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Clóvis Beviláqua

                                               NA HELÊNIA

Nessa noite, Crobilo teve um sonho estranho que lhe pareceu uma revelação.

Estava sentado sob um frondoso plátano, em uma eminência de onde se avistava, a um lado, o Pireu com as suas cabanas de pescadores, seus vastos armazéns, suas extensas muralhas e os três portos. Mais além a ilha Egina, que Péricles chamara a belida do Pireu, e o mar, vasto e azul, cortado por vários navios garbosos, cujos remos fendiam as águas, unidos na distância, num compasso igual, semelhando grandes aves marinhas a agitar as asas em demorado vôo à flor das águas.

Sem que percebesse de onde viera, chega-se a ele Epicuro, com a mesma fisionomia sofredora e nobre, o mesmo olhar doce e suavemente melancólico, e os lábios encurvados pela mesma ironia fina que mais parecia eflúvio de uma alma que sofre do que desilusão de um espírito que tudo sondou para tudo saber. Estavam sós, Epicuro pousou-lhe a mão no ombro e falou, numa voz persuasiva e acariciante:

- Buscas o repouso e a felicidade. E onde julgas que esteja a felicidade, e onde pensas que se esconda a paz do espírito, que é doce como um fruto sazonado? No prazer? Na volúpia? No gozo fugitivo e vão dos sentidos? Aristipo e a escola cirenaica foram todos uns desvairados. Não afastes o prazer que te for deparado pelo mundo; mas colhe-o como quem colhe uma flor. Ele vem da natureza e foi ela que assim nos moldou a vida. Erigir porém a satisfação dos desejos materiais em princípio fundamental de conduta, em base da moral, é um pensamento sujo que tresanda a vinho. O prazer físico, se é descomedido, exaure deixa um ressaibo de fel; a volúpia contínua apaga o fogo da inteligência, centelha divina que nos destaca e eleva acima dos brutos e dos bárbaros.

- Mas a religião? balbuciou Crobilo dominado mais pelo tom das palavras do que mesmo pelo que elas significam.

- A religião? ... O filósofo teve um olhar mais condoído e uma ironia mais forte, porém uma doce ironia que não magoava. A religião? ... Não atormentes os deuses com as tuas preces insensatas. Efebos eternamente belos, eternamente jovens, afogados na ebriedade de um gozo ideal, não podemos sequer imaginar que eles se rebaixem a se imiscuir com a nossa vida mesquinha que dilaceram as paixões e as dúvidas. Serenos e despreocupados, eles vagam pelos intermúndios, enquanto o lento curso das coisas se desdobra imutável, impelido pela queda dos átomos em turbilhão.

- Mas a pátria?

- Bela e nobre coisa é, por certo, servir aos seus, ser útil à pátria. Mas teriam sido felizes, Aristides banido, Temístocles, refugiado entre os persas, Fócion, bebendo a cicuta preparada por aqueles mesmos a quem procurara servir, Demóstenes, suicidando-se no templo de Posêidon, na Calaia? ... Não te descoroçoem estes exemplos, e serve à tua pátria nobremente, como estiver em tuas forças; mas não suponhas que encontrarás aí a felicidade. O favor popular é uma fonte inesgotável de mágoas e dissabores. O povo é inconstante e cruel; sacrifica, em uivos de cólera, o ídolo que adorara de joelhos no dia anterior. Que mortal foi maus endeusado pelos atenienses, do que Demétrio? E, no entanto, que destino triste o seu!... Não procures o favor das turbas; segue impávido o teu caminho e deixa que a onda popular se espoje além, sem te arrastar no seu refluxo.

- E o que fazer? Onde beber, então, o gozo que as almas procuram sedentas? Onde a felicidade? Onde a paz do espírito?

- Há um vinho mais doce e mais delicado do que o que se extrai dos cachos da uva de Quio e que se bebe em taças lavradas. É a prática do bem, é a virtude, a qual nos dá o gozo no momento atual, que passa rápido, e no passado, que subsiste pela revisão do que fizemos. Ninguém pode ser feliz sem ser justo! Existe um favor mais cobiçável do que o da populaça de Atenas ou de qualquer outra cidade: é o da própria consciência e o da consciência dos que nos podem compreender!

Coloquemo-nos acima do vulgo, sem desprezá-lo vaidosamente.

Libertemo-nos de suas inquietações crudelíssimas e de seus temores infantis, criados pela ignorância; mas não procuremos arrancar-lhe as ilusões que lhe amenizam a existência, uma vez que não é possível iniciá-lo na religião da ciência, que tem as suas provações como as outras os seus mistérios.

Envolvidos no cendal sereno da ataraxia que nos dá a contemplação das leis universais da natureza grandiosa e vasta, da beleza ideal e da virtude, cortemos o cordão umbilical que nos prende ao mundo reduzido de uma pequena cidade helênica, e elevemos a vista mais ao largo, mais ao longe.

A suprema serenidade que só as almas superiores conhecem eis a felicidade tangível. O caminho que a ela nos conduz é essa necessidade faminta de conhecer o mecanismo da vida universal, aliada a essa outra necessidade de ser bom, de ser justo. Isto é a filosofia, é “a energia pela qual a razão conduz o homem à felicidade”. A filosofia é um rio de águas claras e profundas, mas está longe, muito além, por trás de montes altíssimos, de florestas rebarbativas.

O filósofo calou-se. E nesse momento assumiu Telesipa, como se tivesse emergido do solo.

Tinha um sorriso vitorioso aberto em flor na flor dos lábios, e, arrepanhado um pouco a túnica que o vento do mar agitava, derramou a luz do seu olhar sobre as dúvidas tormentosas de Crobilo. Falou, radiosa:

- Não rebusques mais nem desesperes. A felicidade sou eu! É bem simples, poder crer: a felicidade sou eu. - E, envolta em uma nuvem diáfana, trescalando mirra, sorriu ainda, vitoriosamente.

O filósofo, envolvendo os dois jovens no mesmo olhar compassivo, acenou com a sua bela cabeça de pensador, aprovando:

- Amai-vos - disse - enquanto sois moços e a lira de vossa alma tem vibrações para essa incomparável ternura que transvasa do seres quando se enfloram para o amor! Amai, dissolvei o vosso ser em ondas de afeto! Sim, é isso. É bem simples e é perfeitamente humano. Mas não esqueçais a linha reta, e, sempre com os olhos fitos no alto, procurando compreender a natureza e a vida, o real e o justo, segui o vosso caminho, unidos e felizes, desassombrados e inesitantes.

 

                                                                          (Frases e instantes, 1894.)

 

EM DEFESA DO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

                                                     [...]

Por um lamentável desvio da crítica, versou a discussão muitas vezes, entre nós, sobre questões de estilo e gramática. Fugi o mais possível de envolver-me nessa contenda bizantina que um só resultado poderia ter: o de perdermos um tempo considerável e precioso, se não a oportunidade de obter a passagem do Código Civil no Congresso. Mas era impossível ficar quieto, imperturbável, quando a picareta impiedosa, derrubando a caliça e levantando nuvens de poeira fingia estar solapando a construção.

Desejariam os antagonistas do Projeto vazá-lo numa língua hierática, impecável, que jamais existiu na realidade da vida, que jamais foi falada pelo povo, e que eles supõem idealmente criada pelos escritores de sua predileção.

Para mim a língua é o que disse Schoefle, “a capitalização simbólica do trabalho intelectual de um povo”, continuamente a remodelar-se, a enriquecer-se de formas novas, a ganhar energia e delicadeza de expressão. Por isso bem sentenciou Araripe Júnior, quando afirmou: “O escritor que não se utiliza da língua viva de seu tempo, será um mau escritor ou um escritor incompleto.”

Muitas vezes será um espírito de grande valor, atingindo as grandes alturas da forma artística, a quem a vida no seio de uma literatura estranha ou de outra época, por assim dizer, alienou do meio social contemporâneo. Sem esse voluntário afastamento, mais acentuada e fecunda seria a sua influência nas letras pátrias.

Se um Alfred de Musset irritava-se e prorrompia em acres reprimendas porque uma vírgula fora mal colocada, não devemos imitá-lo em sua doentia preocupação.

A língua de que usamos deve nos merecer afetuoso cuidado, mas, como observou um escritor espanhol, as línguas vivem de heresias, a ortodoxia condu-las à morte. Muitas ideias dificilmente se exprimiriam com as frases usadas pelos clássicos e é absurdo que mutilemos as ideias porque no guarda-roupa dos séculos passados não encontramos um traje talhado para ela.

Mas, ou o Projeto apenas pecasse contra um desarrazoado purismo ou contivesse reais defeitos de forma, é fora de dúvida que o aperfeiçoamento de sua redação, sob o ponto de vista gramatical, devia ser considerado operação secundária e jamais postergar o exame dos princípios jurídicos que o Projeto encarnava. Foi inconseqüência injustificável preterir a essência pela forma.

                                                         [...]

                          A RÉPLICA DO SENADOR RUI BARBOSA

O eminente senador Rui Barbosa escreveu um volumoso in folio, de 214 páginas, para pulverizar as objeções feitas à crítica evidentemente inoportuna, clamorosamente injusta e desusadamente causticamente, com que S. Exa. recebeu o Projeto de Código Civil. Não estranho a vastidão desse trabalho, porque estou habituado a admirar, no egrégio escritor baiano, essa faculdade surpreendente de produzir grandiosos fragmentos em que a minúcia paciente da análise corre parelhas com o fluir estrepitoso da frase. Estranho, porém, que, sendo tão extensa, não seja completa a Réplica.

                                                    [...]

A Réplica é sem dúvida um ótimo expositor de gramática portuguesa, gramática prática, à moda Cândido de Figueiredo, com adubos de erudição mais extensa. Não serviria, porém, para modelo de argumentação.

                                                     [...]

Avara na resposta aos pontos litigiosos e pródiga em considerações estranhas ao assunto em debate. Tal se mostra a Réplica; ao menos na parte que mais de perto me toca. E não tanto por nos ter dado um farto volume de filologia, após outro pouco menos volumoso, como inesperado exórdio de um debate jurídico, e sim principalmente por achar sempre meios de trazer para o pleito o que melhor seria que permanecesse fora dele.

A minha personalidade literária, já de si apagada, é sem valia, não reclamava essa marcha de flanco que a Imprensa começou a desenvolver, a que discursos proferidos no senado imprimiram movimento mais acelerado e que a Réplica acaba de transformar em ataque mais direito.

Entre os defeitos que me tornavam impróprio para realizar a assoberbante empresa de redigir um Projeto de Código Civil, salientava a Imprensa como primacial a ignorância da língua. “Falta-lhe um requisito PRIMÁRIO, essencial, soberano, para tais obras: a ciência da sua língua, a casta correção do escrever.”

Eis aí: para elaborar um Código Civil, o saber jurídico é requisito secundário e subordinado; o essencial, o indispensável, o soberano, a qualidade primária é “a casta correção do escrever.” Sobre essa ideia original tem sido construída toda a crítica ao Projeto atual. O Parecer e a Réplica são desdobramentos lógicos desse pensamento primordial. E somente por uma inconsequência, como há muitas na Réplica, acha censurável o egrégio senador Rui Barbosa que a comissão da Câmara tenha pedido ao dr. Ernesto Carneiro, profundo conhecedor da língua e elegante escritor, o auxílio valioso da sua competência.

Se para codificar é bastante possuir a casta correção do escrever, porque exigir conhecimentos jurídicos de quem fora chamado exclusivamente para dizer sobre a linguagem?

O pregão da minha incompetência tem sido martelado sobre esta base. “Bem se vê que vive fora do idioma em que se exprime”, diz a Réplica a chasquear. E a cada passo a obsessão se revela, lampejando às vezes numa frase rápida, espraiando-se, outras vezes, em exclamações emocionantes, transpondo mesmo, em certo momento, os limites do que me parece o terreno próprio de discussões como esta.

As acusações objetivadas em fatos não são por ora mais de três. Um verbera a locução escritor de testamento.

Não há mais que dizer a respeito. Em atenção ao crítico que reflete a elevação sobre a pequenez da censura, consideremos as outras duas.

Primeiro artigo do libelo: terminei as minhas observações para esclarecimento do Projeto de Código Civil por uma adversativa porém. Este feio delito foi exposto à execração do Senado como característico da mais lamentável... negligência. “Eu creio que nos anais do escrever o fato é virgem. Há nesta assembleia escritores, gramáticos, homens de letras, e mesmo aos que o não são, eu estou certo, não há de deixar de produzir uma impressão de estranheza e de inverdade (?) extraordinária entre nós, verem acabar um livro por uma adversativa.” Na Réplica esta minha falta de tato gramatical e de gosto literário é novamente celebrada. O nobre senador gosta de insistir na mesma idéia, apraz-se em referir a mesma história duas, três e mais vezes.

Diz a Réplica: “O que ela (a tradição da língua) não tolera é encerrar com essa adversativa, períodos, parágrafos e obras, como fez o sr. Clóvis Beviláquia, em cuja longa introdução ao seu projeto de Código Civil, um porém sem precedente na história do nosso idioma remata aquele escrito, antecedendo ao último ponto final à assinatura do autor.”

Deve ter razão o ilustre censor. Mas observo, em minha defesa, que essa adversativa tem a particularidade de ser frequentemente usada, como pospositiva, construindo-se figuradamente as frases em que ela entra. Se nos clássicos não se deparam exemplos que me apadrinhem, nem por isso me sinto mais acabrunhado. Aprendi com Aristóteles que se deve procurar não o que é antigo, mas o que é bom, e tenho sérios motivos para suspeitar que, no século XX, o cabedal de conhecimentos da humanidade seja maior e mais sólido do que foi ao tempo dos quinhentistas.

Exclamações não são razões; portanto, enquanto estas se não revelarem, continuo a pensar que não é tão nefando o caso quanto se faz supor, e comigo pensa Maria Amália Vaz de Carvalho, escritora muito conceituada, que não trepidou em colocar, como eu, adversativa no fim de um período. "Tirem da história do mundo, em que já tem lugar primacial, toda a questão Dreyfus, e o romance de Zola talvez possa interessar-nos. Duvido, PORÉM."1

                                                     [...]

O que há de estranhável, de irritante mesmo, nas emendas do senador Rui Barbosa, é sobretudo o comentário onde esfuziam chufas, estridulam chanças e mal se esconde o menospreço pelo trabalho alheio. E o que pretendemos com as nossas defesas foi mostrar que houve muita injustiça nas acusações do Parecer, injustiça que foi a alma parens dos erros em que por sua vez caiu o ilustre senador.

O Projeto continha defeitos, mas o senador Rui Barbosa exagerou-os sobre posse. Exagerando-os, avolumando-os, realçando-os, inflando-os para que se tornassem mais visíveis, fez em torno desse produto legislativo um nevoeiro denso que nos tira a visão exata das coisas. E S. Exa. não escapou à ação perniciosa dessa caligem. Foi vítima de seu método, desviou-se da estrada segura; resvalou em alguns equívocos.

Não me interessam, porém, esses equívocos senão pelo que refletiam ou podiam refletir no contexto do Projeto ou na interpretação das doutrinas de que o Projeto se fizera expressão.

Add. 1905. Não se dá com o meu temperamento nem com a minha orientação literária desperdiçar o tempo a cata de um vocábulo, a ver como em 1500 o empregavam os cronistas, os vates e os predicantes. Mas, ao acaso das leituras, como ao sábio censor pareceu o caso singular e estranhou, fui sublinhando alguns empregos de pospositivas idênticas ou semelhantes, para não deixar desacompanhada a distinta escritora invocada no texto.

Eis aqui algumas amostras que não me deixam ficar sem precedentes ou me apontam subsequentes:

Fale em primeiro lugar o poeta Bernardim Ribeiro:

            E vi tudo escuridão

            Cerrei meus olhos então

            E nunca mais os abri;

            Que depois que os perdi

            Nunca vi tam grande bem;

            Porém ainda mal, porém!...

São estes os últimos versos do romance “A Visão” do conhecido e apreciado poeta que teve a ventura de viver no século XVI (Ver Parnaso lusitano, tomo III, p. 154).

Eça de Queirós nas Cartas de Inglaterra, traduzindo o Times, escreveu estas palavras: “ainda que a natureza não dispense bem todo o trabalho do homem... não o repele todavia.” E por essa adversativa termina o período. Creio que as duas adversativas, a de Eça e a minha, para o ponto questionado, se equivalem. (Ver a pág. 216 da ed. de 1905, pela Casa Chardron).

Carneiro Vilela conclui o cap. XIX de seu romance, Os filhos do Governador, pelo modo seguinte: “Não tinha fome, porém.” (Jornal Pequeno, de 10 de março de 1905, primeira pág., 4ª col.)

                           (Em defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro, 1906.)