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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. CELSO VIEIRA

SR. PRESIDENTE da Academia Brasileira de Letras,
Srs. Acadêmicos,

À ironia do meu fadário e ao excesso da vossa benevolência aprouve que o menor dentre os publicistas brasileiros, autor de Endimião e Anchieta, viesse ocupar nesta Casa a sede aureolada pelos nomes de Tobias Barreto e Graça Aranha, na qual deveria aninhar-se o homem-pássaro, Santos Dumont, celebridade máxima deste país.

Entretanto, por suceder literalmente a um gênio inventivo, quase sem livros, na Academia Brasileira de Letras, posso agradecer-vos a honra sem o vexame próprio das sucessões ilegítimas, que nunca pretendi, ou das ambições ilimitadas, que nunca me turvaram o senso da justa medida. Posso mesmo fundamentar o meu reconhecimento, senão a vossa escolha, nesta existência consagrada à literatura, como lâmpada acesa, devotamente, na vetustez do seu nicho, à excelsa Madona reerguida, por uma crença imutável, sobre o desencanto de outras formas e a desilusão de outros signos.

Conheço bem os caminhos da vida e as quimeras do homem para não me exaltar no deslumbramento, em que voam os sonhos das mil e uma noites acadêmicas, estreladas de glória pela fugaz magia da posteridade. Mas a vocação artística, por vezes em guerra com as circunstâncias e os indivíduos, tem algo da vocação religiosa, desde o sacrifício ao êxtases, desde o silêncio ao triunfo, e é essa vocação que exulta neste momento, aos pés de Nossa Senhora da Arte, em face do próprio destino. Associando o meu trabalho efêmero ao prestígio imortal da Casa de Machado de Assis, – ad immortalitatem –, a festa do jardim de Academus enflora-me a jornada, clareia-me a penumbra com o lampejo de algumas horas, que fraternalmente vos agradeço, entre a miragem das palmas de ouro e a gentileza das boas-vindas.

TOBIAS BARRETO

Sob as asas quietas, pousam neste recinto as vitórias esculturais e pacíficas da inteligência, mas a inovação do nome de Tobias Barreto, ardentemente escolhido por Graça Aranha na sarça de fogo do Nordeste, deu à sede n.o 38 um sinal flamejante de cultura e combate. Enquanto os livros dos nossos demais patronos, sob os lauréis, pompeiam como florões da mesma coroa, os dele ainda sugerem levantes ou suscitam discórdias, como troféus de armas rebeldes.

Foi em 1882 o primeiro encontro de Tobias e Graça num pardieiro semicolonial, domicílio das letras jurídicas, a Faculdade do Recife. Tobias Barreto, paladino da ciência de Rudolf von Ihering e Hermann Post, recém-nascida e batizada nas universidades alemãs, desafiava a ciência arcaica da teodicéia e do direito, em concurso, fanatizando a mocidade com os prodígios da sua dialética. Era um mulato sem arrebiques, sem o donaire vulgar da mestiçagem brunida pela cultura: sob a testa enorme, na profundeza das arcadas, os olhos miúdos reluziam como dois carbúnculos; sob as narinas densas, eriçando-se, o bigode escurecia ainda mais a protuberância do beiço etíope; o mento quadrado e sólido acusava obstinação de forjador na bigorna ou de pugilista na arena. Dessa rude máscara, por uma sorte de exaltação oracular, a eloqüência fazia um semblante iluminado para o debate das escolas. O milagre do verbo, espiritualizando Tobias, dava-lhe ao gesto a força expressiva, ao olhar o fluido magnético, à voz o acento e o efeito das modulações irresistíveis.

Derredor do ídolo, transfigurado pela virtude sonora da eloqüência, desabotoavam as almas em flor, comprimiam-se atentos e ávidos os moços, entre os quais estava um menino, Graça Aranha, aos treze anos de idade, ardendo e vibrando à mesma impressão, confessada meio século depois nas suas memórias. Era o mais gentil dos estudantes, precioso tipo de escol, já cristalizado, etnicamente, nesta ebulição de raças humanas, explodindo em variedades imprevisíveis. Repartidos, os cabelos sedosos de ariano ondeavam sobre a pureza da face, mas no âmbar dos seus olhos se adivinhava o anseio do espírito livre, no recorte sanguíneo da sua boca floria a audácia das negações. “Aos doze anos – lembra o antigo discípulo de Tobias – neguei Deus, aos quatorze neguei o direito natural, aos quinze neguei o princípio monárquico e o direito à escravidão. Dos dezesseis em diante acrescente às minhas negações a libertação estética. Quando cheguei ao Recife, aos treze anos e meio, encontrei Tobias Barreto... Eu estava apto para receber todas as demolições do direito natural e da teologia e propagar todas as revoltas contra a metafísica, contra a ordem política e social.”

O efebo tropical nascera também para lutar, como os de Salamina ou de Platéia: vinha fadado à carícia e ao domínio, à revolta e ao renome. Transposta a meninice, estuavam nele, sublimados pelo adormecimento da puberdade inquietante, os desejos de uma vida nova, reino primaveril da inteligência. Ora a novidade criadora de Tobias germinava no seu elemento ideal, no seio virgem da mocidade: “... nós recolhíamos a nova semente, – refere Graça Aranha – sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos transformávamos.”

Para compreender semelhante fascinação acadêmica é força resumir o estado de alma dos jovens e o ciclo mental do fascinador. No aranhol da tradição acadêmica, a inteligência brasileira continuava a lenda de Aracnéa mudada em aranha, longe das correntes de saber positivo, que transformavam desde 1859 o espírito ocidental com o darwinismo, a teoria da evolução arquitetada na Origem das Espécies, mas antecedida por estudos vários – As Metamorfoses das Plantas, de Goethe; as conclusões de Geoffroy Saint-Hilaire sobre a unidade biológica do plano de estrutura; a Zoonomia, de Erasmo Darwin, avô de Charles; a Biologia, de Tréviranus; a Filosofia Zoológica, de Lamarck; e o Manual de Filosofia da Natureza, do mais temerário e mais transcendente naturalista, Oken. Entre os alemães, von Ihering aplicara já os princípios darwínicos à luta pelo direito, Hermann Post concebera já o direito como ciência positiva, um dos semblantes da vida cósmica, e a vetusta escola do direito natural, considerada emanação divina ou abstração humana, ainda povoava a escola superior do Recife com os seus fantasmas: o teologismo de Oudot e Taparelli, o espiritualismo de Ahrens e Bellime. Uma das teses do concurso, aberto em 1882, inquiria se a doutrina dos direitos naturais e originários do homem se conformava com os princípios da ciência social. E eis a tríplice revelação de Tobias: I, só o monismo, dentre os sistemas filosóficos, pode elaborar a verdadeira concepção do direito; II, o direito é um produto da cultura humana, o princípio da seleção legal na luta pela existência; III, a sociologia existe apenas como aspiração, um pium desiderium do espírito científico.

Ora, entre os moços, como depõe um estudante daquele período, o Sr. Clóvis Beviláqua, circulavam desde muito as idéias de Comte, Littré, Dubost, ainda que eles preferissem já os evolucionistas de linhagem darwiniana, Huxley, Spencer e Haekel, mas nenhum desses oráculos traduzia juridicamente a concepção universal. Aos olhos extasiados da mocidade todas as ciências rejuvenesciam, menos a do Direito, caduca e trôpega. Foi o concurso de 1882, que assinalou para ela o instante soberbo do transformismo. Pela mão de Tobias, feio mulato sergipano, a ciência do direito, aformoseada nas brumas da Alemanha pelo gênio de Hermann Post e von Ihering, entrava magicamente no pardieiro das letras jurídicas, subjugando o espírito dos mestres, seduzindo o coração dos moços.

Destarte, finda o concurso em 1882 com o triunfo solar da primavera na Escola de Recife. Ante a grade inviolável, deliram na sala da congregação os rapazes, aplaudindo Tobias, quando o mais novo deles transpõe o obstáculo, de um salto, para voar aos braços do mestre. Como que vemos no amplexo de Graça e Tobias, helenicamente, um abraço de Hércules e Adônis.

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Logicamente darwinista, esse batalhador seria o mais impressionante exemplo da sua doutrina – o struggle for life. Cedo, personificara Tobias a luta econômica e social pela existência. Nascido entre os violeiros agrestes de Sergipe, à sombra das quixabeiras, saíra da humildade rústica de um lar, aos treze anos, para as lições de música do maestro Santa Fé, para o curso de latim do padre Quirino e do padre Pitangueira; aos dezesseis, no Lagarto, já ensinava primeiras letras; aos dezoito, em Itabaiana, vivia como professor de latim; aos vinte e dois, tendo seguido para a Bahia com intentos eclesiásticos, desistiu das ordens sacras, apenas logrou fazer alguns preparatórios e volveu de novo a Sergipe; ao vinte e três, rico de sonhos e odes, saiu da terra natal para os “braços nus da cabocla civilizada”, imagem do Recife no seu cosmorama de poeta hugoano. Com os louros do bacharelado ambicionava a fama de poeta das turbas.

A poesia das serenatas, das improvisações, dos recitativos em desafios teatrais compôs-lhe no Recife uma lenda de boemia e desleixo. O estudante nunca se abismou, porém, na dissipação intelectual, sempre viveu do ensino, custeando os próprios estudos com a moeda escassa das lições de latim, francês, história, retórica, filosofia e matemática elementares, dadas a outros estudantes mais venturosos, até a data da formatura, quase aos trinta anos de idade. Tobias, retardatário do curso acadêmico, seria dez anos depois o renovador da ciência jurídica no Brasil.

Deixando o Recife pela Escada, cidade pernambucana do interior, a vegetar entre os canaviais, Tobias segregou-se aí, por um decênio, com os seus livros e as suas opiniões. Em dez anos (1871-1881), o solitário da Escada, que aprendera consigo mesmo o alemão e chegara a estilizar nesse idioma os próprios conceitos, germanizou-se pelo criticismo, desdobrado em estudos de religião, filosofia, ciência, literatura, direito e música. Se a França nos ensina a escrever, conjeturava ele, só a Alemanha nos ensina a pensar, e o elmo da Germânia invicta, pesando sobre o destino das raças, afigurou-se a Tobias o capacete de Minerva, deusa nutriz dos pensadores.

Em filosofia, contudo, ele seguira até 1868 o espiritualismo ou ecletismo francês, já imolado ao novo critério positivista, desde 1856, com ironia causticante e análise desfibradora, por um livro sem igual de Taine, o mais claro e cruel dos seus livros: Philosophes français au XIX siècle.Tobias ainda glorificava, nesse período, Royer Collard e Victor Cousin, Maine de Biran e Joufroy. Louvando no espiritualismo as descobertas psicológicas, feitas por observação dos fatos internos, sagazmente advertia aos psicólogos da escola que o emprego do método aplicado pelos físicos à observação da natureza franqueava a passagem das ciências morais ao materialismo e ao cepticismo. Não obstante, por outras passagens, o seu espírito se evadiu para outras ideações, logo depois, sob a influência positiva, ainda francesa, das leituras do Comte, Littré e Taine, conjugadas a estudos sérios da metafísica de Vacherot e da crítica religiosa de Scherer. Desde 1871, porém, é que ele começa a trilhar definitivamente a sua estrada real – o caminho universitário de Jena ou de Berlim.

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Antes da nova orientação germânica e científica, Tobias encerra como poeta o ciclo do nosso Romantismo, fundando a escola condoreira, de que foi Castro Alves o grande Iluminado. Em 1863, decaindo nas contrafações vulgares do lamartinismo, sem alma e sem cor, a poesia brasileira apenas modulava um cântico expressivo e melodioso, o de Fagundes Varela, cujo sentimento vai, por ditirambos e elegias, desde o bucolismo à religiosidade. Tobias, reagindo contra a pieguice lamurienta dos menestréis indígenas de Elvira e da lua, contra o maneirismo dos nossos pseudo-lamartinianos, deu-nos a frescura matinal de uma écloga e o perfume de um idílio naturista nos primeiros versos rústicos – Beija-flor e Anelos; auriga da escola condoreira, trovejante carro de fogo arremessado às nuvens, fez ressurgir a influência hugoana com os poemas. A Vista de Recife e O Gênio da Humanidade; interpretou a cólera e o civismo das massas nos seus cantos de guerra, saudando os heróis do Paraguai; difundiu o culto às glorias artísticas, pelos teatros, lançando ramalhetes de estrofes aos pés de Líbia Drog ou Júlia Tamborini; sublimou a paixão humana, como idealidade, no aureolado transporte do seu infinito amor, Leocádia Cavalcanti; reacendeu para a beleza morena de outra pernambucana, Maria d’Albuquerque, todas as flamas eróticas da alma tropical. Verdadeiramente, sejam quais forem as suas imperfeições ou dissonâncias, a lírica dos Dias e Noites entremostra, de onde em onde, não sei que flor numa estiolada, em cujo recesso a mais fria análise descobre o eflúvio noturno dos jasmins ou a ardência das rosas abertas ao sol.

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Os discursos de Tobias, deflagrações do seu poder tribunício, empolgavam o auditório com a mesma veemência dos arroubos poéticos. Se o poeta já discursava em estilo condoreiro, à margem da guerra do Paraguai, o orador não seduzia menos do que ele, abordando teses jurídicas ou temas nacionais. Compreende-se que Sílvio Romero, estudando o primeiro, dedicasse frementes páginas ao segundo na História da Literatura Brasileira, como não se compreende que os apologistas do escritor e do orador silenciassem, até hoje, sobre as opiniões políticas dessa mentalidade inesgotável.

Antes de combater doutrinariamente o Poder Moderador, ficção romântica desenhada por Benjamin Constant, superposta como um ilogismo coroado aos órgãos da monarquia, já o seu espírito se erguera contra o poder pessoal do monarca, embora acentuasse que D. Pedro II era o político de maior sagacidade neste país. Desafeiçoando-se do império, não chegou à profissão de fé republicana, ainda que houvesse elogiado o Clube Republicano da Corte, em 1870, pressentindo a república, longe, por meteoros ígneos anunciadores da tormenta.

No partido liberal, em cujo seio foi um hóspede irrequieto, senão incômodo, a experiência trouxe-lhe o desgosto do liberalismo partidário, que ele julgava tão ineficaz, pela sua ambigüidade, quanto o partido conservador, pelo seu anacronismo, delatando nos dois a ausência de uma doutrina e concluindo ser necessário ao Brasil o partido único dos incorruptíveis, por derivarem todos os nossos males da hipocrisia dos governantes e da corrupção dos governados. Mas nenhum programa de ação regeneradora nos legou o indomável Tobias, naturalmente porque desconfiava de todas as reformas políticas nesta voragem social.

Eleito à assembléia provincial de Pernambuco, sustentou vigorosamente em 1879 os direitos da mulher, discorrendo sobre educação feminina para demonstrar aos adversários que o cérebro de Eva, não obstante o peso menor, vale tanto pela qualidade, especificamente, como o do seu companheiro nas aventuras edênicas. Dessa convicção de precursor do feminismo, entretanto, não evolveu para o marxismo. Individualista sem exagero, sectário da liberdade, refez agudamente a psicologia social da pobreza igualitária, ao escrever para os nossos dias: “O mais alto grau imaginável da igualdade – o comunismo –, porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos – a inveja.” Cinqüenta anos depois, ninguém penetraria melhor do que ele no secreto determinismo das reivindicações de nivelamento social.

Tobias deparava o Estado constituído e a Nação amorfa, sob a cópia da monarquia inglesa, nascida historicamente do particularismo e da reforma, transplantada absurdamente para uma coletividade neocatólica e neo-ibérica, medrando no gosto secular da autoridade. Em vez do parlamentarismo: “grande desvario, protonpscudos do século XIX” – desejava para nós um governo autóctone, que surgisse da relação necessária entre as causas históricas e as formas políticas. Textualmente disse: “Alexandre Humboldt chamou a constituição inglesa um produto oceânico; nós seríamos ditosos, se também aquela que nos rege pudesse porventura se qualificar de um produto selvático.” Por nosso mal, nunca lhe saiu da pena revolucionária o modelo selvagem, frondescente à maneira dos jequitibás, e as nossas constituições desabotoam, emurchecem como flores de estufa, mais ou menos exóticas. A ciência política de Tobias, outro aspecto do seu formidável criticismo, não descobriu o maior tesouro da selva – uma constituição brasileira.

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Sob a influência do germanismo, Tobias conservou o mesmo temperamento apaixonado, transbordante e exclusivista. Em religião, desenvolvendo na exegese dos textos sagrados as idéias magistrais de Ewald, Strauss e Reuss, ou deificando os alemães insuperáveis, contra o saber de Guyan e a sua irreligiosidade; em literatura, hoje despindo os farrapos à indigência da novelística e amanhã propondo o estabelecimento de uma Internacional ou Inquisição literária, que funcionasse em Berlim, para consagrar ou desfazer as reputações européias e americanas; em filosofia, com as suas diretrizes haeckelianas, modificadas pelas reminiscências da teoria do conhecimento de Kant, os princípios formulados sobre a ausência de sincronismo da evolução emocional e intelectual do homem, a profundeza das glossas anti-sociológicas; em ciência jurídica, pela sua intuição naturalista e finalista do direito, pelos seus originais golpes de vista no campo do Direito Criminal, desde Menores e Loucos, miniatura de uma obra-prima, até ao Fundamento do Direito de Punir, como necessidade, que se impõe ao organismo social com a força da própria evolução; em arte, na polêmica travada sobre a música de Meyerbeer; em todos os domínios da inteligência, Tobias Barreto foi sempre o mesmo germanófilo irredutível, que levava o pangermanismo, no menosprezo de quaisquer outros valores culturais, até ao desdém risível dos nomes, das obras de Comte e Spencer, gloriosos mestres do pensamento hodierno.

Ele confessava que a Alemanha era a sua loucura, o seu fraco irremediável, e o douto Sílvio Romero elogiou-lhe o arrebatamento na propagação das modernas teorias germânicas, desenvolvidas por um critério pessoal, não independente, mas inconfundível. “Isso é bom, – opinava Sílvio – os iniciadores devem ser arrebatados, sistemáticos, exclusivos”. Criticismo e exclusivismo não se me afiguram, no entanto, logicamente conciliáveis, mas dessa incompatibilidade nunca se apercebeu o espírito de Tobias, lidador, guerreando como um fanático, sob o estandarte imperial da Alemanha.

Não obstante a difusão das idéias positivistas evolucionistas, já circulantes entre os moços desse período, ilustrado pelos nomes de Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando, Martins Júnior e outros, afora os dos lentes José Higino e João Vieira, em cuja mentalidade transpareciam os novos rumos científicos, emanou de Tobias para o Brasil a concepção monístico-idealista do universo, aplicada aos fenômenos sociais. Noticiando a um colega de São Paulo o grande acontecimento, escrevia Gumercindo Bessa, estudante recifense: “Indaga por aí, por S. Paulo, se há um só estudante, um só lente, que tenha ouvido falar em monismo. Ninguém te aparecerá. Hoje, todos sabem que existe um sistema filosófico chamado monismo e qual ele seja. Aprenderam de Tobias, o espírito mais adiantado deste país.”

Monismo... Do vocábulo precioso, mais tarde, Graça Aranha fez uma palavra mágica no labirinto das suas generalizações. Apenas, o esteta vinculava-se ao monismo naturalista de Haeckel – tudo é um, porque tudo é movimento – e o espírito do mestre refletia o monismo filosófico de Noiré – tudo é um, porque tudo se move e sente nos átomos iguais, de que se compõe o universo. Com o movimento – propriedade externa do átomo – prepondera a causa efficiens, com o sentimento a causa finalis, em todas as manifestações da vida cósmica. Donde a finalidade irredutível nos fatos do mundo psíquico e da ordem social, traduzida pelo conceito de Kant – “há um resto mecanicamente inexplicável”, que Du Bois Raymond ampliou nesse outro: “Mecanicamente, não saímos da mecânica; não podemos compreender como nasce a consciência, como nasce o sentimento.” Haeckel replicaria, com a temeridade própria dos fundadores de sistemas, que tudo isso nasce do fronema, do córtex cerebral. Tobias Barreto, idealista e finalista, objetaria que a liberdade humana, sob lei natural, não tem só uma causa mecânica, mas também uma causa voluntária. Na escola de von Ihering aprendera que a natureza, interpelada sobre a causalidade fenomenal, responde por um quia, e a sociedade, inquerida igualmente, responde por um ut. Assim o mundo para Tobias – “não é só uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo acanhado: é ainda uma cadeia, uma série de para quês, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apóiam, se limitam, saem uns dos outros”.

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Longe do mundo especulativo e das suas abstrações, nos sectores do mundo real, onde as idéias se entrechocam, deflagram como os interesses, erguia-se para infindáveis lutas a alma primitiva do combatente, agigantado pelo estudo e pela idade. Nos belos tempos da musa condoreira, helenizando as origens ibero-africanas, Tobias Barreto dizia-se grego – sou grego pequeno e forte –, mas um sábio alemão, o Dr. Lange desvendou-lhe a grandeza acima do seu povo. Se o helenizássemos de novo, esse gigante reproduziria no velho sentido pugnaz um grego, não da Acrópole, senão da Ilíada, abatendo e injuriando os adversários, sob os olhos claros de Palas Atena, invencível Razão dos jogos florais e das lides cruentas. Somente, ao arco dos sagitários de Homero ele preferiu o martelo de Thor.

Adolescente, o poeta dos Dias e Noites fora um batalhador, fizera da poesia uma sorte de prélio, a guerra das duas rosas – Eugênia Câmara e Adelaide Amaral – ou das duas liras – Tobias Barreto e Castro Alves –, lançando versos, como granadas, ao marulhar de aplausos do Recife, onde a campanha do Paraguai, o tumulto abolicionista e as porfias teatrais lhe acenderam o estro, lhe inspiraram o canto. Essas granadas, caindo aos pés das atrizes, se debulhavam poeticamente em rimas, quando não explodiam sonoramente à face dos rivais, atiradas de um a outro varandim do teatro Santa Isabel.
Ensaísta e polemista, autodidata e poliglota, o gigante descoberto por Lange, classificado na raça dos grandes pensadores por Haeckel, investiu e golpeou os adversários em quatro idiomas – português, francês, alemão e latim –, porque até as cinzas de uma língua morta fumegavam, ao contacto da pena incendiária. Por mais de vinte anos, o mestre d’armas do pensamento nacional bateu-se com amigos e ádvenas, poetas e juízes, doutores e clérigos; mediu-se com as sombras da teologia e da metafísica; batalhou contra os ventos desencadeados pela fúria tedesca dos seus escritos.

Saíam-lhe os plebeísmos com os argumentos; sibilavam-lhe os dardos em remoques acerbos e agudos. Quase a morrer, ainda pugnava em torno do Self government, como em volta de uma cidadela, e acredito que, mesmo depois de morto, não lhe conviria senão a bem-aventurança do Walhala, onde os guerreiros imortais pelejam, desde o amanhecer ao meio-dia, sob a ramagem de ouro das selvas hiperbóreas.

GRAÇA ARANHA

Quarenta anos depois do abraço inicial, que o ligou a Tobias no concurso de 1882, Graça Aranha escreveu: “Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto.” Como reminiscência das jornadas e leituras feitas, não duvido. Como afinidade mental, porém, até onde caminharam juntos o novelista e Canaã e o ensaísta dos Estudos Alemães, o discípulo de Haeckel e o filósofo jurista da escola de Ihering, o legionário da França de 1914 e o fundibulário da Alemanha de 1870?

A influência de Tobias sobre o rumo de Graça foi já definida por este como desenvolvimento do espírito de negação em todos os campos da autoridade – a fé, a política, a literatura, a metafísica, a ordem social e a ordem estética. No dilúculo do seu jardim literário havia negrejado o manto renovador de um Mefistófeles tropical. Aos treze anos e meio, confessa-nos Graça que era um ateu e que estava apto para dizer corajosamente – não! às forças encasteladas na crença ou no uso, senhoras tradicionais do nosso mundo instável. Com uma ingenuidade, no diálogo de sombras do seu ocaso, ainda pergunta aos ancestrais donde lhe veio semelhante fúria destruidora... Há nesse furor literário um pouco de romantismo ou quixotismo. O nevoeiro da metafísica fora dissipado, muito antes de Graça Aranha, por outros raios solares, e através da máscara de Lenine, o maior iconoclasta do nosso tempo, nunca ressoaria os efeitos de um estilo canoro.

Evidentemente, o criticismo de Tobias pouco influiu num espírito predestinado aos vôos de Ariel por outros píncaros, outras paragens azuis, enquanto o do mestre não cessava de trabalhar na planície rasa ou nos degraus da montanha. Quando muito, deu-lhe o senso e o gosto da cultura moderna, positiva, na filosofia e no direito, sob as leis do novo império científico, anunciado por Lamarck, erigido por Darwin. Filosoficamente, ambos eram monistas; juridicamente, ambos faziam decorrer da luta universal pela vida a luta social pelo direito. Apenas, o monismo filosófico de Tobias vinha da escola idealista e neo-kantiana de Ludwig Noiré, conciliando o movimento e o sentimento, as causas eficientes e as causas finais. O monismo naturalista de Graça, ao revés, já em 1894, no prefácio à Concepção Monística do Universo, de Fausto Cardoso, não admite senão causas físico-químicas. É o hino à matéria polimorfa, desenvolvendo-se da nebulosa originária, donde raiou o sol, até ao cérebro de Haeckel, donde nasceu para os homens a verdade, na sua opinião de fetichista.

Simplificando todos os problemas, esquecendo todas as barreiras, para negar sem exame o teleologismo, o dualismo, o resto mecanicamente inexplicável de Kant, os sistemas em cujas linhas grandiosas reaparece o conceito da finalidade, Graça Aranha perfilha a intuição mecânica do direito, concebido por Fausto Cardoso, àquele tempo, como o estado de equilíbrio das formas do mundo moral, correspondente à harmonia dos céus ou gravitação no mundo físico, à harmonia do espírito ou consciência no mundo lógico. Tudo isso era brilhante, mas aéreo – um castelo suspenso das nuvens pela imaginação. Em substância, o universo constitui na síntese mais poderosa o teleomecanismo de Fechner: causas e fins concorrem no mesmo desenvolvimento universal, por um lado mecânico, por outro psíquico; e nesse domínio a complexidade fenomenal do direito não pode reduzir-se ao enunciado simples do movimento, em fórmula newtoniana. O direito, face da vida cósmica, força específica da vida social, é imposto pela natureza às suas relações, mas adaptado pela cultura aos seus fins. Entre o babelismo da escola espiritualista e o da escola histórica, desdobradas em vários matizes, a própria escola positiva desdenha o realismo unilateral, sentindo e abrangendo toda a realidade jurídica, a dos fatos materiais e a dos fatos psíquicos – dupla realidade visível e invisível, fundamento das suas construções. Entretanto, se a Fausto Cardoso havia bastado o mecanismo para a síntese monista do direito, por que não bastaria a Graça Aranha para a síntese monista da arte? Foi o que ele tentou fazer na Estética da Vida.

Relembremos a idéia consubstanciada nesse livro. Perene transformação da matéria-força, eis o Universo. Modo instantâneo da atividade universal, eis o homem. Na formidável dualidade subjetiva, – Eu e o Mundo – a consciência exprime o terror diante do Cosmos, e o sentimento do infinito avassala o espírito humano, torturado pelo anseio da Unidade. Não podendo reintegrá-lo a ciência no Todo Universal, porque a ciência não ultrapassa a observação metódica das causas e dos efeitos singulares, a fragmentação analítica da natureza em séries ou quadros fenomenais, o espírito busca a Unidade em outras fontes – a religião, o amor, a filosofia e a arte. Só uma dessas madres, porém, a arte – realiza com o seu pan-estetismo, criando imagens, cores e sons, a fusão espiritual do Eu no Todo infinito, concentra em perpétua alegria a luz necessária ao homem, para perceber, como percebeu Graça Aranha, – “nas miragens da consciência o inexorável e infindo mistério do Inconsciente”. Nada mais obscuro e vago. Uma filosofia num estado de alma – o que ele denominava suprema libertação.

Tudo isso, confusamente, participa do monismo haeckeliano e do misticismo oriental, por inverossímil que se afigure semelhante amálgama. O anseio da Unidade é um remoto impulso ariano, tendente à fusão do nosso espírito no Ser universal e eterno: Brama. Do bramanismo ao cristianismo, através de sonhos e cultos, essa tendência mística renasce com a sabedoria ultravédica dos Upanishads ou a prece do Nazareno pelos seus discípulos. Mas o lugar da unio mistica é o santuário ou o deserto dos monges, não a turris eburnea dos artistas, posto que a arte, sob outros aspectos, seja também uma religião e tenha um sacerdócio de monges lapidários. Graça Aranha, de qualquer modo, transpôs o anseio dos livros sagrados para o domínio das belas letras, com uma particularidade a sublinhar: do espiritualismo passamos aqui ao materialismo. Sendo a alma, para este, um lampejo do córtex cerebral, o esteta procura a unidade, não pela fé, no demiurgo, mas artisticamente, pela miragem, na inconsciência da matéria cósmica. Haeckel não deixaria de sorrir dessa estética monista, que absorve o idealismo no mecanismo, quando ele antevia os dois conciliados, jamais confundidos, no soberbo paralelo de Goethe: o mundo real, objeto da ciência, e o mundo ideal, objeto da pura estética: Wahrheit und Dichtung.

Se o universo é uma série cambiante de imagens, refletidas num espelho móbil, a consciência, e o poder imaginativo da arte é a magia cósmica do homem, como supõe Graça Aranha, tudo se resolve na perpétua alegria da imaginação ou da sensibilidade estética, refazendo a nossa unidade com o Todo. Esteticamente, prefiro o culto da Beleza, ideado por John Ruskin; metafisicamente, a filosofia da Imaginação, urdida através do Cosmos por Frohschammer, para quem a fantasia é o princípio de todas as cousas. Prefiro a nebulosidade germânica, e o tremeluzir dos seus faróis, ao despenhadeiro de Graça Aranha, que os leitores desejariam mais compreensível, nas aventuras filosóficas, se o próprio autor de Estética da Vida não tranqüilizasse a nossa incompreensão, declarando com imperturbável sisudez: “O ideal é sentir e não compreender, porque compreender é uma dualidade que nos separa do Universo.”

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Canaã, a obra-prima de Graça Aranha, esplendendo num píncaro solitário, que se fez depois inatingível para ele próprio, não foi concebida sob o influxo de tais pensamentos. O que há nesse romance é a vida em ponto grande, como exigiu Tobias Barreto aos novelistas indígenas da vida em ponto pequeno, descobrindo na contextura do romance europeu, com o advento de Walter Scott, não só afetos e lembranças, pugnas e esforços, mas também ciência, filosofia, arte, política e religião, a suma dos novos tempos.

Desde logo ressalta o valor de Canaã, nos seus perfis encantadores ou expressivos, angélicos ou rústicos, mas indeléveis, – duas efígies teutônicas, Lentz e Milkau, o homem férreo do passado e o homem livre do futuro; a loquacidade vária e a mobilidade simiesca do agrimensor Felicíssimo, demarcando a terra dos colonos; Joca, um fauno mestiço e esperto, com assombrações de currupira, entre as lendas do Reno, e danças de terreiro, entre as valsas alemãs; o implacável juiz Itapecuru; Maciel, fino letrado pessimista, que a vida lançara ao exílio do mundo bárbaro; enfim, a dor e a graça de Maria, agora com o seu fruto, dormindo nas sombras da mata virgem, sob a festa de cores dos pirilampos, mais tarde com o seu crime, penando na cadeia de Porto do Cachoeiro, e transfigurada pelo sonho, após o martírio, na suprema Visão de Canaã, à orla dos precipícios, onde os seus cabelos dourados semelham florestas, cuja beleza maternal recobre as gerações vindouras.

Esse livro perpetuou a sua originalidade como estilo e emoção, tema de raças em conflito e drama de almas em contraste, idealismo profundo, sentimento da paisagem e simpatia humana. Meticuloso e sóbrio, louvando a estréia sem par, José Veríssimo aí exaltava a primeira e única manifestação literária, no Brasil, das novas correntes espirituais e sociais. Com a ideação relampeante de Canaã no cenário tormentoso das migrações contemporâneas, eletrizado pelo anarquismo e pelo imperialismo, tivemos um raro momento de gênese literária, ainda hoje comparável, porventura, ao fecundo momento inicial do Guarani. São instantes edênicos e abrasadores do mundo tropical. Fundem-se aí desejos nativos com as ambições e energias, que emigram para a nova pátria. Se o espírito de José de Alencar fixou a alma brasileira no convívio do português e do índio, entre a selva e o mar, Graça Aranha soube traduzir-lhe a inquietação no seu encontro com a alma de outras raças aparentemente civilizadas. E é curioso notar como a brasilidade suplanta o anarquismo doutrinário num livro, cujo espírito foi suspeitado, por vezes, de intenções ou idéias contrárias ao sentimento brasileiro.

Sem o querer, talvez determinado pelo subconsciente da raça histórica, em formação, Graça Aranha nacionalizou a própria alma cosmopolita de Milkau, suave anarquista, dialogando com o pangermanismo de Lentz. Afora extravios fortuitos, breves eclipses, inevitáveis num floricultor de utopias anárquicas, repercute a alma brasileira na ideação metafísica, sociológica e poética de Milkau. Ele recorda o santuário colonial de São João Del Rei com saudade e ternura quase nativas: aí está o culto das tradições. Ele desdenha os anátemas lançados à terra e o prejuízo aristocrático da raça: aí está, sem fatuidade, a confiança do homem brasileiro no seu vigor, que saiu de tempos heróicos abalados pelo tropel dos mamelucos, enobrecidos pela reação dos pernambucanos. Ele proclama a vitória da nossa linguagem sobre o alarido e a poeira de Babel: aí está o zelo do idioma, em que se articula e se aperfeiçoa a nossa humanidade. Ele se extasia perante a doçura dos nossos costumes: aí está o sinal de uma afetividade, cuja intrínseca virtude é extinguir todos os ódios, enlaçar todas as raças. Milkau refuta o pessimismo indolente de Maciel. Como um profeta, dissipa nos corações o temor de uma Europa invasora: “Não a temais nem a invejeis. Antes que se erga contra vós, ela se despedaçará.” Prediz a aurora incerta e longínqua da Terra da Promissão, flor concebida humanamente no seio da mulher brasileira, humanamente orvalhada com todas as lágrimas: “Ainda não despontou à Vida.

Paremos aqui e esperemos que ela venha vindo no sangue das gerações redimidas. Não desespereis.” O dialogo de Abel e Caim, redivivos e reconciliados em Canaã, avulta à maneira de um símbolo, projetado sobre o futuro. Mas para o Brasil tem ainda o sentido oculto de um Imperativo categórico: perseverar contra a dissolução anárquica ou a infiltração ameaçadora, de qualquer procedência, na sua Unidade geográfica e na sua Unidade moral, sobre o fluxo das ondas migratórias, com o mesmo sangue e a mesma fé, o mesmo gênio atlântico e a mesma língua sonora dos antepassados.

Depois de Canaã, o filósofo-esteta deixa o império da Arte flagrantemente viva para acompanhar o ilusionista – Malazarte –, a magia criadora das formas instantâneas e das ficções alegóricas. É este o segundo instante literário de Graça Aranha, o seu instante parisiense e teatral, que fez o encantamento de Camille Mauclair e o desapontamento de José Veríssimo. Demônio e símbolo, o estonteante Malazarte precede a Estética da Vida, anunciando-lhe já o pensamento, a audácia, o amoralismo impugnador de valores cristãos, na realidade os nossos eternos valores. Graça Aranha, nos três atos da sua lenda, retoma a dupla quimera indígena – o demônio familiar da puerícia travessa e a ilusão aquática da Iara –, quimera desenvolvida em aparições ou metamorfoses do instinto, Malazarte e Dionísia, o tentador e a sereia – ambos fugazes, mas felizes, na plenitude inconsciente do Universo. Entre as duas forças naturais, os dois seres alegres como o céu e o mar, conscientemente sofre o homem acorrentado à moral, Eduardo, com as suas decepções, os seus deveres, os seus amores incompletos ou indecisos, nublados de tristeza e dúvida. Ainda que o tentem Malazarte e Dionísia, a centelha do gnomo e a frescura da ondina, ele não poderá segui-los na oscilação da mesma barca, reinar como espírito livre, desejo livre, no mesmo palácio de coral. É tarde. A existência já o condenou à separação e à dor: Só a morte poderá entreabrir-lhe as portas iniciadoras. Mas a beleza dionisíaca, ao fugir sobre as ondas, arrebatada pelo demônio panteísta, sente que vai morrer. “Ah! Joie. Si Dyonisia meurt...”. E em francês lhe responde alacremente o sutil Malazarte. “La voix de la mer chantera toujours.”

Por esse mar ilusório e cantante, ainda em busca da unidade inconsciente e da perpétua alegria, realizou-se A Viagem Maravilhosa, a derradeira viagem de Graça Aranha, ao pôr-do-sol. Teriam as vagas derruído o palácio de coral do gnomo e da sereia? Ter-se-ia evaporado entre as espumas e os escarcéus a beleza dionísica? À parte os sectários, que lhe gabaram os defeitos como virtudes, houve nos leitores da Viagem Maravilhosa uma impressão geral de cansaço e tédio – a impressão das viagens sonolentas, por enfadonhas.

Graça Aranha, sem o vigor matinal de Canaã, perfaz A Viagem Maravilhosa com o espírito de revolta, que ele cultivou entre os insubmissos, mais ou menos jovens, mais ou menos rubros, temendo envelhecer nas erupções deste começo de século, atormentado pela crise econômica e pela idéia marxista. Da sua novela, porém, não se destacava um só temperamento de grande revolucionário com idealidade e bravura. Os seus agitadores são meramente criaturas de superfície, girando na própria ressaca do Flamengo: nenhuma dessas almas incolores traz consigo a força rebelde, que se desencadeou mais tarde no pampeiro da arrancada outubrista. Sem qualquer preconceito de época ou preferência de escola, suponho que o livro nada acrescentou à glória do esteta e do pensador, não obstante o movimento, a largueza, o impressionismo e a coloração de algumas paisagens ou de alguns episódios como os trechos de macumba e do carnaval, fragmentos esculturais num deserto. Pela instantaneidade, pela vibratilidade, o romance procura adaptar-se ao modernismo da composição cinemática e da trepidação mecânica dos novos tempos. Mas falhou a psicologia no desenho dos caracteres, a imaginação no enredo, o poder sugestivo nas evocações do ambiente social, a ideologia no debate dos personagens, o lirismo ou a tragédia na revivescência das paixões, a dramaticidade no choque dos interesses e dos sentimentos, a própria sintaxe no idioma. O egocentrismo de Filipe e Teresa, amantes infecundos, sob a idéia fixa da liberação pelo amor, põe um signo de esterilidade no seu pequeno mundo vaidoso, lascivo, inútil, onde a matéria se decompõe, sem cessar, para a mesma dança espectral de fogos-fátuos.

Enquanto os modelos culminam pela sobriedade e pela intensidade, a exemplo das construções geniais de Flaubert ou de Tolstoi, nesse amontoamento de períodos fragmentários há qualquer cousa dos mounds, onde a arqueologia recolhe os ornatos e detritos de impérios desfeitos: máscaras e cinzas, utensílios e armas. Nada mais heterogêneo, mais desconforme para a estesia de almas, que educaram o gosto literário na freqüência dos mestres ou no encanto das musas.

Com a esfalfante narrativa ou descrição urbana, em frases articuladas por série, traindo a mania loquaz dos pormenores inexpressivos com a indecisão dos tipos vulgares, apenas bosquejados, os lances e toques de baixo realismo, impotente para dar vida aos personagens, brilho ao enredo e força aos episódios, as digressões de fácil retórica parlamentar sobre a tecnocracia, o comunismo e a seca do Nordeste, quase toda a novela justifica a desoladora fórmula que lhe foi aplicada pelo Sr. Medeiros e Albuquerque: “Um grosso volume desinteressante”.

A própria figura central não sobrepuja as demais no seu plano. Sibarita com ares de patriota, narcisando-se através de todos os lagos, todas as névoas e todos os charcos do caminho, desertando a causa revolucionária ao primeiro convite para a sesta e o gozo, Filipe, o herói do romance, que tudo quer destruir, fora do egocentrismo e nada sacrificar, dentro dos seus instintos, merece bem o comentário feito pelo Sr. Humberto de Campos ao romancista: “Espécie de Adrien Sixte, da criação de Bourget, é de lugar seguro, alheio à mecânica dos fatos, que ele, sem imaginar os males, que pode determinar com a extensão do seu prestígio, envenena, em nome da arte, as grandes correntes do pensamento e da vida.”

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Se a lenda teatral de Malazarte precede o ilusionismo sistematizado na Estética da Vida, o terceiro instante do romancista – A Viagem Maravilhosa – corresponde ao niilismo do Espírito Moderno. O apelo aos moços para a criação de outra literatura no Brasil foi eloqüente e fascinador, sem dúvida, mas o porta-voz não os enfileirava sob uma bandeira, que se definisse à luz da alvorada nas suas cores. Essencialmente, como traduzia ele o espírito moderno, cuja força dinâmica lhe parecia a boa-nova redentora do espírito nacional? Primeiro, como separação do passado no arrebatamento para o futuro; depois, como explosiva dissociação do presente ilusório; afinal, como delirante negação do próprio conceito substantivo. “O espírito moderno – assim falou Graça Aranha aos modernistas – é uma abstração. No momento em que o definimos e captamos entrou no passado.” Entrou-se no passado, o futurismo acaba, em refluxo, na mesma correnteza passadista. Mas logo o hierofante declara: “O espírito moderno é dinâmico e construtor. Por ele temos de criar a nossa expressão própria.” Subjetiva? Não. Objetiva, porque o objetivismo dinâmico – ensina o mistagogo – “é a expressão fecunda do espírito moderno”. Será esse objetivismo, portanto, a lógica impessoal de um supranaturalismo contemporâneo? Não! – responderia Graça, porque o objetivismo, no seu entendimento, é a arte liberta da natureza, o exclusivo produto da força criadora do homem. Recaímos, então, no subjetivismo? Nada mais estonteante que esse jogo verbal de sofismas e contradições.

Não admira que a hoste dos futuristas, depois disso, envolvesse e arrastasse o capitão, para o deixar nos últimos dias à margem de um caminho sem beleza. Derredor de Tobias, na escola recifense, agrupava-se também a mocidade com o sagrado furor de hoste demolidora, marchando sobre a ruinaria da velha ciência, mas naquele período triunfal se renovaram algumas diretrizes do pensamento brasileiro, filiados no criticismo evolucionista. Do objetivismo dinâmico de Graça Aranha, porém, que outra corrente adveio para as letras? Nenhuma. O futurismo desmedrou na insignificância dos próprios resultados. Era um sujeito medíocre, de origem plebéia, incompatível com o próprio aticismo de Graça Aranha, a formação aristocrática da inteligência e da cultura, a linha social desse homem polido e repolido na freqüência dos salões de Paris, – diplomata educado por Joaquim Nabuco; amigo de nobres espíritos como Henri Bergson, Maurice Barrès, Camille Mauclair; harmonioso escritor, que dissera em Canaã: “...Escrever é cantar com a pena.” Cedendo aos caprichos da moda revolucionária, decompondo o seu raio de sol para se fazer diabolicamente vermelho no espectro da nossa literatura, Malazarte quis apenas fundar o partido literário dos jovens com os seus manifestos e erguer a primavera contra um arcadismo inexistente, um baluarte imaginário da tradição, a Academia Brasileira, esta mesma Academia tão desejada e seduzida pelos moços, cujo trabalho nunca deixou de reflorir, nas festas ou nos pleitos acadêmicos, entre o perfume das rosas e o prestígio dos louros. Malazarte não chegou a ser fascista, mas o seu rublo partido literário teve a sorte comum aos partidos, que a nossa volúvel democracia embala por instantes e esquece por todo o sempre.

Graça Aranha desviou-se da Academia Brasileira com esse fatal modernismo, e em qualquer outro lugar da nossa cultura não acharia ele o espírito moderno mais livre de cânones ou de compromissos. Apenas, a mentalidade acadêmica tem razões biológicas, entre o passadismo e o futurismo, para excluir dos seus concursos as dissonâncias ou deformidades literárias. Evolucionista como foi, Graça Aranha esqueceu, todavia, que existem leis de herança, de seleção e de progresso, iniludíveis, no mundo real e no mundo ideal, para as formas da natureza e da arte; que a vida conserva o passado nos germens e nos traços fundamentais, cultiva o presente na complexidade e no equilíbrio dos seres mais aptos, elabora assim o futuro por diferenciação e aperfeiçoamento. Uma sorte de teratologia mental, denominada futurismo, antepondo monstruosidades, formas incoerentes ou extravagantes, à medida e à pureza dos tipos, não imutáveis, mas logicamente perfectíveis, fora tão absurdo quanto o passadismo, que nos trouxesse dos arquivos milenários da terra os monstros aniquilados pela força e pelo ritmo da própria evolução.

Por mais que a literatura, industrializando-se com a sociedade, abrevie o estilo, reduza o ornato e a música, suprima devaneios ou comentários, acione o período, explosivamente, como o dínamo aciona o propulsor num vôo retilíneo, a arte será o divino sonho emotivo do homem, justificado pela razão eterna da beleza, ou deixará de existir, sem atmosfera, num orbe utilitário e edisoniano, entre a simplicidade geométrica dos volumes e a celeridade automática das projeções.

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Quando o terror dos monstros escurecesse a alma inventiva e fascinadora, quando Helena ideal sucumbisse às mãos brutais de um ciclope, o mundo conservaria, não obstante, as cinco modalidades naturais do Belo na dança das folhas e das chamas ao vento, na arquitetura das nuvens e das rochas, na escultura das grandes palmeiras triunfais, na música das primaveras gorjeantes, na poesia dos seres, das cousas e das horas. Mas devemos tranqüilizar-nos porque o futurismo já desaparece com as suas extravagâncias, os seus pesadelos, e a sensibilidade ultra-moderna, em Paris, volta à nobreza da escola de Racine, palpita nas formas neo-clássicas de Baudelaire, transcende o parnasianismo com a poesia pura de Valery.

Espírito singular e sedutor, Graça Aranha foi o mais incontentável, porque foi o mais subjetivista dos nossos escritores, a despeito do seu farfalhante objetivismo dinâmico: em sucessivas metamorfoses da vida interior, bruscas variações do próprio Eu literário, foi o poeta anarquista, Milkau, o demônio jovial e erradio, Malazarte, o rebelde e apaixonado Filipe. Exaltava num dia a serenidade olímpica de Goethe; em outro, o furor destrutivo da Ordem; agora, a ciência; depois, a ilusão; hoje, o triângulo do Partenon; amanhã, o tumulto da horda cubista ou dadaísta. Em cada movimento diurno da terra, saudava a aurora e lapidava o ocaso dos seus ídolos vãos. Graça Aranha foi o mais cambiante dos nossos estetas e a maior das nossas contradições literárias. Começa no germanismo, abraçado a Tobias, aferrado a Haeckel, e acaba por celebrar a vitória do espírito latino, em Paris, sobre a rude Germânia prussianizada. Devotamente, lavra as efígies acadêmicas de Joaquim Nabuco e Machado de Assis, em algumas páginas formosas, para investir um ano depois contra a realização de que se orgulhavam os dois mestres da Academia. Eloqüente e versátil, rebrilhante e impulsivo, tornou-se o homem das combinações irrealizáveis ou das mutações inconcebíveis, querendo aliar o método científico e a sensibilidade mística, fundir no período mais ígneo do mundo o ciclo de ouro do belo e desaparecer com a sua alquimia na voragem do absoluto. O anarquismo, por um lado, e o romantismo, por outro, eram-lhe duas asas em desequilíbrio para o surto dos pensamentos. Como que lhe revemos a instabilidade na irisação do seu caleidoscópio mental, sob as aparências da perpétua alegria estética, uma variante impossível, por fictícia, ela perfeita alegria religiosa de São Francisco de Assis.

Entretanto, poderíamos acentuar nesse destino as condições de uma existência invejável pelo nascimento, pela educação, pelo requinte, lembrando-lhe a cultura polimorfa, a carreira diplomática, as amizades ilustres em círculos nacionais e estrangeiros, a lição dos museus e a surpresa das viagens, mais instrutivas ainda que os livros, no dizer do sábio. À sua passagem, florindo os seus dias, multiplicavam-se afetos e aplausos, triunfos e carícias. Fielmente seguindo pelo amor e pela vitória, quase nada sofreu, quase tudo alcançou,  entre o raiar e o cair do sol. Mas o dom perigoso da imaginação, que o enfeitiçara no berço e lhe imprimira à arte o selo candente, unindo-se à força negativista, era ao mesmo tempo a sua glória e o seu mal. Havia nele a indolência de um contemplativo e a insubmissão de um conspirador. O espírito vagueava pelos cimos, fantasiando combates ou erigindo Alhambras irreais, até que as visões belicosas ou fascinadoras o enlanguesciam, o encadeavam na moleza e na penumbra do sono. Reivindicador de todas as liberdades, pregoeiro de todas as libertações, Graça Aranha deixou-se atar por essas imagens vãs, foi o escravo dessas Iaras tropicais. Na volúpia do seu cativeiro o artista confessa: “Pelo excesso de imaginação e pelo gozo de imaginar não produzi muito e muitas vezes abandonei a ação empreendida.” Teve assim perturbada a sua finalidade, reduzida a sua fecundidade pela imaginação, quimera invencível, que lhe não foi possível refrear nem dirigir, mesmo voando na luz para o Ideal, entre os carros vibrantes e os corcéis frementes do sonho de Platão.

Quer pela inquietude, quer pela universalidade, não direi na órbita da filosofia, mas no processo evolutivo do romance brasileiro, o pensamento de Graça Aranha manifesta em Canaã uma essência renovadora, como o de Tobias na crítica e no direito. Se há espíritos letrados, em cujos livros o orbe parece descorar e envelhecer, fadado por um deus irônico à mesma sorte dos alfarrábios, que todos veneram, ninguém folheia, há também os mestres da vida nova, como esses, cujas idéias nos trazem qualquer coisa dos jardins adônicos ou das guerras alexandrinas. De onde em onde, remoça com eles a inteligência para criações harmônicas ou para conquistas heróicas.

Sinteticamente, o poema de Graça Aranha foi em Canaã o da Esperança, em Malazarte o da Alegria, na Viagem Maravilhosa o do Amor, e em todos esses livros o poema da Inquietação, oscilando entre o desejo e a dúvida, o saber e o sonho. Na fluidez mágica e móbil dos seus estados de alma, contudo, só uma causa não variou: o entusiasmo pela mocidade. E a imagem do Brasil, que o esteta idealiza no discurso aos jovens como um efebo livre, forte, belo, ascendendo e sobrepairando, traz-me a visão escultural de outro jovem, superposto ao monumento consagrado a Santos Dumont, em St. Cloud, pelo Aeroclube de França: todo ele um só impulso, ereta a cabeça, distendidos os braços na envergadura das asas possantes, abertas para o vôo.

SANTOS DUMONT

Passemos da Viagem Maravilhosa, de Graça Aranha, às Viagens Maravilhosas, de Júlio Verne, à fantasia das novelas aeronáuticas, vagamente continuada pelo sonho, dinamicamente excedida pelo gênio desse leitor brasileiro – Alberto Santos Dumont.

Em 1918, no opúsculo O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos, ele recorda a influência do novelista francês de Robur le Conquérant sobre o seu destino de inventor-adolescente, dando-lhe à vocação madrugadora o anseio de aventuras pelo caminho ignoto das asas, longe dos homens arraigados ao solo como os cinco milhões de cafeeiros da vasta fazenda paterna em Ribeirão Preto. Dos quinze aos dezoito anos, Alberto fora o hóspede gentil do Nautilus, da Ilha flutuante, da Casa a vapor; fora o deslumbrado companheiro, em silêncio, do Capitão Nemo, de Phileas Fogg, de Hector Servadoc; dera a volta ao mundo em oitenta dias; conhecera a profundidade oceânica, donde se esgalham as árvores de coral; navegara idealmente nos ares; em suma, com esses e outros heróis, essas e outras imaginações, antevira a idade mecânica do submarino, do automóvel, da aeronave.

Dir-se-ia que os germens atávico-hereditários lhe predispunham os surtos imaginativos à descoberta, lhe plasmavam com o determinismo das origens um tipo de inventor, fadado a realizar os devaneios da sua adolescência nas metamorfoses do nosso dinamismo. Com efeito, Santos Dumont vincula-se pelo sangue, diretamente, a dois insignes realizadores. O avô materno, Paula Santos, conquistou no progresso das indústrias e dos transportes de Minas Gerais o mesmo renome de Mariano Procópio e Bernardo Mascarenhas; o pai, Henrique Dumont, engenheiro pela Escola Central de Paris, nascido em Diamantina, construiu na terra mineira duas obras notáveis, – a ponte sobre o rio das Velhas, em Sabará, e o trecho de via férrea da Mantiqueira, entre Palmira e Barbacena. Aí teve Santos Dumont o seu berço, pendente da serrania, sob o teto de uma casinhola incrustada na garganta do lugar João Aires, escondida nas sombras da fazenda Cabangu, residência dos engenheiros da Central do Brasil.
No âmbito de outra fazenda, em Ribeirão Preto, quando o artifício dos locomóveis em miniatura ou dos soldados de chumbo retém os meninos da sua idade, Alberto conduz aos sete anos, através dos cafezais, os tratores de largas rodas maciças. Aos doze anos, em locomotiva Baldwin, familiariza-se com o transporte a vapor nas sessenta milhas da estrada de ferro, que serpeia entre as plantações.

Como um violinista precoce, resolvendo por intuição as dificuldades, atingindo por milagre os efeitos da técnica, ele maneja e recompõe, sem esforço, os dispositivos do seu instrumento gigantesco – a usina. Enquanto o pai e os irmãos, a cavalo, percorrem os meandros da fazenda, o orgulho secreto do petiz é lidar com o mecanismo, reger o galope dos cavalos mecânicos num sistema de forças, onde os escravos-autômatos de aço e de cobre, lançada em folhas e frutos a colheita aos reservatórios, alimpam, esmoem, despolpam, ressecam, peneiram e selecionam o café. Todas essas máquinas foram os seus brinquedos de infância.

Mais tarde, viajando a bordo das aeronaves literárias de Júlio Verne ou seguindo a trajetória dos balões acesos, que enchiam o céu das noites de São João, ele refletirá: “Um balão feito de boa seda, enfunado pelo gás, podendo erguer um homem, com a sua barquinha e o seu motor, seria tão facilmente dirigido nos ares como nas águas o navio. Se eu descobrisse o motor...”

Ainda não existia, porém, o dínamo possante e ligeiro, preocupação do jovem Alberto. O motor da usina e os tratores ingleses pesavam toneladas; as locomotivas, em uso no ramal com que o pai ligara a fazenda aos trilhos da Mogiana, eram decepções esmagadoras. Mas a viagem da família Dumont a Paris lhe entremostra o futuro. Um dia, na exposição das máquinas do Palácio da Indústria, dá-se o maravilhoso encontro de Santos Dumont e do motor a petróleo, um dínamo quase infantil, com exígua força de um cavalo. A certeza do ponto de apoio não alegraria mais o engenhoso Arquimedes, inclinado sobre a potência da alavanca universal. Como se o motor gerasse a força do seu próprio destino, Santos Dumont estacou, absorto e enlevado, porque sentira a possibilidade aerodinâmica das criações fantasiosas de Júlio Verne. O dínamo do Palácio da Indústria funcionava, trepidante, e ele ouvia nessa trepidação o bater das grandes asas de Ícaro, desafiando novamente as ondas do ar e os raios do sol.
Em 1891, pouco depois desse encontro, a emancipação e a fortuna deixam-lhe abertos os lugares fáceis do prazer ou os caminhos ásperos da ciência. Ao preferir o estudo, corajosamente, na vizinhança do boulevard, o estudante seguiu os conselhos do pai, engenheiro talhado para as construções e os ritmos da vida americana, que lhe dissera, pondo nas suas mãos, em títulos, várias centenas de contos: “Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital... Vamos ver se você se faz um homem; estimo que não se faça doutor; em Paris, com o auxílio dos nossos primos, você procurará um especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc.; estude essas matérias e não esqueça que o futuro do mundo está na Mecânica.”

Leonardo da Vinci, séculos antes, vira na mecânica um éden, o paraíso das matemáticas, porque todos os sonhos, todas as cifras do gênio inventivo se fazem, na sua bem-aventurança, imagens ou movimentos. Conduzido por um preceptor espanhol, Garcia, através das ciências físico-químicas, Santos Dumont buscou avidamente nesse paraíso a máquina volante. Era-lhe preciso inventá-la, ganhar com esforço próprio o reino celeste da mecânica, e ainda o salteava um receio: empobrecer, dissipando o ouro do cafezal paulista com esses vagos monstros de seda, os balões, que erravam ao sabor das correntes  atmosféricas, sem rumo, inflados pelo hidrogênio. Porque fosse menos temerário e menos ruinoso o automobilismo, Santos Dumont adquiriu a princípio um carro Peugeot, depois um triciclo veloz. Em 1897, a leitura do volume de Machuron e Lachambre – André au Pôle Nord en ballon – reavivou-lhe as idéias aeronáuticas, e um ano depois, sacrificando à glória o amor ao dinheiro, ainda mais, o amor ávido, ele atirou-se, como os voadores da lenda, à conquista dos ares.

Certa manhã de inverno, ascendendo pela primeira vez no aeróstato de M. Machuron, o brasileiro sentiu a sua predestinação, tamanha a facilidade com que aprendia as manobras, tamanha a serenidade com que enfrentava os perigos. Recoberto de neve, Paris branquejava-lhe aos pés, e a imaginação de um poeta vidente, se o acompanhasse, traçaria o poema do novo ciclo, feito de vôos radiosos e quedas sangrentas, na imensidade humana daquela página em branco. Ao poema dos ares Santos Dumont preferiu o almoço nos ares – um almoço regado a champagne, servido em pleno azul, defronte de um arco-íris. Daí por diante, começou a construir os seus aeróstatos.

O primeiro desses foi o Brasil, recortado em seda japonesa, minúsculo e gracioso como o desenho aéreo de um lótus no côncavo azul da grande taça, em que se coam os raios da aurora. Quer pelo diâmetro, quer pelo volume, o Brasil semelhava entre os demais aeróstatos uma estranha corola movediça, onde mal pousasse o aeronauta, peso-pluma de 50 quilos. Houve assombro nas oficinas, ante as dimensões dessa encomenda microscópica. Fantasia de louco, – teriam pensado os construtores. Mas o louco atravessou inúmeras vezes a cidade-luz no que ele denominava a sua “bola de sabão”, uma bola iriante e ascendente – Brasil –, que havia de subir para não mais se evolar. Do balão pequenino dizia-se que Santos Dumont o guardava dentro da mala de viagem. Um traço do bel esprit gaulois... Santos Dumont levava o Brasil guardado realmente no coracão, navegando pelos céus em busca da vitória.

Nesse e em outros balões erradios, antes das suas descobertas, e ainda sem o motor a petróleo, ele fez um curso de aperfeiçoamento das manobras aéreas. Em dezenas de experiências, conheceu os riscos e as sensações da aeronáutica. Ao exercício de pilotagem no oceano atmosférico, entretanto, ia seguir-se uma experiência mecânica e decisiva no Bois de Boulogne, o bosque mundano das tentações parisienses. Um dia, o ciclista Dumont suspende o seu triciclo a petróleo, atado por três cordas rijas, ao galho horizontal de uma árvore, ocupa o selim, observa com ansiedade o funcionamento do motor. Prodigioso instante o dessa árvore, o desse fruto amadurecido em longas reflexões. Nenhuma deslocação, nenhum abalo... Santos Dumont exulta. “Nesse dia começou – diz ele – a minha vida de inventor”.

Levar um motor deflagrante num aeróstato fusiforme, usando no mesmo bojo o petróleo e o hidrogênio, era como subir ao encontro da morte, e antes o balonista, se desejava morrer, acendesse um havana sobre um monte de pólvora, na opinião do Automóvel Clube de Paris. Mas a intrepidez fabulosa não se modernizava em Santos Dumont sem estudos e precauções. Ícaro, desta feita, assimilara a prudência de Ulisses. Vendo que as fagulhas expelidas em todas as direções pelo motor poderiam queimar-lhe o balão, Santos Dumont suprime o silencioso, encurva para baixo os tubos de escapamento, e as faíscas lançadas à terra não chamuscam sequer o alvíssimo floco de seda. Notando que a expansão dos gases poderia atingir o dínamo, ele previne o mal com o afastamento das válvulas situadas à popa da aeronave. Contudo, não se trata só de evitar incêndios ou explosões: a fase nupcial do aeronauta e da mecânica terá de produzir o balão dirigível.

Não foi uma lua-de-mel num céu de anil semelhante noivado. Houve decepções e desastres, ventos e nuvens, erros e quedas, mas a vontade sobrepairava aos contratempos, uma estrela fiel tinha sempre o melhor dos sorrisos para Santos Dumont.

Jovem, rico, sem prole, casando o gênio inventivo à mecânica incerta, o amável celibatário fizera o mais perigoso dos casamentos – um casamento no ar –, e dessa união aérea, mas fecunda, nasceram-lhe quatorze filhos, como ele próprio chamava os seus balões em Paris. Nem todos os filhos parisienses de Santos Dumont, batizados com algarismos pelo seu criador, nasceram ditosos e perfeitos. Os números 1 e 2, oblongos, emurchecido o primeiro no ensaio de Paris, desarticulado o segundo no temporal de Nice, quase lhe custaram a vida. Mas o n.o 3, ovóide, pairando sobre os tetos, sobre as torres, suscita a fundação do Aeroclube, e o n.o 4, um aparelho fusiforme, conquista os juros do prêmio oferecido por Deutsch de La Meurthe ao aeronauta que, em trinta minutos, fosse de St. Cloud à Torre Eiffel, contornasse o monumento e volvesse ao ponto de saída. E o filho n.o 5, gerado para maior celebridade, que vai fazer com a primeira viagem atmosférica, em ida e volta, o orgulho do pai de tantos outros balões imperfeitos ou insubmissos.

Teve um prólogo de romance e um epílogo de tragédia o famoso balão. Em 12 de julho de 1901, ao amanhecer, destaca-se de Longchamps, paira em círculos breves no clarão do nascente, evolui sobre as usinas do bairro de Puteaux, acolhido com estridor pelas sirenes em festa, volta ao local de partida. Vitorioso, mas insatisfeito, revendo o prêmio Deutsch, como um lampejo de ouro no ápice de ferro da sua pirâmide –, Santos Dumont circum navega a Torre Eiffel no mesmo dia e retorna sem dificuldade a Longchamps. Estava assim resolvido o problema do mais leve que o ar.

Não era possível, todavia, colher o prêmio Deutsch na ausência da Comissão técnica do Aeroclube. Entre as aclamações universais, perante a Comissão, o n.o 5 ainda contorna duas vezes a Torre Eiffel, mas um acidente o imobiliza, outro o despedaça, por ocasião do regresso. Dependurado à quilha por algumas cordas, em seguida ao beiral do teto de um prédio, que era de quatro andares, Santos Dumont salvou-se milagrosamente, com auxílio dos bombeiros de Paris. Aconselharam-no a desistir de outras ascensões. Tenazmente, porém, o aeronauta construiu o aparelho n.o 6, que foi o conquistador flutuante do prêmio Deutsch, em 19 de outubro de 1901.

Na tarde magnífica de outubro, coalhados de povo o aqueduto do Avre e as ribas do Sena, desliza o triunfador no seu polígono aéreo, de St. Cloud à Torre Eiffel, contorna o monumento, regressa por Auteuil, vitoriado pela turba do hipódromo, e repassa, enfim, sobre o ponto de partida, ao cabo de 29 minutos e 30 segundos. O tempo oficial da prova era de 30 minutos. Santos Dumont vencera. No delírio da multidão o próprio Deutsch de La Meurthe bradava ao herói: “O senhor ganhou o prêmio”.

Sim, ele ganhara o prêmio e os seus juros, trazendo no dirigível, como signo, a flâmula em que fora inscrita, como legenda, uma variante camoniana, – Por céus nunca dantes navegados. Apenas, verificando-se o que sucede com freqüência aos iates de regata e aos cavalos de corrida, o n.o 6 havia ultrapassado a meta com velocidade irreprimível do percurso. Mas tocara, precisamente, a linha de chegada, em 29 minutos e 30 segundos, limite inferior ao tempo oficial. Para virar de bordo, para descer no aeródromo, o vencedor consumira, depois disso, minuto e meio. Foi com esses noventa segundos de evoluções independentes do horário prefixado, alheias ao objetivo do concurso, que os invejosos e competidores, alguns deles juizes da própria Comissão do Aeroclube, tentaram desluzir ou mutilar a esplêndida vitória, declarando excedido o tempo oficial por Santos Dumont.

Era um fato a dirigibilidade dos balões, uma das festas galantes de Paris a sua glória, desde a manhã de 12 de julho de 1902. Sábio ou poeta, guerreiro ou estadista, ninguém foi mais popular do que ele no cenário mais ilustre da vida contemporânea. Não obstante após a luta pela glória, devia ferir-se a luta pelo direito, contestado a Santos Dumont por alguns rivais, membros da comissão julgadora. Dentro e fora desta, exasperados pelo triunfo, mobilizavam-se antipatias contra o seu merecimento. Parville e o conde de Dion, do Aeroclube, um dos irmãos Renard, da Academia Militar de Meudon, os engenheiros Surcouf e Sureau, a Nature e a Revue Scientifique, abertamente os homens, insidiosamente as revistas, sustentavam nesse período as hostilidades. Ao lado de Santos Dumont, porém, estava uma força invencível no mundo. Estavam com ele a inteligência, o entusiasmo, a bravura, a justiça do maior povo da terra – o povo de Paris. Valoroso amigo da sua causa, o príncipe Roland Bonaparte, presidente do júri, declarou que, se fosse necessário, levaria a demanda aos tribunais, argüindo a suspeição de três julgadores da Comissão do Aeroclube. Houve na espécie um parecer decisivo, o de Georges Devin, advogado emérito, do Conselho de Estado e da Corte de Cassação. O parecer concluía: – “Santos Dumont ganhou juridicamente o prêmio Deutsch” – e o prêmio foi-lhe atribuído, tecnicamente, pelo voto dos sábios do Instituto. – “Foram eles que me salvaram”, – dizia Santos Dumont, ao recolher os 129.000 francos. Na realidade, o voto dos sábios do Instituto salvara nessa emergência, além do seu direito, o interesse humano de outros seres, – algumas dezenas de operários, artífices dos balões ideados pelo vencedor, e alguns milhares de pobres da cidade de Paris, aos quais Santos Dumont, até nisso brasileiro, destinou elegantemente os 129.000 francos do prêmio Deutsch.

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E o segredo genial do aeróstato n.o 6? Haveria no seu bojo a complicação enigmática dos monstros dirigíveis? Não. O enigma é próprio do labirinto e Santos Dumont adorava a simplicidade, a transparência das soluções ao ar livre. Emmanuel Aimé, secretário do Aeroclube de Paris, já explicava em 1901 aos curiosos: “O brasileiro não fez mistério algum do seu sistema nem mesmo lhe requereu o privilégio. É simples e engenhoso.”

Nada mais simples e mais engenhoso, com efeito, que o seu navio aéreo, impermeável, de seda branca do Japão, lustrada a óleo de linhaça, medindo 33 metros de comprimento por 6 de altura. Geometricamente, uma elipsóide alongada com extremidades cônicas. Dinamicamente, um aeróstato enfunado pelo hidrogênio, mas propelido, sob o governo do leme, pelas duas pás de alumínio da hélice, diretamente ligada à árvore do motor de petróleo.

A escolha desse motor, aprovada por Edison, foi o começo da revelação dumontiana. Se o dínamo a vapor, de Henry Giffard, e o elétrico, de Tissandier, haviam falhado na aeronáutica, Santos Dumont encontraria as duas soluções aerodinâmicas, no primeiro decênio do século XX, com o emprego do motor a explosão. Descobrira-lhe o funcionamento perfeito no ar, suspendendo o triciclo da corrida Paris-Amsterdã num ramo do Bois de Boulogne; modificara-lhe depois a estrutura, pessoalmente, na oficina da rua do Coliseu. O motor possuía agora quatro cilindros, em vez de um só, deslocava a força de 20 cavalos, e eram notórias as suas qualidades: redução de peso, acréscimo de força, ausência de fagulhas.

Para manter o balão sem uma ruga, como se fora a pele de um tambor, compensando as variações internas do volume de hidrogênio, Santos Dumont ajustou-lhe ao próprio tecido o balonete, alimentado pelo tubo, que o ligava à bomba de ar, situada na quilha. Para lhe esvaziar o bojo no caso de perigo, acrescentou-lhe à válvula de segurança dois remendos embutidos na seda (panneaux de dechirure), que ele podia arrancar, instantaneamente, rasgando mais duas saídas ao hidrogênio.
Dependurado à parte inferior do balão por sólidas cordas de piano, um aparelho novo substitui a clássica barquinha. É a quilha, onde o navio aéreo tem o seu leme, o seu motor, a sua bomba de ar, os acessórios, entre os quais manobra o Capitão num cesto, de vime. Suspensos à proa e à popa, dois sacos de lastro compõem o sistema dos pesos móveis, corredios em vara de bambu, que lhe permitem deslocar o centro de gravidade, fazendo subir, descer ou equilibrar-se o balão, servido por mais um peso dianteiro e movediço – o guide-rope.

Acionando todos esses dispositivos por meio de cordéis, um homem franzino e ágil, Santos Dumont, realiza nessa engrenagem, como Liszt nas teclas e nos pedais do órgão-piano, ascensões e descidas de escala aérea, variações cromáticas de aerotécnica. Só, dedilhando as cordas do instrumento, ele singra os ares tranqüilos, em vôo abaixo de 300 metros, ao impulso do leme; ausculta e vigia sem cessar o dínamo, que o ameaça com as suas flamas, o seu rosnar; mantém a rigidez inflexível do balão, acudindo a bomba pneumática e enchendo o balonete: corrige o desequilíbrio da marcha ascensional ou suprime, o excesso de hidrogênio pelo jogo das válvulas; combina o manejo do guide-rope, a deslocação dos pesos-móveis, e a economia do lastro aos diversos problemas de altitude, velocidade e pressão interior do aeróstato. É no complexo de todas essas operações, todos esses acordes, que se lhe desdobra a sinfonia heróica, e nesta sinfonia azul, n.o 6, fora bastante um defeito de execução para fulminar o compositor. Mas a natureza apropriara Santos Dumont à complexidade, à finalidade mecânica do seu invento, dando-lhe um corpo ligeiro e esbelto, sangue frio, olhar penetrante, ouvido excepcional, tato infalível, músculos rijos, nervos de aço, a coragem tranqüila e a decisão instantânea dos fortes.
Emigrando para Mônaco, e aplaudido em novas ascensões pelo formigueiro humano, que negrejava desde os terraços de Monte Carlo até a orla da Condamine, o triunfante n.o 6 acabou nas ondas do Mediterrâneo. Fecundamente, o inventor celibatário ainda teve oito filhos aéreos, depois do náufrago, mas nenhum deles conseguiu esplendor semelhante para o seu número de ordem. Vestiam-se de seda, vagavam pelas alturas como boêmios do ar, dissipadores de gás, esquecidos da glória, e a inquietação desses efêmeros acabava sem eco e sem brilho.

Das oito aeronaves somente uma, a de n.o 9 – La balladeuse – veio destinada à mesma evidência do seu irmão, conquistador do prêmio Deutsch. Era uma pequena aeronave de passeio, que viveu a mais alegre, a mais ruidosa, a mais brilhante das vidas parisienses. Fazia pontualmente o corso no Bois; freqüentava as corridas em tardes luminosas; descia à porta de casa na Avenida dos Campos Elíseos, com o seu papá Dumont. Foi admirada por 20.000 soldados e 200.000 espectadores na revista militar de Longchamps; elogiada pelo Ministro da Guerra de França em 14 de julho de 1903. Dançarina dos ares, la balladeuse arrebatou certa vez no seu giro elegante um pequerrucho norte-americano; outra vez, confiou-se ao governo aéreo de uma lindíssima cubana – une jeune et très jolie Cubaine, relembra Santos Dumont, justamente desvanecido, por haver pousado no leme da sua nau de seda branca essa mão de sílfide morena. Enfim, la balladeuse era uma feiticeira, cujo vestido-balão deixara pelas nuvens um perfume de rosa das Antilhas.

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Inesperadamente, ao cabo de longa pausa, houve na descendência mecânica do Pai da Aeronáutica e da Aviação um híbrido glorioso, o 14 bis, conjunto de aeróstato e aeroplano, do qual se desprenderia o último com a solução do vôo para os homens. Nesse conjunto realizou Santos Dumont várias experiências, em Bagatelle, adaptando-se ao novo aparelho. Desfez-se do balão, apenas, quando já era senhor das manobras no seu biplano.

Havia três anos, ele abandonara a oficina e os dirigíveis no parque de St. Cloud. Todos lhe diziam: “O senhor não faz nada; está sempre a dormir no seu quarto.” Santos Dumont sorria, indecifrável, porque aprendera a ouvir e a calar, no espaço infinito e deserto, lidando com as suas esfinges aladas. “Sempre a dormir...” Que inverdade! A grande inteligência criadora jamais adormecera; isolara-se apenas dos homens, evoluindo, como se fecha na crisálida o mistério do vôo para a magia das asas rutilantes. Desde 1903 a 1906, repetem-lhe os amigos: “O senhor não faz nada.” Entretanto, fechado com algarismos e desenhos, o inventor silencioso estava fazendo tudo.

Foi primeiramente, em desconforme biplano, um vôo incompleto de pássaro aturdido: não mais de 60 metros. Perdida no ensaio a direção, o aparelho caiu. “Apenas um salto” – comentam alguns espectadores, mas o aviador, sentindo que voara, ansiosamente refaz o aparelho, teimosamente gira ao nível do solo, para o governar sem hesitações, e em 23 de outubro de 1906, no campo de Bagatelle, perante a comissão científica do Aeroclube, vence a distância de 250 metros nos ares, demonstrando a possibilidade humana do vôo. Santos Dumont resolvera o problema do mais pesado que o ar.
Minuto incomparável na cronologia da navegação aérea, fixado por toda a imprensa do mundo, toda a lembrança dos homens. Um ano depois, o aeroplano Farman executa a prova de ida e volta; Bleriot atravessa a Mancha. Dois anos mais tarde, alegando o ineditismo das experiências feitas nas dunas de Kitty Hawk, em Carolina do Norte, contra a publicidade solar do vôo de Paris, os irmãos Wright disputam a primazia ao inventor brasileiro. Ironicamente, ao sair do seu avião, Santos Dumont pergunta à humanidade: “... que diria um Edison, Graham Bell ou Marconi, se depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, outro inventor se apresentasse com uma melhor lâmpada elétrica, telefone ou aparelho de telegrafia sem fios, dizendo que os tinha construído antes deles.”

Por esse tempo, nasceu-lhe uma filha graciosa, voadora minúscula, que os parisienses, classificando-a no reino dos insetos de Fabre, pela diafaneidade, pela mobilidade vesperal, chamavam “Libellule” ou “Demoiselle”. No breve aparelho, em que ele voava sobre Paris, ao cair da tarde, com o seu record original de 20 quilômetros e a sua provisão de gasolina para 15 minutos, o aviador Santos Dumont rematou o longo curso de piloto aéreo. Um decênio de estudos e emoções, trabalhos e perigos, havia-lhe deixado os nervos exaustos, e ele pôs fim ao prelúdio real das viagens maravilhosas do nosso tempo. “Demoiselle” chegara num surto feliz ao seu aeroporto: as asas transparentes da libélula, imóveis, faiscavam na incandescência da sua glória.

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Jaurès viu em Santos Dumont o primeiro homem da aeronáutica: disse mesmo que só avistara a sombra dos homens nos balões, antes dele, tentando em vão dirigi-los. Melhor teria dito: a sombra dos homens nos ares, tentando em vão dominá-los. Porque os mitos, as lendas e os fatos cercam o inventor brasileiro de aparições, de alegorias, de ancestrais gloriosos – todos os símbolos e todas as esperanças do vôo humano.

Ícaro desperta com ele do sono tenebroso e milenário, ascende outra vez ao sol, deslumbrado por essa audácia, esse renascimento, em que as asas desfeitas se recompõem, as asas sangrentas se levantam, as asas vencidas revoam e triunfam. Simão, o mago, voador neroniano do Fórum, demônio esvoaçante no seu carro de fogo, pode chamar-se também Legião, desde as tentativas da Idade Média, com o desastre de um remoto beneditino ou de um vago sarraceno, até ao martirológio da aeronáutica moderna.

Os fantasmas adejam, recaem, a exemplo de Bautista Dante, de Perusa, no final do século XIV. Alguns não se desprendem sequer da terra firme: apenas calculam, investigam, descrevem, como Leonardo da Vinci, no começo do século XVI, analisando o vôo dos pássaros, concebendo o helicóptero e o pára-quedas, sem possuir ainda noções fundamentais de mecânica, as leis de composição das forças. Pensava-se até então, exclusivamente, no artifício e no impulso da máquina volante. Cento e quarenta e cinco anos defluem para os sonhadores, para os espectros da aviação, quando o jesuíta italiano Francisco Lana-Terzi, em 1670, num trabalho relativo as propriedades físicas do ar, idealiza uma barca suspensa de quatro globos de cobre, ocos, nos quais seria feito o vácuo, mas a barca ideal nunca chegou a navegar com esse irmão de Loiola, que foi levado como feiticeiro ao julgamento do Santo Ofício. Já estavam assim definidos os dois problemas: subir na atmosfera como sobe a coluna de fumo; voar nas alturas, como voa o pássaro em liberdade.

Se o Padre Lana, copiado por Sturm e Lobmeir, não construíra o Navis volans, senão teoricamente, nada concluiu a análise científica, até hoje, vacilando entre os debates apaixonados e as estampas apócrifas, sobre as experiências indetermináveis do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nosso desventuroso patrício e tão discutido voador. Não obstante ápodos e escárnios dos poetastros de Lisboa, o artífice da Passarola, que era licenciado em cânones e lente de matemática, ainda logrou acolher-se à benevolência régia por doze anos, ainda foi um dos cinqüenta membros da Academia de História Portuguesa, até que em 1724, perdido o favor d’El Rei D. João V, não pode mais resistir ao embate dos ódios e acabou no desterro voluntário de Espanha. Como os pobres das vielas ou das estradas, morreu no catre de um hospital, em Toledo.

Mais venturosos do que ele, os dois irmãos Montgolfier lançam o primeiro balão vazio na praça pública de Annonay, em 1783; o segundo em Versalhes, despachando para as alturas um carneiro, um galo e um pato, que saíram galhardamente da imprevista ascensão. Já o aeróstato de Charles subira no Campo de Marte, saudado pela artilharia. Depois, com timidez, sombras humanas aparecem num balão cativo; outras, com afoiteza, perpassam num aerostato livre. O francês Blanchard e o americano Jefferie vão de Louvres  a  Calais; Pilatre de Rozier e Romain sucumbem na fogueira do seu balão, a 600 metros de altura, sobre as dunas de Boulogne. Gay Lussac, Welsh e outros sábios, acercando-se das nuvens, medem a temperatura, captam o ar, nada mais obtêm. O plano do balão de guerra, observador sem estabilidade, e o plano do balão agrícola de Arago, por seu turno, são duas outras quimeras evanescentes.

Assim revemos o infantilismo da aeronáutica no final do século XIX, no albor do século XX. Nem as barquinhas munidas de hélices propulsivas e suspensas de aeróstatos oblongos, nem as máquinas a vapor ou os dínamos elétricos modificam o problema, essencialmente porque os aparelhos continuam sem direção, movendo-se apenas em sentido vertical por descarga de lastro e em sentido horizontal ao capricho dos ventos. Permanecendo os rumos incertos,  os motores inadequados, os balões ingovernáveis, a ciência desilude-se do mais leve que o ar, temporariamente, dadas às condições da mecânica, da física e da química.

Tudo esperam das máquinas volantes, então, os amadores ou idealistas da aerotécnica. Mas, depois do serralheiro Bernier, dos seus curtos vôos pueris, no século XVII, que fazem os inventores e os voadores? São apenas tentativas abreviadas pelo infortúnio ou pela incapacidade as experiências de Bacqueville, de Blanchard, do voejante cabriolé, em que se despenha da torre de Etampes o clérigo Desforges.
Através do século XIX, ressaltam na história do vôo humano três efígies ilustres – o sábio inglês John Cayley, formulando mecanicamente a primeira teoria completa do avião; o sábio francês Penaud, que ressuscita essa teoria, seis decênios após, construindo um modelo de aeroplano, com hélice posterior, acionada por uma espiral de caucho; o sábio alemão Lilienthal, vítima da experiência n.o 2.000, à procura de um motor mais leve e de um governo mais firme. Como desenvolvimento do princípio demonstrado por Launoy e Bienvenu, em 1784, perante a Academia de Ciências da França, o helicóptero seduziu os aeronautas, e eis que se multiplicam os ensaios até à ousadia de Ponton d’Amécourt, ajustando o primeiro motor ao dispositivo helicóide. À esperança das sombras aladas, porém, não correspondem os motores a vapor, a pólvora, a eletricidade a explosão.

Destarte, cada povo enumera no campo das máquinas volantes ou dos aeróstatos infelizes os seus fantasmas: Bartolomeu de Gusmão, Júlio César e Augusto Severo, o mártir, são os nossos espectros nesse desfilar de sonhadores amortalhados pela desventura. Quantos nomes e vultos e gestos! Quantos acenos vãos ao Desejado, ao Encoberto, ao invisível gênio realizador! Entre os arrebóis do século XX, afinal, destaca-se da onda verde-rubra dos cafezais um voador brasileiro, invade o céu de Paris, lança aos povos as duas soluções aerodinâmicas. Nascera o homem-pássaro. Vinte e cinco anos depois da minúscula “Demoiselle”, com o seu vôo de 15 minutos, impossível contra o vento, possuiríamos os hidroaviões de 12 motores e 7.200 cavalos, transportando 150 passageiros, desenvolvendo 800 quilômetros por hora, e os superdirigíveis talhados em duralumínio, sobrepairantes, como palácios aéreos, à noite dos oceanos e ao nimbo das cordilheiras.

Houve quem perguntasse a Franklin, por ocasião do ensaio de Annonay, quando se elevou a primeira montgolfière: “Para que serve um balão?” Franklin sorriu, por sua vez indagou: “Para que serve uma criança?” Essa criança estava no berço em 1901: mal podia mover-se; ainda não podia orientar-se; e uma variação mais brusca da aragem lhe transtornava o equilíbrio. Santos Dumont refez-lhe a imagem, avigorou-lhe para as alturas o coração, deu-lhe o saber da aeronáutica e a ciência do vôo, abriu-lhe às duas formas o reino do espaço. E a criatura infantil, quase informe, desorientada no ar, sulcou as chamas da grande guerra, cresceu, fez-se o gigante “Zeppelin”, o “Akron”, o “Dox”, correio das nações, vedeta dos litorais, vigia dos exércitos e das esquadras, inimigo dos baluartes de rocha e de ferro, dragão impelido contra as potências flutuantes ou submarinas. É um poder que desconhece muralhas, desdenha ciclones, e o navegante dos ares, como o voador-combatente, ainda não saiu da primeira idade.

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“Um autor – já o disse Mr. Abel Bonnard – está nos seus livros ou não está em parte alguma.” Se o acadêmico Santos Dumont legou à posteridade o volume francês – Dans l’air – e o opúsculo denominado – O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos, – noticiando episódios biográficos, resumindo impressões aeronáuticas, nesses dois escritos aéreos não está, propriamente, um autor literário, mas o autor de quatorze balões e dois aeroplanos vitoriosos. Essa literatura tem a singeleza dos diários de bordo. Na sua atmosfera sem clarões ofuscantes agrada pela facilidade, rapidez e sugestão de alguns trechos, heroicamente vividos. A verdadeira obra-prima de Santos Dumont – obra que não foi escrita, mas foi e é publicada em vertiginosas edições, – intitula-se a conquista do ar. O estilista da aeronáutica e da aviação burilou-a no azul, caprichosamente, em ascensões ou elipses, diagonais ou espirais, volteios ou desafios, períodos tormentosos ou alígeras frases, que eram curtos vôos dourados, ao amanhecer, vôos breves e róseos, ao pôr-do-sol. Esse autor, paradoxalmente, quase não está nos livros, e está em toda à parte, acima dos livros mais belos, acima da terra e do mar, na circulação inumerável dos seus poemas, das suas tragédias, dos seus volumes de aço e de alumínio – os aviões e os dirigíveis.

Nenhum brasileiro foi vitoriado como Santos Dumont pela turba e pelo escol da civilização. Entre as cidades, Paris, capital do mundo, erigiu-lhe o monumento de Saint Cloud e a coluna de Bagatelle; vai dar-lhe o nome a um boulevard. Entre os homens, Edison, o gênio maior da América inventiva, saudou efusivamente nele o bandeirante dos ares. Entre as mulheres, Isabel, a Redentora, prendeu-lhe ao pulso a medalha de ouro da sua fé. Quantas celebridades o engrandeceram! Quantas multidões o aclamaram! E o Brasil, cujo renome floriu no prestígio da sua universalidade, não lhe pagou até hoje a dívida monumental.

Ele foi simples, afável, modesto; por isso, talvez, o mais gentil dos super-homens, quando os homúnculos são arrogantes como os pavões ou estrepitosos como as gralhas. Sem aparato, não obstante o flamejar de tantas insígnias e o estrugir de tantos louvores, a sua vida técnica e a sua vida moral, translucidamente, exemplificaram a modéstia aos soberbos e a continuidade aos volúveis, o desinteresse aos egoístas e a prudência aos incautos, o senso prático aos devaneadores e o senso econômico aos dissipadores, a paciência aos insofridos e a reserva aos indiscretos, a coragem para os atos decisivos e a confiança de todas as horas num alto signo. O voador predileto das auroras de Chantecler, das manhãs de Paris, guardava na própria timidez o recato da perfeição. Bem-fadado pelas origens, aprimorou-se lhe o caráter pela floricultura dos sentimentos cristãos.

Ele foi uma das almas brasileiras mais sensíveis, mais vibrantes, mais encantadoras do seu tempo. O amor filial transparece-lhe com a pureza e o fervor de um culto na veneração à memória do pai. O amor ao Brasil, com a mesma fidelidade, vai desde o batismo parisiense do primeiro vôo até à súplica dirigida ao governo, em 1916 e 1917, para fundar neste país uma escola de aviação, um corpo de aviadores. A despeito do temperamento retraído, fala em Santos Dumont o patriotismo revoltado: “...Quando a Argentina e o Chile – dizia – possuem uma esplêndida frota aérea de guerra, nós, aqui, não encaramos ainda esse problema com a atenção que ele merece.”  Em todas as circunstâncias, era bem o espelho da raça, o orgulho da pátria. Vencedor num pleito renhido, abandonava aos seus operários e aos pobres de Paris o ouro do prêmio Deutsch; ainda em outro litígio, reivindicando a primazia do vôo mecânico, saudava espontaneamente o valor dos antagonistas. Companheiro fraternal, repartia com Bleriot e Farman a glória das suas invenções; entusiasta, celebrava a imensa proeza atlântica dos aviadores lusitanos Sacadura Cabral e Gago Coutinho, a viagem homérica dos aviadores franceses Costes e Le Brix. É piedoso e altivo o seu gesto, como o dos heróis da cidade ateniense, quando ele depõe num Campo Santo de asas fulminadas os seus troféus e emblemas, revendo no martirológio dos voadores o progresso da aviação.

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Santos Dumont, arauto do vôo, foi o amigo da paz. Desde 1908, le petit Santos, como os parisienses o tratavam, deixa o governo dos aeroplanos, mas conserva a preocupação das alturas, e acompanha enternecidamente os progressos da arte de voar. Em 1914, porém, vê com espanto que o firmamento do seu ideal se enevoa, e bandos de pássaros humanos esvoaçam, destruindo as vidas e as obras humanas. Vê bombardeados por aviões os lares indefesos, os hospitais de sangue. Nos fossos por onde rastejam ou na espessura de aço das torres blindadas, os combatentes ainda se resguardam, e ao poder ofensivo dos ares opõem a violência do canhoneio. Mas na ruinaria dos muros sem ameias, dos tetos sem reforço, os aviões despedaçam criaturas inermes – as mulheres, os velhos, as crianças – ou na insônia dos leitos sem repouso mutilam de novo os feridos, arrancam à dor suprema da morte um grito novo de agonia. Santos Dumont, chauffeur de um general francês, no começo da guerra, vê tudo isso num relâmpago, através do sul da França. Doravante, para ele, a tragédia interior tem o seu princípio, não mais terá o seu fim, senão depois da morte, se morrer é dormir, sem pesadelos, no álveo de um rio sem vibrações – o esquecimento.

Quanto mais alta a glória, desde Prometeu, maior o sacrifício. Em verdade, sob as aparências da ventura e da riqueza, Santos Dumont personificava as eternas contradições da máquina e do homem, trazendo consigo o drama ocidental da raça branca, todo o paradoxo e toda a angústia de uma civilização, que se aperfeiçoa mecanicamente, para decair humanamente, que se transfigura com a ciência e a indústria, para se abismar na rivalidade e na carnificina.

O prestígio de cidadão universal compõe-lhe à vida uma exterioridade invejável. Ele viaja, discursa no Aeroclube de Paris e no Aeroclube da América, gentilmente sorri aos novos, que o cingem de mocidade e entusiasmo. Nas alamedas de Hyde Park ou nas altitudes da cordilheira dos Andes, nos jardins de Luxemburgo, ou na vizinhança da catarata de Iguaçu, através do mundo bravio ou culto, ressoante de aplausos, Santos Dumont percorre o mesmo caminho triunfal. Por uma sorte de heliotropismo, cada vez mais deseja e procura o sol, fugindo alternadamente ao inverno dos trópicos e ao inverno da Europa. Aquecida num banho de luz vernal, trabalha a sua inteligência; embebida na claridade, a sua imaginação rebrilha, concebendo o transformador Marciano, para ajudar na escalada os alpinistas, ou o individualismo soberano do vôo, o aparelho Ícaro, tantas vezes sonhado, tantas outras desfeito, com que pudéssemos ligar aos ombros duas asas e romper os ares, voando e zumbindo em torno da rosa dos ventos – os homens como negros moscardos, as mulheres como novas libélulas no azul.

Habitando a fazenda natal de Cabangu ou o ninho petropolitano “A Encantada”, o inventor compraz-se em multiplicar ligeiros inventos domésticos na alegria da natureza circundante. Ao redor de Santos Dumont, em Petrópolis, os cravos florescem como príncipes da serrania, sobre os quais se desfolha a coroa de ouro dos ipês. Mas o pai da aviação, príncipe do ar, não ama só as flores na heráldica da terra brasileira. A sua bondade envolve, como a da terra-mãe, seres e cousas, a velhice e a infância, os rebanhos e as árvores, os destinos encadeados ao sofrimento e os pássaros livres da floresta. Na sua residência de João Aires, todas as manhãs, enchia-se para as aves uma concha de sementes, erguida ao topo do mastro, em que ele hasteava a nossa bandeira, circundada pelos vôos, festejada pelos cantos da aurora.

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Tanta delicadeza de sentimentos o predestinava aos maiores suplícios do coração. No primeiro decênio do século XX, em Paris, Santos Dumont e os seus companheiros do Aeroclube, precursores da navegação aérea, nunca imaginaram que os aeroplanos e os dirigíveis se tornassem poderosas armas de guerra. O vôo humano deveria fechar-se, para esses idealistas, no amplexo moral de todos os povos, através dos mares e acima das fronteiras, sob a proteção luminosa dos Gêmeos. Se o isolamento fora, entre os homens, a origem social da guerra, veriam os homens acelerada a fraternidade com a velocidade. Grande ilusão! Bem poucos eram ainda os navios aéreos da paz, tardios ou custosos, e apresentavam-se já por centenas, por milhares, as aeronaves construídas para a escolta e o serviço da morte.

Aos olhos de Santos Dumont cumpria-se o vaticínio do Padre Lana, roupeta negrejante da aviação, teorista da barca suspensa de quatro esferas ocas de cobre, que enumerava no século XVII os bombardeios, os incêndios, as catástrofes possíveis, se o engenho aéreo medrasse, e dizia constritamente, receoso do próprio invento satânico: “Deus nunca permitirá que tal máquina tenha êxito... para evitar muitas conseqüências, que alterariam as relações civis e políticas da humanidade.” Isso foi escrito em 1670. Duzentos e trinta e seis anos após, dir-se-ia que a divindade permitira a Santos Dumont essa realização, confiando no seu humanitarismo, na sua filantropia, mas dela se apossaram as energias do mal, e as visões temerosas do Padre Lana sobrepairam à nossa época, difundida nos ares a guerra explosiva em guerra química.

Vede, por exemplo, como o inventor brasileiro, angustiado, escreve em 14 de janeiro de 1926 ao Embaixador do Brasil na Liga das Nações: “Aqueles que, como eu, foram os humildes pioneiros da conquista do ar, pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos, do que em lhes fornecer novas armas de combate.” Ainda uma vez, dramaticamente, a saudação aos aviadores Costes e Le Brix dá um lampejo de revolta à sua cólera: “No começo deste século, nós, os fundadores da Aeronáutica, havíamos sonhado para ela um futuro pacífico e grandioso. A guerra – que fazer? – apoderou-se de nossas trabalhos para fins de ódio fratricida.” Essa idéia fixa não o larga, acentuando-lhe a fobia dos automóveis, dos auto-ônibus, de todos os veículos nutridos a gasolina, mais ou menos destruidores do homem, diferenciados por metamorfose em verdadeiros monstros: o tank arrasador, golfando metralha; o super-avião de combate, despedindo raios.

Não tardaria o desfecho crepuscular para o voador das horas matinais. Sobreveio-lhe o final, tragicamente ainda, entre os anseios e as convulsões da guerra civil. Esquadrilhas aéreas semeavam o terror na sua pátria e Alberto Santos Dumont fechou os olhos à visão dolorosa, à derradeira visão aeronáutica em face do mar, gravadas na retina morta, como num diamante enublado por uma lágrima, as imagens acesas do horizonte, que os vôos inumanos conflagravam. Universalizada pelo rádio, colhida pelas antenas, a notícia fatal varou no silêncio da noite, feriu na surpresa da onda hertziana o coração do Brasil.

Aos dezoito anos de idade, Santos Dumont aprendera, ouvindo o pai, que o futuro do mundo está na mecânica. Por nosso turno, considerando-lhe a vida e a morte, aprendem que o futuro do mundo não está no império da mecânica, mas na supremacia da moral. Se o mecanismo deu a humanidade o corpo gigantesco, de que fala Bergson, e esse gigante se fez alígero como um pássaro, transfigurado pelo inventor, Golias não será por isso mais belo, menos feroz, entre as constelações ou entre os vermes, sem o progresso harmonioso da alma, relativo à grandeza das suas formas. Deram-lhe asas o Pai da Aviação; falta-lhe ainda o vôo espiritual. Só a idéia cristã, no decorrer dos séculos, poderá engrandecer-lhe a consciência para outras adejos, sob um resplendor semelhante ao da perfeita Assunção, colorida pela fé ingênua e criadora dos mestres da Renascença.

Querendo fazer do próprio arco de triunfo um arco de aliança entre os povos guerreiros, Santos Dumont esperou, em vão, no amplo círculo de névoas, o pássaro azul da lenda, o íris sobre a montanha, e apenas viu nas brumas do seu ocaso que os abutres voejavam sobre os cadáveres. Acima dos vôos macabros, porém, flameje o nosso ideal na sua esperança e humanize na sua audácia o lema dos aviadores contemporâneos: mais alto, mais longe, mais veloz. Mais alto, para a estratosfera, com a ciência de Picard. Mais longe, para os desertos do pólo ou as montanhas da lua. Mais veloz, até onde? Roçando quimericamente os véus, a cabeleira, os anéis dos corpos astrais, desata-se o vôo sidéreo dos romances de Wells, das fantasias de Maeterlinck, das estrofes de Luís Delfino. – “Não se irá a uma estrela?” – indagava o poeta brasileiro, cosmeticamente, desvairado no turbilhão dos sóis ofuscantes, na espiral das nebulosas indefinidas. Se alguém pudesse atingir o divino estelário com envergadura de águia mecânica, não deveria levar somente as estrelas o impulso dado pelo nosso compatriota aos voadores humanos, mas também a sua miragem de fraternidade universal.

Santos Dumont... Ainda longe da paz, longe dos astros, ouvimos-lhe o nome através das cidades tumultuosas, donde ressurgem gigantes de aço, modernizando a mesma ambição, que se petrificou e aluiu na arquitetura da lenda bíblica. Santos Dumont, libertador de asas inumeráveis – as asas invisíveis do semideus adormecido ou acorrentado no homem... Com a sua glória voa e revoa o ideal soterrado nos destroços lendários de Babel. A empresa quimérica tornou-se o emblema contemporâneo, símbolo da nossa impaciência, jungida ao planeta, querendo violar o mistério infinito. Sob a fuga dos aviões ressoa a terra, como se fosse um orbe de cristal, e em vôos, pela atmosfera, e em ciclos, pela história, o alado gênio transluz na explosão de todos os dínamos aéreos, no arranco de todos os pássaros humanos, que se elevam ou se despenham com o mesmo vigor e a mesma febre da alma precipitada em abismos, hoje, para ascender outra vez, amanhã, no eterno desafio dos heróis aos céus.