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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Cláudio de Sousa

Senhores,

Nas solenidades de recepção do sucessor de um companheiro falecido, difícil é traduzir, Sr. Clementino Fraga, a perplexidade patética desta Academia, entre dois sentimentos antagônicos.

Não faz um ano, chorávamos, veladas estas mesmas luzes, enlutadas estas mesmas paredes, enrolada a meia haste, como asa ferida, nossa bandeira. Não se completaram doze meses, e já o salão se redoira de luzes e se enche de galas, e a bandeira que ontem se recolhia na tristeza, hoje se desfralda na alegria. Então, a musa plangia no epicédio, ora deve cantar o epinício. Então, a alma acurvada, derramava-se no choro do De profundis. Ora, exulta no Sursum corda.

Na terra daquele ontem tão próximo, como o é a luz da madrugada nas trevas da meia-noite, ainda não secaram as lágrimas vertidas no sepultamento.

Nem a morte pôde ceifar nos que ficaram, tanto que baste para extinguir as palpitações de dor dos que conviveram com aquele dileto e inesquecível mestre, príncipe de sangue, de nobreza e de virtudes raras, espírito estelar que ainda nos norteia nos caminhos incertos da vida: Afonso Celso.

Entretanto, dentro dos lindes da saudade pode o sorriso abrir-se na lágrima, como o arco-íris no temporal, à evocação dos primores e das qualidades do morto.

Foi o que fizestes em vossa formosa oração. Acabais de no-lo mostrar no fastígio do espírito, na imposição da nobreza, na impecabilidade da virtude, na grandeza inexcedível dos sentimentos. Desenhastes suas qualidades no panegírico, como desenhavam os egípcios nos túmulos as riquezas, as terras, os rebanhos, as jóias, os tesouros do morto.

Com o poder da eloqüência, fizestes reviver sua voz harmoniosa, e suave. Ouvindo-a, marejaram, de novo, as lágrimas do coração de todos nós que o amamos ontem, que o veneramos hoje e que o entregaremos comovidamente aos que nos receberem a herança. Viamo-lo tal que na sua prosa tivesse deixado a imagem, como a imprimiu Cristo no lenço da Verônica, como todos nós, Cristos da mesma agonia, do crime messiânico de pregar a beleza, deixamos nas páginas de nossos livros! Nosso coração oprimido pelo volume de pletora dessa mágoa imensa, um pouco se dessangrou com aquela visão. Não enveredastes pelo horto, senão pelo vergel daquela vida. Embalastes-nos a saudade, colhendo no jardim as flores vivas de colorido e suaves de aroma da obra imperitura do morto.

Só morre o homem que viveu, apenas, a vida do corpo. Esse, devolve à terra tudo que recebeu. Mas os homens que refletem sua vida na alheia, os que se transpõem de si mesmos para a coletividade, deixam na herança luminosa a eficiência póstuma da ação fertilizante e sazonadora. Fizeram em vida borbulhar a semente, desabrochar a flor, amadurecer o fruto. E como desses frutos outras sementes hão de provir, e dessas sementes outras flores desabrochar, ele continuará a viver nessa série de seminações e frutificações espirituais que constituem a imortalidade do pensamento. Do túmulo dos primeiros nenhuma luz se acende além dos fátuos fogos da decomposição; do túmulo dos segundos, a luz duradoura que ultrapassa os séculos.

Recebestes uma das heranças mais ricas desta família. Verteu Deus no berço de Afonso Celso opíparo legado das mais extraordinárias graças, prêmio, talvez, às virtudes das nobres almas de seus progenitores. E entre os primores do espírito e a magnanimidade do coração, presciente de que um e outro seriam tentados pelo orgulho dos louros que o esperavam, e pelo mau conselho da adversidade, doou-lhe couraça impenetrável, de aço bem temperado e recozido, a couraça da resignação à ordem divina e da obediência cristã, cega e inabalável. Faz-se-lhe rapidamente o inventário das qualidades, se declinarmos o nome das virtudes, partindo das cardinais, da justiça, da força, da temperança e da prudência, às teologias: – a fé, a esperança, a caridade.

Seu espírito foi a espada do fraco, e a escada do moço – e assim realizou a justiça. Sua palavra foi a defesa e o enaltecimento da Pátria, e com isso realizou a força. Sua fome e sua sede foram a fome do saber e a sede do mistério divino, e dessa forma praticou a temperança. Sua defesa dos princípios e das pessoas nunca se excedeu, e assim definiu a prudência. Sua devoção cristã nunca esmoreceu, e imperturbável foi sua fé, ainda nos transes adversos. Sua tenacidade na realização dos ideais foi a esperança. Sua bolsa sempre aberta ao pobre, e o coração aos amigos e aos inimigos, realizou a caridade, com essa culminância nos planos superiores da despersonalização.

É costume suprimir nos necrológios os defeitos, para apenas exaltar as virtudes. Constitui isso subtração da verdade histórica, porque nunca atinge a criatura humana os escarpados ápices da perfeição. Aborta a natureza o aleijão ou a fealdade para o realce da beleza; e os vícios para a exaltação da virtude.

Escreveu Bluteau nas Prosas que os sepulcros são obras mortas que encerram mentiras vivas. Deve-se controverter o final dessa sentença tratando do varão de Plutarco de que falo, em cuja vida moral nenhuma verdade se feriu. Vertei a água de qualquer moringa de terra cozida. Ela é cristalina e fresca. Examinai com atenção o vaso: nele encontrareis muita impureza. Verti na sede de meu coração o sangue daquele outro coração: estudei de perto o vaso e vi que a pureza se vertera da própria ânfora da pureza. As mentiras, erva maldita que cresce dos esputos da ambição na terra sáfara da inveja, não se sepultaram naquele sepulcro de glória, naquela obra viva, eternamente viva. Eis por que calou fundamente no ânimo deste auditório a imagem de vossa eloqüente elegia, quando lhe comparastes a alma à flor simbólica da pureza; viveu como um lírio, morreu como um lírio cortado da haste na plenitude da floração.

Amei-o tanto quanto amei meu próprio pai, e venero-o como venero as virtudes inexcedíveis dos formadores de minha alma. Amei-o na fase de suas maiores provações, a dos últimos anos. Vi-o chorar na dor cruciante dos golpes tremendos do destino inclemente, que lhos desfechou até mesmo na profundidade de sua fé cristã, levando ao túmulo contra as leis divinas dois entes seus. Vi-o soluçar junto ao corpo morto da esposa idolatrada, na qual seu amor se sublimara, luz de seus dias sombrios, consolação das noites insones, bálsamo de suas dores, exaltação de seus triunfos.

Desapiedadamente, com furor incontido, os maus gênios desferiram-lhe golpes sobre golpes. Levaram-no, afinal, ao suplício da dor física sem remissão, num leito de Procusto, onde os dias, as semanas e os meses com os minutos se mediam nos aiais do padecimento contínuo.

Atravessando a galeria do asilo que ele buscara para operar-se, ouvindo os gemidos que de um e de outro lado vinham cruzar-se, como ramos que espontassem da mata sinistra da aflição, entrei em seu quarto. Ao divisar-lhe as feições desmaiadas e a imobilidade do corpo, paralisado pelas dores incessantes, rebentaram-me dos olhos as lágrimas e da boca a blasfêmia:

– Deus é injusto, meu caro mestre – exclamei, exclamei, por vos fazer assim tanto padecer dentro da constância e da sinceridade de vossa fé, de vossas virtudes e de vosso estoicismo.

Ele sorriu, entre os gemidos, e respondeu-me:

– Não diga isso!... Leia a oração de Monte Alverne na morte da Imperatriz do Brasil.

Poucas horas depois eu lia na página que ele me recomendara:

“Há na ordem da graça um procedimento que parece incompreensível. O Eterno se compraz em cercar de tribulações os escolhidos de sua mão direita, para dá-los como espetáculo aos homens. Os prazeres, as honras e as riquezas não podem obter o prêmio destinado àqueles que combatem.”

Em nenhum de seus artigos, porém, em nenhuma frase, em nenhuma reticência, o justo deixou lamentação ou queixa.

Afonso Celso escreveu até a morte. Iluminou como o sol até o fim do crepúsculo.

Sua bondade imensa fez que nos tempos derradeiros de sua vida, em que lhe foi vedado receber visitas, se abrisse exceção para este menor de seus discípulos. Cada vez que eu lhe entrava no quarto, cujas janelas se abriam para o jardim, onde a vida viçava, enquanto ele morria lentamente, meigo e sereno, com aquele mesmo sorriso que na sua fronte bela e majestosa unia o cérebro ao coração, pensava eu na resignação de Jó.

Permitiu Deus que Satan tentasse vencer a paciência daquele outro justo; e fê-lo para provar a têmpera dos filhos extremosos. Tribos árabes assaltaram-lhe a fazenda e levaram-lhe os rebanhos. O fogo do céu queima-lhe e destrói-lhe a lavoura. O tufão derriba-lhe a casa, e sepulta-lhe a família nos escombros. Vê-se Jó de opulento e excessivo de famulagem que era, pobre e só na terra adusta, cauterizada pelas chamas.

Que grito lhe escapa, então, do peito? O do ódio, o do terror no delírio, o da revolta contra o castigo ingrato de Deus? Não. Sereno na fé invulnerável que abala as montanhas, ele exclama ainda:

“Deus me deu, Deus me tomou, bendito seja o nome de Deus.”

Satan não desespera. Apostema-lhe o corpo com úlceras vorazes, põe o fétido na sânie que empesta o ar.

Os homens, vendo-o naquele pelourinho, acusam-no de crime de impiedade, pois só os ímpios são assim castigados. Exprobram-lhe a resignação como sendo motivada pelo orgulho, por vã pretensão à santidade. Então, as lágrimas manam-lhe dos olhos, não com revolta, mas em penitência: Perdoai-me, meu Deus, se ainda na minha extrema resignação encontrais pecado!

Nem mesmo laivo desse pecadilho jamais notei que se pudesse suspeitar no justo de que me ocupo; nem o pecado venial dos subconscientes reprimidos, mas nem por isso inexistentes. Sua fé teve a unidade metálica, sem falhas. A unidade é a ordem e a harmonia e, portanto, o complexo criador da beleza. A vida humana é dispersiva por multifária. Precisa de ter um centro de conjugação e, ao mesmo tempo, de aferição dos valores morais. Em Afonso Celso para ganhar aquela unidade, o sentido de atuação concêntrica foi o de sua fé religiosa, como bem o assinalastes. Tudo nela se acolhia. Por isso teve sua vida grandeza, elevação e majestade.

Celebrastes sua beleza física, desenhando-lhe a imagem com as tintas da graça e da verdade. Lembro-vos as palavras de Antônio Vieira:

O morrer não foi perder, foi melhorar sua formosura. A vida tem contra si a morte; a formosura, ainda antes de morrer, tem contra si a mesma vida. Forma bonum fragile est, quantumque accedit ad annos fit minor. Os primeiros tiranos da formosura são os anos, e a sua primeira morte é o tempo. Se alguém lhe perguntar qual lhe está melhor, se a morte ou a mudança, havia de responder, antes morta que mudada. A formosura morta sustenta-se na memória do que foi, a formosura mudada afronta-se no testemunho do que é, pois uma “traz o epitáfio no rosto”, outra na sepultura. Chegada, pois, a gentileza humana àquele termo preciso de perfeição, em que o parar é vedado, o crescer impossível e o diminuir forçoso “está melhor à formosura a morte que a mudança”.

Assim trata Deus à formosura a que quer fazer o maior favor” (Sermão das exéquias de D. Maria de Ataíde).

Afonso Celso morreu em plena unidade da beleza física e da beleza moral.

De quantas horas precisaria para definir e louvar-lhe a obra e a vida! Teria que captar-lhes as origens nas vertentes do infinito místico, e não me deram as Graças asas para escalá-las; para cantar-lhe o louvor deveria afinar-me pelo ritmo das musas, de que nasci deserdado; para exaltar-lhe a glória teria que pedir à eloqüência dons que, como vedes, ela me recusa. Devo confessar-vos, entretanto, Sr. Clementino Fraga, que aceitei o ingrato encargo de cotejar com vosso valor, minha insuficiência, a que, tão generosamente, emprestastes em vossa brilhante oração títulos que vos pertencem – para ter mais uma ocasião de celebrar aquele amigo extremoso e mestre iluminado, que trago e hei de trazer sempre vivo no silêncio amoroso da profundidade de minha alma. Sabia que faríeis o que me não seria dado fazer.

Fizestes isso com gênio e sentimento. Não poderia igualar-vos, muito menos exceder-vos no estudo minucioso de seu espírito, que por inexplicável modéstia não lestes na íntegra, supondo que vossa palavra, sempre nova, pudesse fatigar este nobre auditório. Afortunadamente esse prazer de que nos privastes teremos com a publicação de vosso discurso, com o que nos reservastes para o dia seguinte as sobras do banquete espiritual que acabais de servir-nos.

Falemos, agora de

Vossa obra literária

Nela avulta a da eloqüência, a arte das artes, que traduz a voz dos sentimentos e das paixões, temperando-as nas cordas da própria sensibilidade, para torná-la mil vezes mais potente. Por que empolga o orador as multidões e leva-as consigo, cegas e inconscientes, como sonâmbulos? Porque ele é a voz das próprias multidões que o aplaudem. Empresta a boca à mudez dos que não sabem exprimir o que sentem. Diante do microfone a voz mais débil ganha vigor. O orador tem a mesma função, duplicada pela vibração humana, para exaltar os sentimentos ou avigorar as queixas.

Entrais nesta casa com essa entre outras credenciais. Dissestes ao tomar posse da cátedra de clínica médica em nossa Faculdade de Medicina:

“Não entrei nesta casa pelo beiral do telhado, nem varei num salto a janela entreaberta; arribando a porto conhecido, aqui me sinto bem” “fiel à morada de sua inteligência e à casa de seu pensamento”. Podeis hoje repetir com documentada segurança aquelas palavras, porque não tínhamos telhado quando fostes eleito... Só agora o estamos construindo para nos pormos á salvo das filtrações da laje de cimento que nos cobria, já que de outras não nos podemos livrar... Mas se o tivéssemos, por ele poderíeis ter entrado sem impropriedade, pois nos beirais cantam as cotovias, arrolham os pombos e outras aves, que são a poesia das casas. Houve uma ave à qual se emprestava a autoria de xistosas crônicas, como conta nas Memórias do Bispo do Grão-Pará, Camilo Castelo Branco:

A andorinha do frade

“O Sr. D. João III quando via travessura hábil dizia: “Por aí andou frade”, e isto se exemplifica com a seguinte .história:

O convento das freiras de Santa Clara ficava defronte do convento da Serra do Porto. Havia neste último um cônego regular de Santo Agostinho que, pela manhã, costumava contar o que se passava durante a noite no convento das freiras, a tempo que tudo estava fechado.

Dizia-se que uma andorinha penetrava pelo beiral do telhado das freiras, escrevia o que observava e pela manhã trazia sua crônica ao cônego, com fatos como estes: a irmã Fulana riu muito na cela da irmã Cicrana. A irmã Beltrana teve uma indigestão de lagosta, ou qualquer indigestão de coisas assim inocentes. O caso, porém, era muito outro. Mandava o cônego um homem levar a certa freira do convento uma andorinha fechada numa condessinha. Essa andorinha tinha o ninho no beiral da janela do cônego. A freira escrevia aqueles relatórios, enrolava-os no pescoço da andorinha e soltava-a pela manhã. Ela ia como um raio ao ninho.

O cônego lia e dava as novas.

Ó curas hominum!

Os morcegos das letras

Podeis advertir-me que não só os pássaros nos beirais se aninham, pois por aí entram, também, os morcegos de mau agouro. Onde há letras, há sempre dessas asas negras que nasceram para assombrar a claridade da poesia, e agredir com o chirriar de sua inveja estéril a arte ou o pensamento alheio. São a raça inextinguível e ímproba dos aretinos. Tendes sofrido suas agressões, como todos nós, e verificastes que nunca elas fazem maior dano. Não foi, portanto, essa a razão de dizerdes que não entrastes pelo beiral do telhado, preferindo arribar ao porto. Sois talvez, mais inclinado pela Marinha do que pela aviação. Não fiéis, entretanto, da aparente segurança de vossa ancoragem nesta praia do pensamento. Se estais aqui ao abrigo das ondas do mar, ficais mais exposto aos tufões do espírito renovador das letras, que em certa ocasião nos assaltou em entremês xistoso e útil, xistoso para provar a inexpugnabilidade desta fortaleza, e útil para a publicidade dos assaltantes, que ainda hoje, em manifestos, repetem sempre, com bom humor, que daquele minúsculo incidente resultou a transformação da Literatura nacional, boato ainda sem confirmação. É sabido que as gerações se devoram. Não creio que nosso desaparecimento possa causar prazer a todos os que, declarada ou disfarçadamente, nos ambicionam a sucessão, mas certamente lhes abrirá lugar ao sol, ao nosso tão negado e tão desejado sol... Os sentimentos humanos são sempre indefiníveis, pois variam segundo as criaturas. Certo siciliano que vivia a desejar o divórcio pôs-se a chorar desesperadamente, quando lhe trouxe:ram o cadáver da esposa, que ao cair de uma figueira, ficara enforcada entre dois galhos da árvore. Um amigo, que também vivia mal com a esposa, ao vê-lo naquele estado, exclamou:

– Você chora por isso? Pois olhe, vou correndo tirar uma muda dessa árvore para plantá-la no meu terreiro!

E quando a notícia se espalhou a árvore dentro de poucas horas estava toda transplantada.

Assim se exemplifica a diversidade do sentimento humano, ainda mesmo junto da morte.

Não há que se arreliar com isso. É humano. Na Asinaria aquele Plauto de estilo pelo qual falavam as musas, no dizer de Varrão, proclamou: Homo homini aut deus aut lupus.

Tudo isso, porém, que vale diante dos fatais destinos dos homens e do mundo? A impaciência ou a sofreguidão dos novos escritores não desmerecerá a obra dos antigos, nem lhes abreviará a vida. A discórdia é o clima normal de todas as classes. Também na Medicina, de que sois preclaro mestre, ela existe como se depreende das seguintes palavras de vosso discurso a Miguel Couto, ao qual chamastes, com razão, mestre de bondade: “Disse Juvenal que a concórdia é menos dos homens do que das serpentes.” Ainda menos dos homens que exercem a Medicina, acrescentastes. Vede como os próprios símbolos variam... Tem a Medicina por emblema o caduceu. Que é o caduceu? Mercúrio separou com uma varinha duas serpentes que se atacavam. As cobras enrolando-se na vara deixaram de lutar. Assim se formou o caduceu como símbolo da concórdia. Alguns deuses se figuram com aquele emblema, como Baco, dos bons comeres e dos bons beberes, Ceres, a dadivosa deusa das colheitas, e outros, mas sempre o trazem no sentido da harmonia. É bem verdade que há certa espécie de concórdia, que Corneille assim definiu: Concorde impie, affreuse, inexorable!

É talvez essa a que impera entre os oficiais de qualquer ofício.

Trazeis uma obra médica de valor considerável. Sois um dos mais fulgurantes luminares da Cátedra. Da Medicina, porém, desertei há muito, como aquele médico humorista a que aludistes em uma de vossas sempre belas orações, o qual dizia:

Sou um benemérito da humanidade porque não exerço a clínica.

Permiti, pois, que estude de preferência vossos títulos literários.

Como classificar vossa oratória? Na escola de Cícero, certamente. O imortal orador latino, discípulo de Demóstenes, fora, porém, dos ódios acirrados que emprenhavam de virulência o ambiente de Atenas e o revocavam às represálias, imprimiu à frase nos arrebóis de sua tribuna certa nobreza – a urbanitas – com a qual conquistou o manto senatório. Dir-se-ia que como ele, aprendestes na antiga escola de Rodes, onde, na frase de Latino, às graças castiças e à simpleza harmoniosa do gentio ático, sucederam os afeites retóricos e o estudo colorido da palheta asiática.

A substância de vossas orações deixastes classificada nas seguintes palavras da erudita e notável introdução de vosso livro Ciência e Arte em Medicina, na qual, efetivamente, a mais adiantada ciência e a melhor literatura se aliam:

“Na cátedra e na tribuna, a ocasião sempre me serviu para pensar alto, definindo pontos de vista, de ciência, de prática, de ética, de inspiração profissional.”

Esquecestes de dizer que empregais para essas definições forma literária fluente e elegante, na qual se adivinha o espírito de artista que a massa pesada da tarefa vital não pôde sufocar.

Vossa ironia

Não vos esqueceis em vossas orações de nenhum dos recursos da oratória, e deles não é menor o do chiste oportuno, que bem cabe, como diz Antônio nos Diálogos de Cícero, ainda mesmo nos assuntos graves, sólidos ou dialéticos. Cun gravitate facetiae.

Vosso chiste é fino e comedido, e polvilhais esse sal com dedos cuidadosos. Vou citar um exemplo:

Em vossa “Oração oficial de abertura do I Congresso Brasileiro de Higiene”, dissestes ao contar que leigos vos haviam contraditado em assuntos profissionais:

“Na Câmara Federal, quando deputado – pensei que ainda era médico e arrisquei palavras em abono dos atuais serviços sanitários da República. Convenho, agora, na imprudência de sendo profissional e ex-funcionário da Saúde Pública, em assuntos de higiene querer opinar.”

Definistes com a mesma ironia a situação do contribuinte no círculo político, relatando que num trem, possivelmente da Central do Brasil, viajavam dois deputados, um senador, um chefe de repartição pública, a costureira da senhora de certo ministro, o sapateiro de outro e um caipira que cuidava de alimentar o país com sua lavoura. Na hora de exibirem as passagens verificou o caipira que só ele pagara a sua, pois os outros viajavam com passes gratuitos, ou “de carona”, como dizem os que pretendem criar uma língua brasileira com esses achegos da vulgaridade.

– Vejo que só eu paguei a passagem! exclamou o caipira. Neste país não vale a pena a gente plantar ou criar, porque os outros é que colhem... ou que tiram o leite....

Conheceis também a arte veludosa e musical da fioritura, dos graciosos torneios, das airosas revoadas que floresciam a pauta de Mouret nos bailados e alegorias da ópera, e podeis assim ornar o tema grave com finas iluminuras imaginosas e entremeá-lo de repousantes diversões. Essas faculdades caracterizam o artista da palavra falada ou escrita. Herdou-vos o berço as duas vocações: para a Medicina e para as Letras. Sois ao mesmo tempo, médico e escritor.

Médico e escritor

Não escrevestes romances, ou poemas, limitastes, quiçá, vossa produção poética aos sonetos que irrompem da alma quando o acne borbulha na pele, no pungir da barba na puberdade. Vossos discursos, porém, fogem dos moldes profissionais, e adornam o assunto científico com lavores literários. Transluzem neles essas galas ainda nos mais sáfaros assuntos da realidade biológica ou patológica. Essa trágica realidade, a de nossa vida, parece-se com a do rio, que nasce dos montes chorando para morrer no oceano gemendo. Corre, porém, entre margens onde há matas, vergéis, jardins, cujas plantas sobre ele se debruçam e em suas águas deixam cair flores e frutos. São as flores e os frutos da fantasia as que nela bóiam ou naufragam. O médico é o escafandrista dessas águas, nas horas de naufrágio. Quando ele traz na alma como trazeis o manancial da poesia, leva ao doente bálsamo para a alma e remédio para o corpo, as flores daquela ternura e o lenitivo daquela consolação. O médico artista cura o corpo e a alma. Temos disso alguns exemplos nesta ilustre Companhia, desde seu egrégio presidente, Prof. Austregésilo, cujos livros são tesouros de poesia e consolação para as almas sofredoras, se traduzem em diversas línguas, e se esgotam em sucessivas edições O artista tem o dom de plasmar ou de replasmar a substância da sensibilidade, ou seja, da força dirigente de nosso destino. Possui a onisciência, a oniprevisão, a onipotência criadora: no caos sentimental é enfim o onicriador. Como Deus no nada, ele diz: – faça-se a luz! E a luz abre seu leque de esplendores, como o desenho japonês de uma ave dourada na seda negra da treva. Ordena: – reúnam-se às águas e apareça a terra árida. E as águas descem pressurosas dos píncaros e formam-se em lagos, em rios, em mares. Manda que na terra cresçam e floresçam e frutifiquem as plantas. Que no céu luza o sol, se espelhe a lua, cintilem as estrelas. Que nadem os peixes, voem as aves, rojem os répteis, e tudo isso se faz nalgumas letras escritas em algumas folhas de papel, onde ele modela seu mundo, sem necessidade de ter nas mãos sequer o barro bíblico...

Sua força está no centro dos dois universos, do físico e do metafísico. Dali ela se irradia, penetra a matéria inerte, operando o milagre da animação, criando a esfera superior da alma em sonhos de beleza. Vive duas vidas: quando falece uma, começa a outra, porque o sepulcro do artista criador é o limiar de sua imortalidade.

A vida vos esperou com aquelas duas funções, ambas divinas: uma a de curar as dores do corpo, divinus est opus sedade dolorem, outra a de criar a beleza que, como dizia Platão, é na terra o sumo bem. Estais, pois, em vossa casa, seja na oficina de Hipócrates, seja no templo de Apolo.

Nossa raça

Sois árvore bem latina, que do latino é essa dualidade de espírito, justo equilíbrio entre as abstrações e a realidade, média racial entre as hipérboles do heroísmo do Cid, a ousadia irreverente dos cadetes de Gasconha e o espírito sereno e definidor dos homens de laboratório. Podemos tirar sempre orgulho do passado como do presente de nossa raça. Na partilha da herança mediterrânea, temos sabido opulentar o quinhão de cultura, desde quando na decadência semítica se originou a civilização greco-romana. Feneceu a grandeza da Grécia, que parecia plantada nos séculos. A árvore latina não cessou, entretanto, de crescer. Extravasou de seus limites, disseminou-se, abrindo caminho com as espadas de suas legiões, pelo continente, e arvorou no alto das cordilheiras a sua bandeira.

Quando na Idade Média, eclipse quase total assombrou o espírito humano, pareceu falecer também a cultura latina. Ela não tardou, porém, a repontar, no mesmo fastígio de glória, no século XIV, com A Divina Comédia, abrindo as portas do Renascimento. O direito romano corrige a prepotência feudal. Colombo descobre a América. Vasco da Gama vara os mares nunca dantes navegados. A bandeira latina dá a volta ao mundo, e em certo momento, com seus descobridores e seus heróis, é quase dona do universo. Nestes dias em que o orgulho de outras raças proclama seus feitos como imperativos históricos de supremacia, não é inoportuno falar de nossas glórias, para escarmento do derrotismo odioso de certos maus brasileiros, e para mostrar àqueles povos nossa colaboração paralela, quando não sobrelevada em todas as conquistas humanas. Tomemos, apenas alguns poucos exemplos, para evitar a superfetação do discurso.

Vós, os alemães, nos destes a imprensa de Guttemberg. Vós, os ingleses, criastes o método experimental de Bacon. Vós, os poloneses, nos noticiastes a translação e a rotação da terra. O espírito latino vos doou sucessivamente a anatomia de Vessale e Servet, o conjunto das descobertas de Galileu, a filosofia de Descartes, a fisiologia de Claude Bernard, os novos horizontes de Pasteur, o rádio de Curie. Provestes-nos dos raios X, Marconi muniu-vos do telégrafo sem fio. Enriquecestes-nos com inúmeras outras descobertas, mas com elas se cotejam as nossas, iguais ou maiores. Neste momento em que a vida universal depende das esquadrilhas do espaço, poderemos lembrar-vos, oh universo, que ao gênio neolatino, ao gênio de um brasileiro membro desta Academia, ao gênio de Santos Dumont, deveis essa conquista.

No domínio das artes, como em todas as lavouras do pensamento, o gênio latino tem dado aos séculos o nome de suas incontáveis obras-primas.

Dizer-se que ele está em decadência é pronunciar palavras de ignorância e de insanidade; obtestar subsídios estranhos sob pretexto de que esse gênio ainda mais decaiu na filiação americana é propagar babela gerada no ventre da rivalidade pela copulação do despeito com a protérvia; escrever ou dizer um brasileiro que no Brasil aquele gênio se amesquinhou é blasfemar contra a evidência das glórias pátrias e propor-se ao exílio da terra que sua presença envilece e profana.

Vossa eloqüência é bem latina, uma das flores imarcescíveis que brotam do robusto e glorioso tronco de nossa raça de esplendores incessantes!

Vosso apuro na linguagem

Outra qualidade que vos abriu as portas desta Academia foi o apuro da linguagem. Um dos pontos essenciais de nosso programa é o da defesa da língua. Não como culto intransigente do arcaísmo, nem como fobia do neologismo necessário. Não pode a língua ficar parada quando o espírito não cessa de caminhar. O homem que estaca numa época passada, servindo-se de sua linguagem, fica como a Esfinge na entrada da Tebas do pensamento, a propor enigmas aos passantes. Devemos ter cuidado, evitando esse vício, de não incidirmos no oposto. Os primeiros escrevem ou falam como certa personagem de mau teatro nestes termos: “Os desaires do rasteiro linguajar à ruína despedirão, por certo, adulterado da brasílica raça o lídimo falar.” E como ninguém se exprime desse modo, seu anacronismo fará, apenas, sorrir. Outros, em sentido contrário, galopam para o futuro, escrevendo: “No sentido vertical da projeção estética, reluminam poliedricamente os imperativos do dinamismo atual.” Seguem-se algumas linhas em branco. Depois delas, estas palavras soltas: “Arestas. Cardos metálicos. Cintilações. Lages. Ao alto, uma forca onde se suicida a luz.” Mais duas linhas em branco, para encher a página, e como remate: “Crânio horizontal, calvo e impávido aos ventos.” Eu, de mim, confesso que fiquei ainda mais calvo arrancando as últimas farripas superfrontais, que me restam, para penetrar no sentido daquelas frases.

Só mais tarde, por um dos adeptos dessa escola vim a saber que era aquilo a descrição sintética de um arranha-céu em construção, o qual acaba de receber o crânio impávido da última laje, e tinha ao alto um guindaste para que “a luz nele se suicidasse”.

Além dessa escola, outra surgiu com programa de desrespeito propositado da gramática. Cômodo programa, muito do agrado dos alunos vadios das escolas, e dos que a tendo gazeado, não querem na idade adulta voltar a seus bancos...

Deixo de falar do abuso de palavras mal cheirosas que os próprios dicionários omitem, e às quais por sua exalação se aplica a definição de Cícero: Video me a te non veniri sed circumveniri.

Nessas correntes contrárias deve a Academia ser o baluarte da boa linguagem, preservando-a daquelas corrupções.

Como assim, também, pensais, e assim fazeis, vosso lugar estava aqui desde logo indicado. Não sois ortodoxo. Não vos mostrais infenso ao uso de certos peregrinismos, aliás, dispensáveis, como conforto, burocracia e outros de uso corrente. Sois, porém, submisso ao gênio da linguagem, que se deve amparar nas induções e deduções históricas para o fatum inevitabile de sua constante evolução. Na primeira parte de vossa vida literária nota-se predileção pela ordem transpositiva, comum na oratória latina. Nossos clássicos exercitaram em larga escala a inversão e a transposição, dispondo as palavras num senso musical, onde melhor cantassem ao ouvido. Seguiam Isócrates que na Panathénaica declarou que escrevia para o prazer do ouvido, arte iniciada por Trasímaco de Calcedônia, Górgias e Teodoro de Bizâncio. Preocupavam-se mais com a sinfonia verbal do que com a clareza do período. Não escreviam no papel; faziam-no na pauta. Exprimiam as idéias pelo canto. Isso os levava a transposições que constituem verdadeiros quebra-cabeças.

Ainda hoje isso é suplício para os alunos de português que devem ir buscar aquele “cantando espalharei por toda parte” no décimo quinto verso de Os Lusíadas. Tornam-se assim obscuros os clássicos. Camões, que muito se serviu desse recurso, dá-nos disso exemplo em versos como estes: “A grita se levanta ao céu da gente” (Canto VI) ou como os seguintes (Canto IX).

Os cornos ajuntou da ebúrnea lua
Com força o moço indômito excessiva.

Na prosa, o pega-pega das ovelhas desgarradas do sentido da oração não era menor. A essa inversão da ordem natural são assiduamente levados os que se dedicam à leitura de nossos clássicos, que abusaram dessa graça artificial, muito apreciada naquelas épocas de preciosismo arcádico. Eu mesmo que vos falo, sofri esse contágio em certo momento. E nosso ilustre presidente não se livrou dele. Nenhum de nós, porém, chegou ao exagero daquela personagem real que transportei para a já referida comédia, valendo-me da narrativa do nosso companheiro Gustavo Barroso, que a conheceu, pessoalmente, no Ceará.

Tinha essa pessoa por apelido o arabismo Oxalá, e no trato correntio imitava com exagero os clássicos, dizendo, por exemplo, numa farmácia: “Dê-me dois tostões de aguardente para minha filha canforada que quebrou a perna dentro desta garrafa.”

Pecamos todos três contra a clareza. Carregamos aos ombros o esquife clássico. Oferecemos nosso sangue a uma transfusão impossível. Não nos penitenciemos disso.

O mal passageiro serviu, como certas infecções benignas, para alertar-nos a defesa do espírito. Continuamos fiéis ao culto da língua, que bem precisa deste lado do Atlântico de calorosa defesa, pois pretendeu-se até mudar-lhe o nome, para Língua brasileira, sob a alegação da diferença do falar de um e de outro povo. Essa diferença só se nota na língua popular, na que se gasta e se desprimora, como dinheiro papel, no trajeto de mão a mão para os trocos miúdos da vida.

Não se escrevem com essa língua vulgar as grandes páginas das raças. Que restam do dialeto eólio, do jônico, do dórico, ou dos dialetos arianos da Itália? Sobrevive, entretanto, aos séculos em páginas imortais o grego de Atenas e o latim dos patrícios romanos.

Não foi o francês suplantado pelos dialetos da langue d’oil e da langue d’oc, sobreviventes no provençal, que, em certo momento, a serviço dos trovadores franceses, espanhóis, italianos, e portugueses, falado nas cortes de Castela, de Barcelona, e de Portugal, ganhara foros de língua autônoma.

Nosso falar difere do de Portugal como das feições paternas diferem as do filho, sem que por isso devam os filhos aos pais repudiar.

Toda língua transplantada de um clima a outro modifica-se, não perdendo, entretanto, sua natureza. Dá-se o mesmo com a planta. O café arábico continua a ser café nos tipos brasileiros.

As flores que importamos acrescem-se de perfumes e opulentam-se de colorido, continuando, porém, a ter o nome que tinham, a ser em essência o que eram. Por que, então, devemos renegar a língua opulentíssima, primogênita do latim, como dizia Vieira, na qual as graças, os afeites, a flexibilidade morfológica, a riqueza da arquitetura sintética, a infinita variedade de tons, de matizes, de meias-tintas, de bemóis, de sustenidos e de todas as notações musicais nos permitem exprimir minuciosamente na sua complexidade a idéia e o sentimento?

Nossa língua cresceu na glória dos séculos heróicos dos descobrimentos.

Correu o mundo, abrindo ao pensamento horizontes nem sequer dantes suspeitados. Rebentou assim numa floração de triunfos.

Escreveu para os séculos uma epopéia que marca um dos pontos cardeais do gênio humano, esses Lusíadas, onde a arte conjugou a teogonia mitológica e o teismo cristão unitário. A essa língua devemos a força da unidade nacional. Fenômeno raro, e admirável por nossa imensa extensão territorial, assaltada de todos os lados pelas penetrações imigrantes.

Torna-se mister patriótico conservá-la, assim na esfera literária como na didática. É a espinha dorsal da unidade pátria. Adulterá-la, pervertê-la, desrespeitá-la, fazê-la descer da dignidade imperativa, rasgar-lhe as púrpuras e as sedas, arrebatar-lhe da coroa as gemas, despojá-la de seus atavios e louçainhas, transferir esse reinado para o calão e os modismos vulgares é trocar as vestes ricas do pensamento por andrajos.

Foi baseado nisso que uma das Internacionais comunistas ordenou aos adeptos de sua doutrina eversiva que começassem a obra de destruição moral pela produção literária, envilecendo os sentimentos, evicerando a realidade, focalizando a linguagem.

Sabeis que a eloqüência só floresce na época áurea das línguas.

A rusticidade do latim primitivo privou Roma de oradores até que seu aprimoramento produziu Catão e Cicero.

Por isso mesmo cultivais com amor o vernáculo.

Na nossa época colonial, escrevia o censor de S. Majestade, Frei José de Jesus Maria, religioso capucho: “Depois que o padre Antônio Vieira pôs de assento na Bahia seu engenho, vêm incomparavelmente mais ricas as frotas daquele Estado; porque todas até agora – por carga de maior peso, valia e preciosidade – trazem um volume seu, que sendo de tanta sabedoria, se acaso se cativara na Alfândega, para se haver de tirar por despacho, não se poderá resgatar por todo o ouro do mundo.” Não desmereçamos essa tradição. Que as frotas que daqui continuam a partir para lá mais numerosas, para abastecer o mundo corporal, levem, ainda, aquele tesouro, opulentado por nossos ouros, mas fiel às nobres e heróicas tradições raciais. Em brilhante ensaio, há poucos dias vindo a lume no Jornal do Commercio, Magalhães de Azeredo, uma das mais cintilantes estrelas de nossa constelação literária, citava as palavras de Milton referentes à decadência de certas raças por não terem sabido velar pela pureza vernácula. Sejamos, pois, profundamente brasileiros no pensamento, e orgulhosamente portugueses no falar.

A razão dos vossos triunfos

Atribuís a um destino feliz vossas vitórias. “Raros são, escrevestes, os que se dizem em saldo com o Destino, à meta de suas aspirações.”

E acrescentais: “No mundo só tem sorte quem tem por boa a sua.”

Assim opinava o camponês filósofo de O Pastor Peregrino, de Francisco Rodrigues Lobo, que se contentava com a sua, dizendo: “Tenho sessenta anos. Nunca tive de meu outro bem maior que não desejar os alheios. Sou tão pobre do que a fortuna reparte, que cada hora que quiser contas de tantos anos, lhe não ficarei devendo nem um desejo. Vivo de guardar gado doutros donos: sou fiel em tratar, diligente no pasto e remédio dele; rico com as partes que me cabem de sua lã e de seu leite. Nem quando os frutos são poucos me lastimo; nem quando as novidades são maiores me alvoroço. Contenta-me o bem, não me soçobra o mal. Tenho uma cabana em que vivo, feita por minhas próprias mãos. Daqui me alevanto contente e aqui me recolho descansado, porque, nem acordo com os pensamentos na ventura, nem adormeço com eles repartidos em bens, que enganam, e em males que os homens escolhem de seu grado. Quando há frio e neve na serra, também há lenha nesses montes, e fogo nestas pedras, com que me defendo: quando a calma é grande como o abrigo destas árvores, e vizinhança das fontes, me recreio. Assim são os meus manjares, como é a minha vida: nem me pede aos que lhe façam dano, nem eu os tenho. O maior trabalho que tenho é os pastores com quem trato, porque cada um tem uma vontade e um entendimento, e eu me hei de servir do meu para com todos: porém de tal maneira uso, dele que me não dá do sucesso que pode acontecer.”

No vosso caso pessoal, creio que não vos foi necessária muita resignação para contentar-vos com a série de triunfos que vos assinala a vida. Entendo que atribuís modestamente ao destino, o produto de vosso esforço. Não creio na sorte. Creio na tenacidade. O azar só persegue a quem não tem força de vontade. Para ter vontade é preciso ter força, dizem os abúlicos e os tímidos. Mas a força moral que é senão a educação da vontade?

O destino não vos acolchoou o berço com a opulência. Não vos criou no ócio. Não vos ajudou na juventude com favores de filhotismo. Foi vossa assiduidade ao estudo que vos levou, apenas adolescente, à Faculdade de Medicina. Terminado o curso, nem bem saístes doutor pela porta dos alunos, voltastes pela porta dos docentes. Aos 26 anos professor, numa batalha memorável, dissestes: “Chego ainda moço ao termo de minhas aspirações.” E acrescentastes: “No pleito renhido procurei vencer com nobreza, embora amargando contínuos dissabores.”

Não foi ainda a sorte dadivosa que vos classificou em primeiro lugar num concurso de admissão no serviço federal da Saúde Pública. Não vos conduziu ela de mão beijada ao parlamento nacional, pois em vez de lisonjear o instituto do “chefismo”, que era o centro analfabeto do coronelismo político, dizíeis: “Entre nós, na administração pública, quem quiser contar os cargos e as designações de chefe, sub-chefe, diretor, comandante, etc., chegará a cifras astronômicas.”

Vossa observação podia ultrapassar as raias administrativas. O chefismo é mal que herdamos dos senhores de escravos. Os próprios escravos, depois de libertos, se deixaram contaminar por ele. Tive um porteiro preto em São Paulo no meu escritório. Trouxe-lhe de Paris uma farda agaloada, imponente de botões doirados. Logo que ele a vestiu, pareceu-se a si mesmo imenso. No dia imediato um amigo procurou-me.

– Não sei se está – respondeu-lhe o preto mirando a farda, “naquela gostosa vaidade tanto enlevada a leve fantasia”, como diz o gênio camoniano.
– Você não é o porteiro? – perguntou-lhe o visitante. – Sou o chefe dos porteiros!
– Quantos porteiros passou, então, a ter meu amigo? – Só eu, sim, senhor.

Era chefe de si mesmo, mas era chefe.

Podia citar muitos outros passos de vossos discursos parlamentares e extra-parlamentares em que profligais os vícios políticos e os erros administrativos. Numa democracia, em que os deputados eram nomeados pelo governo para serem eleitos pelo povo, não podia ser longa vossa deputação. É bem verdade que igual sorte coube aos que apoiavam incondicionalmente os governantes...

Também não foi benigno ou fagueiro o destino que vos elevou à direção da Saúde Pública, em época que vos esperava com a tormenta de nova invasão do flagelo amarílico, que vencestes galhardamente com a vontade, a inflexibilidade de caráter e o labor extenuante, como testemunha o seguinte excerto de um de vossos discursos: “Tive que resistir ao formidável embate. Era a posição compulsória do timoneiro cujo barco em alto mar tem a surpresa da tempestade: as ondas empoladas pela fúria dos ventos, o céu hostil, a mira um instante perdida no brusco do horizonte. Como o sítio do mar grosso não permite arribar à costa, não há senão enfrentar a tormenta, coser-se com as intempéries, resistir como possível mas resistir sempre, com ou sem coragem, atestando-se com o perigo, sem pensar em si, ainda que de si pouco possa dar.”

Atribuístes, também sem razão, à boa sorte vossa entrada nesta Academia. Vossos méritos já há doze anos, quando pela primeira vez lhe batestes à porta, conquistaram votação numerosa, que vos demonstrou quanto eram apreciados. Serviu Jacob sete anos a Labão para obter a mão de Raquel, e ao fim desse prazo, deu-lhe Labão a mais velha de suas filhas, alegando que não se deviam casar as mais moças antes da primeira. Convosco o caso foi inverso: servistes estes doze anos às letras, gratuitamente, e deram-vos elas honras acadêmicas estaduais mais moças, tornando-vos polígamo com as glórias meninas, antes de vos trazer a núpcias com a mais velha. Se se tratasse de damas, suave, se bem que fatigante, haveria sido esse vosso destino: em se tratando, porém, de academias, ele se mostrara mais propício, se vos houvesse dado desde logo a mão da mais velha...

Aparenta a sorte proteger-vos como faz o choupo com a racemosa videira, mas em verdade vos vem dando trabalhos e lutas com adversários cruéis, que vos levaram a exclamar: “Nem as honras de empréstimo me premuniram contra a ira gratuita dos salteadores de reputações.”

Quem vos conhece o ânimo gentil e nobre, sente nessas palavras irreprimível explosão de revolta contra a injustiça. Nem sempre se pode ter aquela expressão afivelada na fisionomia real.

A máscara e o vulto

Todo homem, o fino e educado, como o rude e mal avezado, traz sobre o rosto a máscara. Às vezes, a máscara é linda, e o rosto disforme. Outras vezes inversos são os aspectos: o mascarão feroz corresponde o mais sentimental dos corações. As mulheres, em geral, têm muitas máscaras no seu arsenal de sedução, e por isso, difícil é penetrar-lhes no sentimento. Sois elegante de maneiras, afável de sorriso e suave de falar. Vossa máscara seduz a ambos os sexos. Entretanto, se levantássemos essa encantadora máscara, lendo alguns dos vossos discursos de combate, encontraríamos períodos de rijo combatente, como estes:

“Novos heresiarcas e controversistas de ciências abalaram no terreno íngreme das afirmações e rolam dali, agredindo ou difamando, quase sempre roncando na prosápia das breves leituras. E assim se vai fazendo Medicina demagógica, contaminados os meios profissionais de façanhudos processos em que o berreiro leva a palma, a agressão pessoal alça o braço e o gosto de maldizer esgota o vocabulário licencioso e desabrido.”

“Difamar não é corrigir, e quem diz sempre mal não será crido senão entre os infelizes torturados pelo ódio, e que até divertem o odiado.” Não é mais enérgico, nem mais vibrante o estilo do polemista. Sois um rouxinol no jardim da concórdia, um falcão na contenda. Os falcões são notáveis pela inteligência, bravura e extensão do vôo. A Ordem do Falcão foi fundada pelo Duque de Saxe para premiar a fidelidade, o talento e o zelo nas funções públicas.

Minha longa observação da vida tem-me ensinado que os homens afáveis e risonhos são mais de temer que os enfarruscados. Flamma inter nubes coruscat: o raio corisca entre as nuvens. Eles contêm-se dentro da complacência da polidez – como chama o Sr. Pedro Calmon à insinceridade mundana, de que sabe servir-se com fascinante graça. Esse contínuo recalque acumula potenciais de energia, que deflagram em inesperadas e temíveis explosões.

Vosso ex-libris é sincero: suaviter in modo, fortiter in re.

Esse lema trazeis do batismo, pois se sois clemente no nome, sois fragoso no sobrenome...

Sabeis, porém, tomar as coisas em seu meio e essa é a base da cortesia.

Vejo, também, em vossa fisionomia literária certa excessiva humildade que me parece pó de arroz de faceirice. Não vou ao extremo dos que definem a humildade como a máscara do orgulho, mas entendo que, fora do campo do ascetismo religioso, que está na linha divisória entre o ser e o não ser, a humildade é cárdice infiel.

Falando-vos das abundantes citações de outros autores, que freqüentemente se encontram em vossos trabalhos, e que, muitas vezes, são inferiores a vosso pensamento original, dissestes-me que a humildade vos levava a apoiar-vos em terceiros. Todos os homens, e principalmente os de gênio, pecam de vaidade. E ainda mais as mulheres, cela va sans dire... E isso faz-me descrer da sua modéstia...

Não tendes necessidade de socorrer-vos do auxílio de alheia autoridade, porque a vossa, bem alicerçada no humanismo, vos assegura não só a cátedra das especialidades que versais, como das letras que perlustrais. E não faltará quem veja nessas prolixas citações em vez de modéstia, certa vaidade erudita... Perdoai-me esta reflexão, mas estais em cima da mesa da biópsia, meu caro confrade, desta vez como paciente, e me permitireis que não a dê por terminada antes de examinar alguns outros aspectos de vossa obra.

Vossa orientação filosófica

Sois cartesiano. É impressão que dá este trecho de vossa pena:

“Entendendo a rigor do ponto de vista científico, a realidade ainda nos escapa. Por paradoxal que pareça, é a própria realidade uma abstração. Fora de nossos sentidos a matéria é amorfa, brusca e indiferente; é nossa percepção sensorial que lhe dá forma e cor, luz e expressão.”

Concluís este raciocínio afirmando com Nicolai: “Sem os sentidos o mundo seria silencioso, surdo e escuro.” Estamos desde logo no campo do negativismo absoluto. Tomando a vulto esse conceito, parece dele resultar que se todos os homens nascessem surdos, mudos, cegos, sem tacto e sem olfato, não existiria a terra... nem os próprios surdos, mudos e cegos, o que seria silogizar no paradoxo.

Ouçamos, agora, Descartes num trecho do Discurso do Método: “Como os sentidos algumas vezes nos enganam, suponho que nenhuma coisa é como a enxergamos. Como há homens que se desnorteiam quando raciocinam, até mesmo acerca de assuntos de geometria, fazendo paralogismo, entendo que posso estar errado como eles, e assim sendo, resolvi admitir que todas as impressões que até agora meu cérebro recebeu são pouco verdadeiras, como os sonhos. Devemos duvidar da realidade até que possamos encontrar a verdade absoluta.”

Vosso pensamento e o cartesiano ajustam-se, um noutro se enluvando. A dúvida cartesiana, entretanto, não era a dos cépticos, mas a da evidência. O primeiro dos quatro princípios cardiais de sua doutrina mandava não aceitar nenhuma coisa como verdadeira sem lhe ter examinado a evidência e se haver dela certificado. Só a especulação podia colher essa evidência. Descartes foi o receptor de uma reação de pensamento, que dia a dia se avolumou até quando na falência das escolas filosóficas, a vacuidade mental se masturbou em ridículo preciosismo, que culminou nos romances de Mlle. de Scudéry com a célebre Carte de Tendre, de senso literário e geográfico que pedia meças ao grotesco. Por isso, talvez, sua doutrina calou tão fortemente nos espíritos, tornando-se o alicerce sobre o qual se fundou o ingente peso de todas as escolas filosóficas do século XVII.

Pretendeu, depois, o materialismo derrocar-lhe os excessos declarando o pensamento função visceral do cérebro, intimamente ligada à fisiologia. Taine apostrofou-o com veemência: “isto é reduzir as grandezas e as delicadezas da natureza humana a retalhos anatômicos mal cheirosos...”

Claude Bernard, não negando a função, negou-lhe a espontaneidade, escrevendo: “Efetivamente o cérebro realiza uma função, mas dizer que ele verte o pensamento é afirmar que o mecanismo do relógio verte a hora.” Esta comparação impressionou o espírito comum, e, entretanto, é inteiramente viciosa porque compara órgão vivo, de reações até certo ponto próprias, a mecanismo que depende de alguém que o ponha em marcha. A autopsia e a dissensão – só então postas abertamente em prática – foram a nascente mais imediata do materialismo. Tinham os médicos a realidade sob o escalpelo e daí lhes provinha a fé nessa realidade. Mas tudo na vida, como se uma força superior estivesse sempre à espera do fastígio do cérebro humano para confundi-lo com os próprios elementos propulsores desse fastígio – o progresso materialista veio tornar muito maior a dúvida da realidade.

A de Descartes nascia da falta de evidência; a de hoje, a vossa e a de vossos pares, a dos corifeus da ciência atual, Sr. Clementino Fraga, nasce justamente do excesso daquela evidência.

Como podem concordar os termos desta antítese? Ontem a falta de evidência fazia negar a realidade, hoje o excesso da evidência nos leva a renegá-la com maior vigor.

Procede isso, entretanto, muito logicamente dos laboratórios e da experimentação, que demonstraram a fragilidade da evidência material.

Podemos chamar a isso o neo-cartesianismo experimental?

Provas daquela fragilidade fáceis são de exibir. Descobriu-se com o microscópio o mundo dos infinitamente pequenos e parecia descoberta a chave dos mistérios patológicos. Não tardou que viesse o ultramicroscópio desenganar-nos daquela evidência, desvendando-nos outros micróbios ainda mais infinitamente pequenos... Os progressos da mecânica, criando lentes mais possantes, irão descortinando outros mundos ainda menores. Assim as evidências que nos medram, a olhos vistos, são essencialmente provisórias e não nos podem levar à verdade definitiva. Com a maioria das conquistas modernas o mesmo fenômeno se opera. Quanto à Medicina, dizeis que em seu vasto campo doutrinário a verdade raramente alcança trinta anos de vida. Eis como se explica vossa frase de aparência paradoxal: “A realidade ainda nos escapa.” Deve-se concluir disso que vossa filosofia é negativista e desencorajante, e portanto, prejudicial? Não. Vossa dúvida é a mesma sede cartesiana à beira do poço da verdade. Vosso espírito pede à Samaritana ou seja, à experimentação e ao laboratório, que vos desaltere a sede. Não negais a realidade, afirmais apenas: A realidade “ainda” nos escapa.

Minha filosofia é mais amarga, minha dúvida é maior: não vejo no homem e na verdade mais do que aspectos transitórios em contínua contradição. Tudo cresce e fenece, tudo se gasta e se substitui, tudo evolve e falece. Assim também o pensamento vive a crescer e a fenecer, a gastar-se e a substituir-se, a falecer e a renascer. As doutrinas que ontem, acusadas de falsas, levaram à fogueira os heresiarcas, são hoje construções dogmáticas.

As verdades de hoje se queimarão, talvez, amanhã nas fogueiras da inquisição da restolhada de nosso século.

Não sois céptico como os da escola dos pirrônicos, bem definida nas Hypotyposes de Sextus Empiricus, que duvidavam da existência das coisas concretas, e palpáveis, mas por elas se norteavam. Essa fórmula cômoda de neutralidade lhes dava a ataraxia repousante. Sois dos que duvidam, mas lutam por vencer a dúvida, e, considerando tudo que os cerca enganoso ou inexistente, servem-se desses mesmos enganos para suas pesquisas. Sois dos cépticos combatentes, que me parecem admiráveis figuras de fé, com um facho na mão, atravessando sem temor as anfratuosas e lôbregas galerias da caverna da dúvida, povoadas de fantasmas e de mistérios indecifráveis.

Sopram lá fora os temporais da vida, vergando, derribando, destruindo, substituindo homens, doutrinas, fatos. Nada escapa à destruição evolutiva. Caem os dogmas, como caem os edifícios mais sólidos ou mais pomposos. Dentro daquele escuro e flexuoso labirinto ouvis o ribombar do cataclismo continuo, os ecos dos gemidos das criaturas, das árvores, das paredes que tombam. Verificais que nada existe definitivo, porque a realidade serve, apenas, como as construções efêmeras das experiências de incêndio, para provar a potência das chamas.

Continuais, entretanto, impavidamente vosso caminho, amparando com as mãos vacilantes, a luz de vosso brandão, batida pelos ventos. Eis porque vossa dúvida em vez de destruir, erige na alma de vossos alunos o proselitismo do ideal nos escombros da realidade objetiva transitória. Sois dos que crêem na origem celestial e, portanto, na eternidade da alma Origo animi coelestis creditur – como escreveu Quintiliano. Esses não duvidam da verdade porque lhe sabem o caminho à sabedoria divina. Sois um idealista. Dissestes na oração do IV Congresso Brasileiro de Higiene: “Sou um sonhador incorrigível.” Que se conserve na vossa alma o sonho, a única felicidade que nos foi herdada na tragédia continua de enganos e desenganos a que a morte um dia fecha as pálpebras.

O termo de vossas aspirações

Ao tomardes posse da cátedra universitária dissestes que havíeis chegado ao termo de vossas aspirações. Ao termo das aspirações o homem só chega quando a morte lhe corta o fio vital. A ambição é a própria linfa da vida física e moral. Ambição de bens, ambição de prazeres, ambição de glórias. A mais recente e não ainda a última vos trouxe a esta casa. Aqui nos encontrais num altiplano junto a uma cidade rumorosa, cujas impressões ainda há pouco nos deu, em crônica leve e encantadora, o sr. Miguel Osório de Almeida. Se abrirmos as janelas, chega-nos aos ouvidos a marulhada multitudinária, tumulto complexo no qual se misturam as vozes humanas, as vozes irracionais, as vozes mecânicas e ainda os ecos surdos dos choques e das colisões da matéria bruta. Nessa disfonia coral, ouvimos também as diatribes, os insultos, as críticas insensatas, os destemperos da baixa fisiologia da inveja e do despeito da mediocridade jactanciosa e ultriz.

Tudo isso, porém, se quebra na sólida amurada que construíram nossos antecessores e que vamos defendendo e acrescendo com as pedras, umas maiores, outras menores, de nosso labor contínuo. Contra Machado de Assis, fundador desta Academia, atiraram-se soezes insultos, e chegou-se a negar-lhe até mesmo a inteligência mediana! Hoje, entretanto, a nação inteira comemora o centenário da data de seu nascimento, quando já os nomes daqueles pseudocríticos desapareceram da memória dos homens. Os séculos revivem o que os anos mortais sepultam no campo do gênio, e ao mesmo tempo sepultam de vez as trepadeiras vulgares e parasitárias que a inveja faz subir pelos fustes das colunas da glória.

Dissestes em vossa peroração que “aqui podereis passar bem o inverno da vida, num ambiente de galanteria intelectual, temperado por doce malícia, como se requer nos remansos da cordialidade”.

Com cordialidade vos recebemos, mas vos advertimos que essa Poltrona azul e ouro é de enganador repouso. Nela vos esperam árduos trabalhos no inverno de que falais com demasiada pressa. Vestindo a farda acadêmica, como fizestes, sobre a beca de doutor e de catedrático, sobre as insígnias de administrador e de secretário de governo, sobre vetteras e condecorações, preferistes a todas as demais glórias a que acabais de conquistar. Ela parece, de fato, o remate de todas as ambições, pois desejam as nossas poltronas – e muitos as têm conquistado – todos os que nos atacam, e além deles, ministros, embaixadores, deputados e senadores, príncipes da igreja e da cátedra, generais e almirantes, as eminências, enfim, de todas as classes letradas.

Insígnias, medalhas e grã-cruzes desmaiam nesses loiros da imortalidade, porque as glórias políticas passam, e as glórias mundanas falecem. A imortalidade acadêmica porém não se conquista, apenas, com esse uniforme, como não conquista o general a glória somente com suas estrelas. Os loiros bordados nessa farda são ainda o debuxo escasso dos que deveis tecer com vossas mãos, desnovelando de vosso gênio e de vosso próprio coração a filaça preciosa que até hoje outros trabalhos vos obrigaram a esquecer.

Considerai, pois, os raios de luz da vitória que doura a festa de vossa recepção como agulhas de ouro que vos oferece o destino para tecerdes vossa glória. Escolhei entre elas as mais longas e as mais agudas e mais pungentes, sabendo que deveis temperá-las cravando-as em vossa própria alma. E com os fios cardados na substância íntima de vossa sensibilidade, como fez Afonso Celso, construireis vossa definitiva imortalidade. Eu vos desejo e esta Academia vos augura boa e fecunda tarefa nessa Poltrona!