assistimos ao seu crescimento, dia por dia, na publicidade, como assistimos ao das árvores da rua. Quem quiser estudá-lo no seu desenvolvimento contínuo encontrará, da Cidade do Rio à Pátria, passando pela Gazeta de Notícias e O País, a mais significativa documentação e a mais segura cronologia. E verá – nascendo, crescendo, florindo e frutificando uma vocação admirável com o irresistível das forças naturais.

Paulo Barreto não conheceu as indecisões aflitivas dos que vacilam, entre várias carreiras, na dúvida do que vieram fazer no mundo. Nasceu jornalista e não consumiu tempo em perguntar o que seria. Foi, quanto antes, para o jornal, escrever; assim o rouxinol não fica num galho a pensar se nasceu ou não para rouxinol; vai cantando.

Surgindo tão moço, como jornalista, Paulo Barreto havia de ter causado a seu pai, o Dr. Coelho Barreto, orgulho e decepção. Orgulho, pela promessa de futuros triunfos; decepção, pelo malogro de esperanças austeras. Aquele ilustre mestre era positivista ortodoxo, filiado à Igreja Brasileira.
Deu ao filho, parece que intencionalmente, o glorioso nome do Apóstolo, dos maiores do calendário de Augusto Comte e que designa, como é sabido, um dos treze meses.

Mas ainda: levou o seu filho único ao templo, para que recebesse o sacramento da apresentação, que lhe foi conferido por Miguel Lemos, a 8 de setembro de 1883, dia por mais de um motivo memorável: por ter então oficiado Lagarrigue e por ter o chefe do apostolado nacional, pela derradeira vez, exercido atribuições sacerdotais por delegação de Lafitte e invocado este chefe comum que, já no postrídio dessa cerimônia, aberto o chisma, passava ser chamado, rancorosamente, o sofista.
Quem poderia prever que aquela criança de dois anos, destinada, na expectativa paterna, a ser um fervoroso fiel da Religião da Humanidade, um apóstolo, talvez, e nunca o ironista que foi, quem sabe se algum dia Paulo do comtismo, porém jamais um João do Rio, – estava olhando para a cerimônia, em que figurava, com os olhos, destituídos de veneração, do futuro repórter das Religiões do Rio? Quem imaginaria que a apresentação de Paulo era um sacramento perdido, talvez estragado por influência maléfica de Lafitte, na véspera de sua deposição?

Paulo Barreto voltou ao templo, não como crente, mas como repórter, quando visitava cartomantes e feiticeiros, e por essa ocasião notou, com ironia, que ainda não haviam plantado o bosque sagrado, necessário ao culto externo da Religião da Humanidade.

Ora, todos sabem que o positivismo abomina o jornalista e no dia em que mandar não se limitará a podar o jornal com a tesoura de alguma lei manhosa – derruba-o com o machado da ditadura. Nesse dia, Dies Irae, com outras instituições, desabará o mundo acadêmico, já condenado pelo comtismo, em cuja balança, na concha dos pecados, pesa o fardão de Paulo Barreto, piorando-lhe a situação, muito séria já, por haver ele repudiado o batismo e o nome, crismando-se com outro para a vida da imprensa.
Adverso ao jornal, o positivismo há de, portanto, julgar mais severamente do que a qualquer outro, a quem, com a agravante imperdoável de ter desprezado o sacramento conferido por Miguel Lemos, na presença de Lagarrigue, encarnou, de modo tão assinalado, a instituição maldita: foi o jornalista capaz de criar, dirigir e escrever, sozinho, um jornal, em todas as seções; foi tal a variedade de sua aptidões, mais que um jornalista, uma redação: com o noticiarista dos comentários irônicos ou graves, o redator de artigos políticos, o autor de contos elegantes, o crítico de livros, o de arte, o de teatro, o cronista dos salões aristocráticos, o repórter das vielas sinistras, o investigador dos assuntos de alto interesse social, o inventor de entrevistas imaginárias, o escritor que, como ele disse de si mesmo, “veio para a vida – ver” e o que também veio para agir; o que surgiu, com um espírito novo, quando a cidade assumia novo aspecto; o que chegou a propósito para registrar o movimento, a ansiedade, a febre, o rumor da vida vertiginosa de um período de remodelação; o que se extinguiu – tornando-se assim mais sensível o irreparável do seu desaparecimento – quando esta Capital se agitava com a expectativa de maiores transformações, quando se aproximam dias fulgentes que, uma vez acabados, perpetuariam o seu brilho de festa se pudessem refletir-se em páginas do incomparável cronista da cidade.

Não tento apresentar-vos aqui a sua figura; mas, sem esforço meu, estais a vê-lo agora, com a alegria e a mocidade que trouxe, quando entrou por esta Casa “como um raio de sol” no dizer do grande orador que o recebeu; e assim o veremos, redivivo que está, no esplendor inextinguível do discurso de Coelho Neto.

Antes de ter perdido aquela mocidade irradiante, perde a vida; e o pouco que dela lhe restava quase o deixa onde fora deixando o que já se fora: na sua mesa de trabalho. Foi o trabalho que o matou.
A imprensa não é somente a insaciável aniquiladora de florestas. Para se nutrir, esmaga, tritura e devora as árvores e os homens.
A morte de Paulo Barreto foi um desenlace em harmonia com a sua vida vertiginosa.
Já agonizante não esquece que é repórter.
A notícia do seu fim,

...essa última notícia
ele próprio insistira ao seu jornal trazer,

como Félix Pacheco disse na comovente elegia em que glorificou e chorou, com toda a ternura do seu coração de poeta, o amigo e companheiro.
Nesses versos, singelos na sua beleza, como a dor verdadeira, apenas adornada com seu pranto, – uns breves, como lágrimas, outros prolongados, como longos lamentos, palpita a angústia inenarrável daquele acabar:

Todo esse prodigioso acúmulo de vida,
Num minuto precípite passou,
E a elegância repolida
Do esteta singular, do construtor soberbo,
Tombou, baqueou,
No colapso acerbo,
Dentro de um auto em disparada,
Pela avenida iluminada,
Já debaixo da glória, em plena rua,
No turbilhão,
Ouvindo, perto, o oceano a altear-se para a lua
E a seu lado a rodar, a rodar a multidão...

Essa multidão que, na ignorância da desgraça, ocupada com os seus cuidados, vira indiferente, à luz das lâmpadas elétricas, passar a morte numa enganadora corrida de automóvel, pois parecia a vida na sua impetuosa jovialidade, horas depois, convocada pela nova acabrunhadora, iniciava em honra daquele simples jornalista homenagens extraordinárias.
A alma encantadora das ruas amplificou-se e transfigurou-se na alma dolorosa da cidade.
E foi a cidade que conduziu o seu cronista ao túmulo.

As ruas retribuíram o afeto de quem as conhecia e amava uma por uma.
De todas elas veio fluindo em regatos a multidão que num transbordar de imensa vaga oceânica deu ao acompanhamento do jornalista essa imponência que muda a depressão da dor em solenidade de triunfo. Quando na pompa desse derradeiro dia Paulo Barreto tornou a passar pelo caminho da sua desamparada agonia noturna, tudo quanto era violáceo de saudades flamejava em glória de púrpura: a calamidade da sua morte desaparecia na magnificência dos seus funerais.