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Discurso de posse

Senhores acadêmicos,

A Cadeira que venho ocupar tem, para o meu caso, além de sua imensa significação cultural e moral, dadas as glórias imortais que tanto a ilustram, uma significação particular não menos tocante.

Nela sentou-se Paulo Setúbal.

Paulo Setúbal, para mim, realizava a beleza a dois modos: como amigo e como escritor. Ele era o meu escritor, não porque fosse o meu amigo. A amizade, por mais fraterna que seja, não nos faz descobrir escritores. Muito ao contrário, os críticos que o digam, cria uma situação terrível entre nós e os nossos amigos que dão para escritores ou poetas e que brigam conosco quando saltam pela porta da amizade adentro, num dia de muita festa, e não pela porta da admiração, num dia que tanto pode ser de festa como de lágrimas... Não há amizade possível, embora dotada de todos os recursos humanos de indulgência, que conspire em favor da admiração quando esta não se justifica, não se impõe vitoriosamente por si mesma. Porém, não há nada que mais conspire em favor da amizade do que a admiração, quando as duas se encontram juntas; isto é, quando o escritor nos apresenta o amigo.

O amigo escritor vive em desencontros insanáveis com a nossa sensibilidade. O escritor amigo é um amigo que sempre se encontra conosco, embora através de todos os disparates de tempo e de lugar.

Quando estou triste, leio Musset. Se a minha tristeza tem um sabor português (há uma tristeza para cada terra) recorro ao Antônio Nobre que é mais chegado à intimidade de minha raça. Quando estou áspero, exaltado no meu apego à terra, leio Euclides de Os Sertões. Quando necessito de mocidade para meu espírito, leio o velho João Ribeiro nacional ou o velho Bernard Shaw estrangeiro. Quando fico meio céptico, que fazer? Sirvo-me do Anatole dissolvente para dissolver em água-de-rosas o meu cepticismo. Quando me ponho a brincar com realidades mais sérias, leio o incrível Wells. Quando quero escarnecer dos homens, leio Voltaire. Quando estou farto de artifício literário e procuro maior soma de verdade humana e profunda, leio Cervantes. Quando me enfastiam as verdades correntes ou os conceitos usuais da vida, agarro-me a Chesterton. Poderia fazer o contrário: ler Voltaire ou Juvenal quando me sentisse triste e Musset ou Antônio Nobre (ou o nosso Rodrigues de Abreu, tão humilde na sua desesperança) quando me sentisse alegre. Mas não. O mal cura-se com o próprio mal. O bem paga-se com o próprio bem. A estante de minha sensibilidade é feita de momentos. E cada escritor tem, aí, o seu momento próprio e inevitável. Também, quando quero ser simples ou ser eu mesmo, expulso essa gente toda do meu convívio. Abro a janela que dá para a vida e restabeleço, como disse alguém, as minhas relações líricas com a Natureza. E faço de cada dia uma página branca. E faço de cada noite uma reticência de estrelas...

A essa lista poderia eu acrescentar agora: quando penso nos destinos de minha Pátria, entre os escritores que mais leio está Paulo Setúbal.

Paulo Setúbal ocupa, portanto, em minha sensibilidade quotidiana, um lugar permanente. E, na estante que dedico aos escritores de cada momento, o momento mais bonito: aquele que reservo para os meus exercícios de sinceridade.

Um silêncio súbito, depois de uma festa

Ao tomar posse desta Cadeira, tenho diante dos olhos a sua silhueta loura, que era o seu encanto pessoal. Relembro o colorido de sua prosa que era interjetiva e ágil, nunca reticente; o seu espanto, que era o sinal de sua criancice em face das coisas que sempre lhe pareciam “nunca vistas”, desde as mais fabulosas até às mais humildes; o seu “saber contar” que era uma espécie de fabulário vivo, um desenho animado em que o movimento cinemático se completasse com um lápis de cor; a sua bondade tipicamente brasileira, tão original que só existiu porque ele existiu; o seu coração, onde nunca se chamou pela alegria que ela não respondesse “presente”; o seu entusiasmo, que era um incêndio; o seu amor pelas coisas do Brasil, que era o traço mais agreste da sua sensibilidade; a sua simplicidade democrática, que era instantaneamente fraterna e acolhedora; a sua alegria de viver, que era uma festa permanente; a sua inteligência generosa, que era o caso único do escritor que exultava mais com o triunfo alheio do que com o seu próprio triunfo; a prodigiosa inquietação da sua curiosidade, que era o seu Currupira interior. E o seu barulho festivo para falar? A palavra era o seu meio direto de dizer as coisas. Nisto ele foi também diferente de todos nós, que encontramos na palavra o nosso inimigo número um, toda vez que somos sinceros. O silêncio e os grandes homens silenciosos!, exclamava Carlyle; fora preciso que lhes erguêssemos altares de adoração universal. “Se quiserdes ser sinceros para com alguém, calai-vos”, disse o pensador do Tesouro dos Humildes. Tem-se a impressão, realmente, de que a palavra foi inventada para evitar a coisa imensa que seria uma criatura impossibilitada de mentir. No entanto, a verdade é que Paulo Setúbal conseguiu desmentir esses conceitos clássicos de sabedoria. A sua alma se fez tão sincera que nunca conseguiu esconder-se por detrás das palavras. Nem mesmo das palavras bonitas que seriam tão bonitas como a sua alma. Se há os que, para serem sinceros, é necessário que fiquem quietos, Paulo Setúbal podia fazer o contrário: ser sincero quando falava. Por isso mesmo os seus romances parecem inimigos do silêncio. Ao lado de muita cor e de muita coruscação, está, em todos eles, uma espécie de pensamento em voz alta. Cada escrito seu não podia deixar de ser o seu retrato, pois era a sinceridade protestando aos ouvidos da gente. Sugere a suposição de que Paulo escrevia querendo que o leitor não fosse surdo. Ou lançando mão do seu estilo gritado para que o leitor não o lesse apenas, mas também o ouvisse. Não sei se, para uma vocação tão incoercível para a palavra falada (ao ponto dele escrever falando), o silêncio seria insuportável. Só sei que Paulo seria inexpressivo quando em silêncio. É que há momentos e circunstâncias em que o silêncio é insuportável, em vez de merecer aqueles “altares de adoração universal” a que se referia Carlyle.

Já escreveu alguém sobre o absurdo de uma multidão silenciosa. Ao lado desse, haverá muitos outros absurdos causados pelo silêncio. O maior de todos, porém, era Paulo Setúbal em silêncio.

A casa estava iluminada. Havia lanternas de todas as cores. Mesmo à noite, cantavam todos os pássaros pensando que era dia.

Nisto, apagaram-se todas as lanternas e calaram-se todos os pássaros.

Paulo tinha morrido.

Ninguém, por isso, se conformará nunca com a sua morte, que foi um silêncio súbito depois de uma festa.

O único livro que me fez chorar

Naqueles momentos que explicam a preferência de nossa sensibilidade por certos escritores, não falei senão dos que fazem rir e dos que fazem pensar. Um livro que faça chorar é, em verdade, o mais raro de todos... Pois Paulo Setúbal escreveu, já nos últimos dias de sua existência atribulada, um exemplar dessa espécie de livro que há muito tempo o mundo não conhecia mais.

Por certo que, na estante dos nossos momentos de alegria e de tristeza, não queremos livros que nos magoem. Há umas lágrimas que machucam a alma da gente: são as lágrimas do raciocínio; verdadeiras lágrimas de sangue, choradas pelos crucificados intelectuais. Mas há outras, que lavam o espírito, como uma chuva boa lava o céu. Homem não é só “o que não chora em presença da morte”, como o daquele “I-Juca-Pirama” de que nos fala o poeta indianista. Homem é o que chora em presença dos... que choram. O verso de Horácio continua a ser exato: se você quer que eu chore, chore você primeiro. Pois bem, as lágrimas que o livro de Paulo nos faz chorar são amigas e generosas, fecundas e benfazejas. Brotam como estrelas, em silêncio. Há uma felicidade gostosa em senti-las brotar dos olhos. Não são lágrimas por obrigação. São singelas; destinam-se a provar que temos uma alma, neste mundo que está ficando sem alma. Até nisto ele foi um bom. Em fazer chorar as pessoas que necessitam de lavar a alma com lágrimas.

Chorar sem tristeza, sem filosofia. Mas pelo encantamento de limpar a alma.
Paulo escreveu o único livro que me fez chorar.

A história dos pontos de exclamação

No entanto, eu o conheci novidadeiro. Contador incorrigível de anedotas. Alvissareiro como um raio de sol. Jamais triste, encorajado.

Verdade é que a sua alegria já era comovedora. A gente pensava logo na doença que o ia minando... minando como infiltração d’água silenciosa que trabalhasse na destruição subterrânea daquela casa em festa que foi a sua alegria.

Ah! o seu modo de contar – quem não se recordará? – era o de quem tinha visto coisas do arco da velha. E mesmo quando ele nos contasse o que tinha visto no “mundo feio”, o seu modo de contar era tão pitoresco que, na linguagem do caboclo, “o feio se disfarçava tanto que quase ficava bonito”. E não se tinha tempo para dar um aparte. Ele falava como um tagarela depois de ter visto uma estrela cair do céu, mas que encantamento ouvi-lo. As menores coisas lhe mereciam a mais buliçosa admiração. “Um dia, conta Monteiro Lobato, ele amanheceu romancista histórico, e fui eu ainda o seu editor. A Marquesa de Santos só teve do meu lado uma objeção. Havia nela pontos de admiração que davam para cem romances do mesmo tamanho. Sempre foi, acentua o grande escritor de Urupês, em cartas e na literatura, uma das inevitáveis exteriorizações de Setúbal, esse gasto nababesco de pontos de admiração. Por ele, todos os demais pontos da série desapareciam da escrita, proscritos pelo crime de secura, frieza, calculismo, falta de elã. Objetei contra o excesso de pontos de admiração e consegui licença para uma poda a fundo. Cortei quinhentos. Setúbal concordou com a minha cruel mutilação; mas suspirando, e na primeira revisão de provas não resistiu: ressuscitou duzentos.”

O fato contado por Monteiro Lobato é típico.

Quando falava, porém, Paulo Setúbal não era só admirativo, porém interrogativo a mais não poder. Parecia estar descobrindo o mundo, a todo momento, com as rápidas interrogações do seu Currupira interior: a sua curiosidade.

Só interrogam assim os sábios e as crianças. Estas porque querem saber, aqueles porque não sabem ainda...

Vida inquieta

Tatuí, 10 de janeiro de 1893.

Dia de ano-bom. Devia ter sido um dia cheio de sol aquele em que Paulo Setúbal nasceu.

1898, ainda em Tatuí.

Falece-lhe o pai, quando ele contava apenas cinco anos de idade.

Família numerosa, constituída por Paulo e mais oito irmãos, desajudados de bens de fortuna. Primeiras letras na escola de seu Chico Pereira, o homem que vendeu tudo quanto possuía para repartir com os pobres.

1904, mudança para São Paulo. Matrícula no Ginásio do Carmo. Seis anos de curso, classificação do jovem estudante entre os cinco que mais se distinguiram na sua turma. 1910, Faculdade de Direito e participação intensa de Paulo na vida intelectual da época. Primeiras aspirações intelectuais em 1912. Professor de um colégio de bairro e do Colégio Arquidiocesano. Havia também de trabalhar num jornal qualquer, como crítico ou, em última hipótese, como redator. Conversa rápida com o diretor. “Pois bem, já que não há vaga na redação, aceito o cargo de revisor.” Primeiro triunfo literário com a publicação de uma poesia no jornal em que trabalhava e promoção de revisor a redator. Em 1914, bacharel em Direito. Certo dia, porém, fraco do pulmão e seis meses fora da capital para ficar curado. Mas como viajar sem recursos? Sua mãe não vacila. Viúva intemerata e santa, vende a única jóia que possuía e arranja-lhe o necessário. Quando parecia curado, isto em 1915, nova viagem. Desta vez para Lages, em Santa Catarina. Dois anos depois, de regresso a São Paulo e cheio das mais radiosas esperanças. 1922, casamento com D. Francisca, que tão bem o compreendeu e que tão carinhosamente havia de colaborar nos seus triunfos. Logo em seguida, escritório de advocacia, mas a profissão era incompatível com a sua sensibilidade. Em 1928, Câmara dos Deputados Estaduais, mas a política não o seduziu. Publicação dos seus primeiros romances históricos. Tiragens como nunca se fizeram em nosso País. Renome literário e Academia Paulista de Letras. Até que, em 1935, Academia Brasileira de Letras e Paulo Setúbal metido, como ele próprio se descreve, “em ilustre fardão verde, todo recamado de alamares de ouro”, naquela noite que foi “a sua fulgurante noite, a mais fulgurante que possa ambicionar um escritor no Brasil”.

Vida inquieta, rápida, cinematográfica.

O garoto de Tatuí

Ninguém diria semelhante coisa, mas havia, em Paulo Setúbal, um drama espiritual que só os seus íntimos conheceram.

Quando menino, correu-lhe a vida de garoto dentro de um mundo inocente e desprevenido, sem deformação.

Andou o Paulo de calça curta, brincando com moleques de todas as categorias, provindos das mais humildes camadas sociais. Reinador como todos, gostando de armar arapuca na caça aos canários, mas cumpridor de suas já árduas obrigações de menino educado na escola do dever e da disciplina. Com que surpresa de linguagem ele nos conta o caso das vacas leiteiras que lhe davam tanto serviço, quando se metiam no mato. Parece que estou vendo o serelepe louro que ele havia de ser, tocando o gado para o pasto. De repente, os animais lhe escapuliam susurucando na capoeira. E daí? Era um deus-nos-acuda para encontrá-los e reconduzi-los ao caminho. Foi por causa dessa luta quotidiana que ele resolveu recorrer, certo dia, aos bons ofícios de Nossa Senhora. Se o gado não passarinhasse mais, se não o obrigasse a andar machucando os pés nos estrepes, havia de crescer e... ser padre.

Mais um ano de desassossego, naquele ambiente sem morros, com os seus “milharais embonecados”, e o seu Chico Pereira – o pai da pobreza e da garotada de Tatuí, homem que sabia aconselhar muito bem – lembrou que o menino precisaria estudar em São Paulo. Era muito inteligente, não havia de ficar perdendo tempo em caçar canários.

E dito e feito. Vendendo, com sacrifício, o pouco que tinha, sua mãe decidiu trazê-lo para a capital.

O n.o 18 não respondeu

Na roça soubera ele a história do Cererê, do Boitatá e de outras crendices que foram o seu primeiro contacto com a alma ingênua da terra.

Na cidade, deram-lhe naturalmente as fábulas de Grimm e a história do Pequeno Polegar para ler, mas as diabruras do Saci e do Prequeté lhe pareciam mais camaradas.

Por fim, na capital, feitos os exames de admissão, tinha ele que atravessar seis anos de curso ginasial. Seis longos e divertidos anos em que a má companhia (como ele próprio diz) de outros adolescentes tanto malefício lhe causou para os sentimentos religiosos. Ouvindo conselhos dos bons maristas, de dia; de noite, pintando o sete em companhia dos pândegos. Assistindo missa, de manhã; de tarde, lendo A Velhice do Padre Eterno e outras blasfêmias de Junqueiro. Estava Paulo na idade em que se acha bonito dizer blasfêmias, bonito ser triste. O achar bonito é que, nessa altura da vida, nos atrapalham os demais sentimentos. Entre o que é bonito fazer com ostentação e o que é preciso fazer obscuramente, a gente prefere a primeira hipótese. Paulo era mais sensível ao achar bonito (fazer um discurso, por exemplo) do que ao ficar quieto (praticar um ato de contrição, por exemplo). Mas eu não acredito que ele, embora deformado pela poesia dos hereges tivesse chegado a ser anticristão. Acredito mesmo que ele, como acontece a todos nós, teria lido outras páginas tão bonitas como as blasfêmias, em resposta a tais blasfêmias. Alguém lhe teria mostrado, forçosamente, a imagem de Sena Freitas a propósito do poeta genial: “Até aí Deus prova a sua infinita misericórdia, dotando de extraordinário talento aquele que nasceu apenas para injuriá-lo e para caluniá-lo. Deus é como o sol: doura a nuvem que o tenta encobrir.” Bonito por bonito, a resposta do padre ilustre era mais verdadeira e mais comovente.

Se Paulo não optou por ela foi porque havia uma atitude literária perniciosa, que o tirava de si mesmo e o levava a ser outro.

Desencontros naturais da adolescência, que se explicam facilmente.

Terminado o curso, convidaram-no para irmão da Ordem, por ter sido um dos cinco alunos que mais se distinguiram. No dia da entrada, ao vestir o hábito de noviço, “tocado pela avassaladora religiosidade do ambiente” ficou “profundamente comovido”. Matriculado na Faculdade de Direito, o latim do Corpus Juris Romanorum despertou nele (força do subconsciente) a lembrança do Refugium peccatorum e, portanto, a promessa de ser padre, feita em menino. Certo dia tomou mesmo a deliberação de cumprir a promessa e foi falar, a respeito do caso, com o diretor do ginásio onde se formara. Levado por este à presença da autoridade eclesiástica, competente para resolver a questão sentiu novamente “os olhos embaciados de lágrimas”.

Mas os amigos, os tais das “patuscadas folionas”, escarneceram dele. Eram risadas sobre risadas, quando souberam de sua resolução verdadeiramente fora de propósito. Resultado: no dia da chamada o n.o 18 não respondeu.

Encontros e desencontros

Depois de muitos encontros e desencontros consigo mesmo Paulo Setúbal passou a residir em São José dos Campos.

Foi em minha cidade natal que ele viveu a última fase de sua vida. O ambiente pacato e pitoresco, a certeza de que a saúde era um bem precário, a maior compreensão do mundo, as horas de silêncio (um silêncio paradoxal, em meio de tanta alegria espetaculosa), tudo isso terá influído na reconquista que, aos poucos, ele vinha realizando de sua própria personalidade.

Um dia, porém, revendo papéis acumulados na gaveta, deu com os originais de um romance de costumes que escrevera havia alguns meses atrás. Não o publicara por ter reconhecido que o assunto, embora interessante (a fixação de certos vícios sociais), não era dos mais... católicos. Mas, bem pensando, que tinha arte com religião? Não era o caso, então, de entregar ao editor um trabalho que só poderia contribuir para o seu renome literário? Pois que levasse o diabo, publicaria o romance de qualquer jeito. Havia escrito muitos livros de poesia e de novela histórica, mas aquele... aquele era o melhor de todos. Mandou passar a limpo os originais, deu-lhes o último retoque e todos os pássaros da alegria lhe cantaram na alma; porém, qualquer coisa mais séria do que os pássaros lhe pespegou uma cutilada bem no fundo da consciência: aquele livro não devia ser publicado. Não correspondia mais aos seus sentimentos cristãos. O Paulo que ele havia sido nos seus desencontros espirituais consigo mesmo, isto é, o Paulo criado pelos outros, dizia-lhe francamente que publicasse o livro. Mas o Paulo que ele passara a ser, nos últimos anos de sua vida, dizia que não e que não. Só quem já sentiu esse embate secreto entre o “eu” ainda puro e não deformado e o “eu” artificial e poderosíssimo que é o produto de todas as deformações quotidianas é que sabe avaliar bem a tragédia imensa que se passou no seu íntimo, no recesso da sua consciência. Se uma voz lhe ordenava, firme: publique o livro, tenha a bravura intelectual de quem já se emancipou do terror literário, a outra voz lhe pedia carinhosamente: não faça isso. Não troque a glória de escritor pela sua íntima consciência de homem de bem.

Um sacerdote amigo, a quem Paulo consultara, achou que o romance não devia ser publicado.

A esposa solícita, que o ajudara a passar a limpo, teve a mesma impressão.

“Mas qual, não dei tento à minha consciência, nem ao que dizia minha mulher, nem às palavras assentadas do padre amigo. O homem velho vencera o homem novo. Vencera estrondosamente: eu tomei a deliberação firme de entregar ao meu editor os originais do meu livro.”

Como compreendo bem o drama espiritual de Paulo Setúbal!

À medida que a gente vive, teria pensado ele, vai limitando cada vez mais a personalidade. Em vez de fazê-la aparecer, vai obscurecendo a sua fisionomia. Os traços físicos ajudam esse trabalho de limitação e complicação. Cada dia que passa cria um limite, e cada ano ergue uma barreira diante da nossa verdade interior. Nenhum de nós, no fim de contas, consegue ser o que é. Há indivíduos que se parecem com outros, mas não há nada mais difícil do que o indivíduo parecer-se consigo mesmo. Criaram-lhe uma personalidade artificial, tão falsa mas aparentemente tão verdadeira que se tornou autêntica. Se o falso perfeito já é verdadeiro, mais verdadeiro é ainda quando todos colaboram na falsificação. E como as aparências “são as únicas realidades que o mundo reconhece”, estas únicas realidades o tornaram absolutamente real. E quantas vezes a sua própria transigência o fez cúmplice dos que elaboraram e modelaram a sua imagem. Quantas vezes as idéias, as blasfêmias do tempo de estudante lhe envenenaram a alma e ele agiu em conseqüência delas!

– Papai...
– Que há, minha filha?

A menina titubeou, ruborizou-se um pouco e, a medo, com a sua vozita clara e doce:

– Eu queria pedir um favor para papai...
– Favor? Mas haveria favor que acaso recusasse à minha filhinha doente? E a minha pequena, que é loura, que tem dois olhos castanhos e luminosos, a minha pequena disse-me, com a maior naturalidade, esta coisa enorme:

– Eu queria que papai rasgasse aquele livro que papai está escrevendo.

O coração de Paulo, como ele próprio nos diz, bateu descompassado no peito. Tudo ele podia esperar da filha, tudo, menos ouvir de sua boca de criança descuidosa e cândida um pedido tão sério e tão desnorteante como aquele.

No mesmo dia, os originais do romance eram postos numa fogueira e reduzidos a cinza.

– Eu era um imenso sofredor – confessou contrito. – Trazia os olhos embaciados de lágrimas grossas. Hora dura foi aquela de minha vida. Naquela hora dura, o Cristo apareceu de improviso no meu caminho. Parecia um homem como os outros homens. Nada de extraordinário. Mostrava apenas o aspecto cansado de quem caminhara muito. Vestia-se com pobreza. Tinha o ar doce, as mãos eram calosas, as vestes vinham empoeiradas de comprido jornadeio. Ele pôs em mim os seus olhos. Dois grandes e complacentes olhos. E quando seus olhos, grandes e complacentes, pousaram em meus olhos, que iam embaciados de lágrimas grossas, Ele parou de súbito em meio do caminho. Parou e disse: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

A água dos humildes

Somos um país, disse alguém, em que todos os homens são poetas e todas as mulheres são liras...

Se esse alguém espirituoso quis dizer que somos uma força ainda virgem contra o racionalismo negativista, anárquico e dissolvente, disse bem. A civilização mecânica não nos separou deste nosso contacto amoroso com as forças primitivas. Tudo aqui é procura, tudo é material inédito de construção humana. Nesta madrugada rumorosa não cabe a deformação da vida através de teorias que pensadores e sofistas engendram, lá fora.

Estamos vivendo ainda, e graças a Deus, aquela idade em que o povo não sabe mentir...

E como só é poeta quem não sabe mentir, Paulo Setúbal tinha que ser poeta antes de escritor. Realmente ele foi até o precursor de uma poesia tipicamente nossa. Poesia simples, pura, sem nenhuma deformação literária. A sua obra de estréia foi justamente um livro desse gênero: Alma Cabocla. Aí ele fixou alguns trechos característicos da nossa antiga paisagem rural, com os seus tipos humanos peculiares. Trata-se de quadros pitorescos, misturados deliciosamente com um pouco de caricatura lírica. A sua poesia é uma espécie de aroma rústico, daquele que sai da terra machucada pelo labor agrícola. A fazenda do interior que ele nos pinta, em versos correntios como água de fonte, não lhe serviu, entretanto, como pretexto exclusivo para alguns painéis, como aquele em que aparece “a vivenda chata no azul do espigão”, ou como aquele outro em que se vê, no terreiro de cimento negro, o café simetricamente penteado pelo rodo do lavrador ou recolhido, apressadamente, às tulhas, quando o céu resmungava carrancudo. Além do cafezal geométrico, com os seus batalhões aguerridos subindo lombas e grotas, aí figura um ambiente muito bem caracterizado quanto ao seu sentido brasileiro. Nesse chão, pintalgado de sol, sente-se aquela alegria animal do dia da criação. A luz dá tapas no rosto da gente, mas os colonos, os trabalhadores anônimos que cantam nos eitos e nos mutirões, o tropeiro do pangaré ou do baio trotão que passa na estrada, a normalista em férias que é a namorada do poeta em férias, e algumas outras figuras inconfundíveis mesclam de humano a inocência da paisagem rural. E foi nesse meio, onde o Brasil permanece intacto na sua ingenuidade, que Paulo Setúbal sentiu, certo dia, o “desejo sanhudo” de rasgar a sua carta de bacharel para continuar a ser simples e a viver em franca camaradagem com os simples. O gesto vale por um símbolo, que lhe define a personalidade. Ele só se sentia bem ao contacto da terra amorosa e trigueira, não deformada ainda pelas complicações do intelectualismo feroz.

Estou pensando agora numa imagem que melhor defina a poesia de Paulo Setúbal.

Bebe-se água em casa de luxo, mas a água que nos oferecem não tem o dom de matar a sede, embora venha rutilando no cristal límpido. Há uma outra água, que é a água dos humildes, dos caminhantes solitários e queimados de sol.

Vai-se pelo caminho que parece feito de sol moído, ou de torrões de sol torrado. A sede é desesperadora como um dia de juízo. Nisto, em meio da sede que nos está matando, escuta-se um barulhinho d’água sob a folhagem que margeia o caminho ensolarado:

– Que gostosura!

Um gole sôfrego, colhido numa folha de mato. E o caminhante verifica, então, que a coisa simplesmente mais velha deste mundo – beber água – ainda continua sendo, para todos os efeitos, a coisa mais original deste mundo.

O Clube dos “Amigos da Dificuldade”

Em meio de tamanha vegetação literária, que atravancou o nosso caminho, a poesia de Paulo Setúbal é, sem dúvida, uma dessas fontes que a pureza tornou eternas. Sem audácia nas imagens, é certo, mas cheia de substância lírica. Numa época em que se afirmava esta coisa hedionda – não há poesia sem métrica e sem bom senso – poderia acontecer que sua obra, no setor formalístico, se ressentisse de tais preconceitos. No entanto, a verdade é que o verso cadenciado, a música preestabelecida, as rimas fáceis e bem postas, só lhe serviram para aumentar o mérito, pois todos esses artifícios próprios da época não eram bastantes para tirar-lhe a naturalidade e o sabor da terra. Diante da sua técnica, chega-se firmemente a esta conclusão: que há muito mais atitude, isto é, há muito maior dose de falsidade em não rimar do que em rimar. As rimas de Paulo eram tão naturais e surgiam com tamanha espontaneidade que não pareciam flores matemáticas e obrigatórias. A naturalidade fazia esquecer o regime da rima obrigatória e matemática para que ela enriquecesse o verso como elemento expressional. Nada mais justo, pois mesmo em prosa a nossa maior dificuldade está, a todo momento, em evitar a rima daquele ão característico e renitente da língua brasileira. Aliás, em poesia não se pode falar no mérito da dificuldade que encheu de condecorações o batalhão ciclópico dos parnasianos, nos seus torneios de arte pela arte. O difícil é ser poeta, é dizer o que os outros não disseram ainda. Mas isso mesmo há de ser muito fácil para quem nasceu poeta. De modo que o mérito da dificuldade não existe. Se existe, é coisa que só interessa o Clube dos Amigos da Dificuldade.

Não sei que escritor fez esta afirmação sensata: que a Poesia é o dom que Deus concede às almas simples e boas, e está escrito no Evangelho que o reino do Céu pertence às crianças e aos que se parecem com elas.

E por falar em poesia...

E por falar em poesia, chegou o momento em que todos os grandes espíritos que ilustraram esta Cadeira se encontram.

Poeta foi o seu patrono, o da Terribilis Dea. Punha Pedro Luís, nos seus cantos de poeta social, a vociferação do apóstolo e o retumbo das palavras anunciadoras. Poeta foi o seu primeiro ocupante, Luís Guimarães Júnior, o lírico encantador e tropical que ficou vivendo como uma nota inconfundível, humana, clara, harmoniosa, na sensibilidade brasileira e que, no dizer justo e conceituoso de José Veríssimo, forneceu à nossa nostalgia, à nossa saudade, ao nosso amor paterno, à nossa afeição conjugal, ao nosso amor da mulher e da vida, a tradução inteligente e sentida dos seus versos.

Poeta foi João Ribeiro, que praticou uma poesia cerebral, apolínea, não obstante o seu feitio genuinamente brasileiro. Sim, se os parnasianos foram poetas – e por que não? – ele também o foi. E verdade se diga: João Ribeiro não entrou no Recinto sagrado abrindo-lhe a porta com a gazua de ouro com que certos parnasianos incorrigíveis fechavam os seus sonetos. O demônio da inteligência, que havia nele, com aquela fredda lucidezza, de que nos fala Sofici, é que não lhe permitiu beber o tantas vezes celebrado “leite de ternura humana”, que é o alimento lírico do verdadeiro poeta. Deu-lhe o licor da graça para tomar; e a gente, bem pode compreender o que seria um demônio da inteligência tomando o licor da graça e armado de uma cultura como a sua, que estava sempre em atitude de desafio e de polêmica.

Paulo Setúbal é o último elo dessa seqüência admirável.

O Currupira e o Carão

Mas Paulo Setúbal, além de ter sido o poeta singelo e comovedor de Alma Cabocla, era também o romancista, ou melhor, o criador do romance histórico brasileiro.

E apareceu cultivando esse gênero literário num momento sensacional. Justamente quando se haviam acendido as primeiras fogueiras escarlates para a festança dos antropófagos. Todos sabem o que foi o movimento de renovação intelectual e artístico iniciado em São Paulo em 1922. Por essa ocasião, sedento de modernidade, vinha da Europa Graça Aranha. No Rio, onde estava o grande autor de Canaã, romperam algumas escaramuças literárias, tomando Ronald de Carvalho o partido do mestre. Esse fato levou os revolucionários paulistas a estabelecer ligação com o acadêmico rebelde. E concertou-se, então, em comum, o plano de realização da Semana de Arte Moderna, encabeçada pelos nomes luminosos de Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Graça Aranha, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Plínio Salgado, Cândido Motta Filho, René Thiollier, Rodrigues de Abreu, Antônio de Alcântara Machado, Álvaro Moreira, Ribeiro Couto, Renato Almeida, Agenor Barbosa, Afonso Schmidt e outros. Somente São Paulo poderia ser a matriz originária desse movimento e o palco para a sua realização. Não se trata de uma disputa de prioridade por amor-próprio nem de uma determinação de data. Fatores vários terão influído decisivamente em tudo isso. Interveio aí a geografia (o maior isolamento de São Paulo quanto à infecção cultural européia); interveio a bandeira (aquela desobediência histórica como condição de autonomia); interveio o “clima humano” criado terra adentro e não no litoral (o homem avesso à Literatura e, portanto, mais inclinado a reduzir a Literatura a um mínimo literário para que a vegetação das palavras não escondesse, sob a sua folhagem ilustre, a água pura de nossa originalidade); interveio o individualismo tradicional do paulista, apto a proclamar que cada um passasse a realizar-se a seu modo (personalidade criadora.) O fator “tempo próprio” entrou com o seu contingente. O modelo de arte e o processo literário se tinham exaurido, numa espécie de estandardização. Um escritor repetia automaticamente o outro, numa obrigatória permuta de tema e de forma. São Paulo, mais dinâmico e mais violento, tinha que ser necessariamente mais anticlássico e refletir mais audaciosamente o sentido americano da vida.

Com a discussão errada, que se estabeleceu, entre “passadismo” e “futurismo”, formaram-se dois partidos. Duas mentalidades opostas entraram em luta, dizendo despropósitos.

Mas pra que passadismo? Pra que futurismo?

Ora, o Barbosa Rodrigues do Poranduba Amazonense contava a história do carão, o pássaro que vivia choramingando por não mudar de penas. Nenhuma imagem mais interessante para representar os que não mudam de idéias, os incapazes de renovação. Entretanto, faltava ainda o símbolo da vida que se inaugura e se renova todos os dias. Esse símbolo, nós o tínhamos, também, na mitologia indígena. Era o Currupira, novo como o último minuto e eterno como a vida do pensamento. Bastaria só colocar um contra o outro e teríamos, direitinho, o símbolo brasileiro para substituir a palavra copiada do “passadismo” e a outra, a palavra não menos copiada do “futurismo”. Em vez de passadismo, carão; em vez de futurismo, Currupira.

Semana de Arte Moderna. Teatro Municipal de São Paulo. O Currupira, no palco. O Carão, nas frisas e camarotes.

Durante uma semana toda, o Carão assobiou demoniacamente. Desencadeou tempestades de uivos e guinchos em frente à gambiarra onde Currupira ria, sarcástico, desafiando a assuada. E quando o Carão imaginou ter assassinado publicamente o Currupira, este, azougado, imortal, como bem frisou o grande poeta de “Juca Mulato”, reapareceu vitorioso, operando o milagre de criar, para o Brasil, uma consciência nova!

“Ismos” literários

De nada, contudo, serviria combater o Parnasianismo para erigir, em seu lugar, qualquer outro “ismo” moderno, vindo a bordo, do último transatlântico.

Substituir Parnasianismo por Futurismo, Simbolismo por Expressionismo, Tradicionalismo por Cubismo era apenas trocar o figurino mais velho pelo mais novo.

Aliás, a denúncia partiu de Alceu Amoroso Lima quando demonstrou, por a mais b, que os novidadeiros do Primitivismo nada mais faziam, em seus manifestos, do que repetir André Breton.

Verdamarelismo

Foi então que o nosso grupo se opôs a Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Expressionismo, Surrealismo e inventou o “Verdamarelismo”. Como a própria denominação o diz, tomava a campanha o seu verdadeiro caminho para adquirir um sentido brasileiro (reunindo o primitivismo ao moderno) e um sentido social e político (troca de uma mentalidade contemplativa, lunática, choramingona e anárquica por uma mentalidade sadia, vigorosa, destinada à solução brasileira dos problemas brasileiros). E dizíamos, contra as corujas trágicas do pessimismo e contra os papagaios dos “ismos” importados: pois uma pátria como esta poderia ter nascido das mãos de um povo humilhado e abatido? E aqui cabe nova referência a João Ribeiro, que aplaudiu o caminho encontrado em palavras memoráveis. “Estamos fartos de coisas velhas”, dizia ele, propondo a criação de um órgão, “uma folha literária pequenina e breve, capaz de interpretar o pensamento novo da nossa escassa intelectualidade. São Paulo poderia dar o exemplo (acentuava ainda o eminente escritor, dotado sempre daquela espécie de inteligência que de tão aguda incomodava a gente), São Paulo poderia dar o exemplo porque está na ordem do dia das ambições literárias. O Rio (são palavras ainda suas) esgotado pelas ventosas da política, seria incapaz de qualquer atitude de idealismo”.

E Paulo Setúbal?

Paulo Setúbal não podia ficar indiferente ao nacionalismo e à modernidade do movimento.

Tinha ele horror ao Cubismo, que lhe parecia apresentar o mundo de cabeça pra baixo. Achava o Futurismo uma literatura de retorno (num país que estava apenas amanhecendo para o seu destino) e de verdadeira alucinação (num país que não precisaria recorrer a essa forma de suicídio literário quando ainda era um tesouro virgem de originalidade e de beleza). Tomava, pois, o partido do “Verdamarelismo” contra todos os “ismos” de arribação.

É preciso notar, a bem da verdade, que o brasileirismo dos reformadores encontrou em Paulo Setúbal (e não só em Paulo Setúbal como também em Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira, para citar apenas os prosadores) muita coisa já realizada. Na linguagem, por exemplo, nenhum renovador poderia ser mais brasileiro do que Monteiro Lobato. Na prosa rica de cor local, de sabor nativo e de verdade humana, simples como tudo o que é natural, ninguém terá levado vantagem a Valdomiro Silveira. Na alegria bem brasileira, bem matinal, bem pararaca, bem própria de quem está ainda encantado com as coisas lindas do mundo que vem amanhecendo e que parece um brinquedo de Deus com a terra, ninguém levaria a palma a Paulo Setúbal. Realmente, quando o chão brasileiro ainda estava povoado de napéias, hamadríadas, nereidas e egipãs, ele já se havia colocado ao lado dos sacis, dos juruparis, das uiaras e dos caaporas. Quando diziam ainda certos romancistas: “O zagal tangeu o armento para o aprisco”, já ele dizia, sem a menor cerimônia: “O negrinho tocou o gado para o curral.” Quando o grupo modernista agarrado aos símbolos da mitologia indígena descobriu o Currupira e o Carão (conforme já referi) dando o Currupira como o gênio renovador do instante e o Carão como o passadismo encorujado que chorava por não poder mudar de penas, Paulo não hesitou: topou o partido do Currupira. Lembro-me bem do seu espanto quando o grupo “verdamarelo” lançou a revolução da Anta. Era preciso, dizíamos nós, soltar a anta, que é a força inicial e original da terra, contra os donzéis gregos da literatura importada. Armada a discussão, no violento “pralapracá” da polêmica, uns aceitaram a Anta, mas outros opinaram pela Loba, que é a mãe da civilização latina. Mas entre Loba e Anta, Paulo Setúbal não hesitou: topou a Anta imediatamente. E com que interesse, e com que curiosidade acompanhou ele as descobertas literárias do momento! Tanto assim que, no prefácio de O Príncipe de Nassau, aparecido em pleno fogaréu da luta, dizia: “Este livro é fundamentalmente verdamarelo. Se, por acaso, correndo por esse Brasil afora, tiver a boa fortuna de despertar, em algumas almas, um pouco mais de paixão e de entusiasmo pelas coisas pátrias, dar-me-ei por fartamente pago das minhas penas, através de alfarrábios e arquivos. E as minhas penas não foram poucas.”

O romancista histórico surgiu, pois, com a sua posição definida. Num momento muito claro de afirmação brasileira.

Os romances de Paulo Setúbal, antes de mais nada, não eram velharias históricas estilizadas para agradar.

Em A Marquesa de Santos ele conseguiu fazer-nos crer que, certo dia, o Brasil inteiro parou, atônito, vivendo o destino de dois estranhos namorados, evadidos do mundo falso e aparatoso que seria um paraíso imperial para se humanizarem na terra sentimental e bárbara. O colorido com que ele retrata D. Pedro I em As Maluquices do Imperador não é menos marcante. Tenho a impressão de que Pedro I existiu para que Paulo Setúbal o pintasse. Nada mais parecido com o estilo superlativo de Paulo do que o magnífico exemplar da nossa espécie que encheu de tanta novidade um Brasil monarquicamente velho. A mocidade de D. Pedro I é que não deixou o Brasil envelhecer antes do tempo. A sua figura estava à espera de quem a marcasse num romance, com alguns adjetivos “coruscantes”. Veio Paulo e marcou-a precisamente com esses adjetivos “coruscantes”, que nenhum outro escritor soubera usar com tamanha propriedade e com tão exata oportunidade. O Ouro de Cuiabá vale por uma descoberta de almas pela ação. Fiel ao seu temperamento, o artista “não explicou” os heróis criados. As almas deles é que brotaram, ardentes, da ação tecida pelo romancista através de uma beleza áspera e simples.

E o Romance da Prata – feito paradoxalmente de verdade histórica – foi o romance da história onde Paulo conseguiu ser menos romancista para ser mais verdadeiro. Mas não adianta citar cada um dos seus livros, como esses e mais o El-Dorado e Os Irmãos Leme, se todos estão marcados por sinais de estilo, de espírito, de sentimento e de brasilidade que os unificam numa só trama misteriosa e indestrutível: o sentido da terra.

São capítulos do mesmo drama. Episódios da mesma alma coletiva, salpicados de individualismo.

Alma coletiva que fez a bandeira. Individualismo que fez os seus heróis.

Havia, sobretudo, em Paulo Setúbal, um visualista. Um enamorado da cor e do movimento.

Até na arte, naquele estilo desordenado de quem “quer ver tudo”, acompanhava-o uma alma de convalescente que vivesse espiando gulosa a alegria das coisas e entrando, apaixonadamente, no recesso íntimo da História, para “ver tudo” o que se passava lá dentro... As suas descrições dos arraiais festivos, das bandeiras que partiam sertão adentro, do ouro brotando da terra por enormes feridas de ouro, foram a viagem maravilhosa com que o destino enfeitara a ternura de um convalescente, preso “a uma cadeira de lona”. Tão engraçado era ele contando as proezas do herói de botas no “sertão estuporante”, cheios de bichos e carrapichos. E que barulhão, por exemplo, fazia Paulo ao descobrir um bando de jacarés dentro d’água, ou um bando multicor de borboletas dançando de roda à margem de um rio. Mesmo pintando coisas feias e cruéis, ou descrevendo o salto das onças elétricas, havia uma certa graça naqueles olhos azuis arregalados com que ele significava o seu assombro diante da “selvatiqueza” (como ele dizia) de um Brasil ainda fabuloso, desenrolado subitamente no seu estilo cinemático. Digo cinemático e parece que digo bem. Talvez as figuras que Paulo delineava não fossem fixadas a traços muito profundos em seus retratos psicológicos, na riqueza de sua vida interior. Nunca o preocuparam as exaustivas análises psicológicas. Mesmo quando ele se pôs diante da alma, para o exame de consciência que a vida exige de todos nós, fez dela somente uma justificativa para os seus apelos interiores de movimento, de ímpeto vital. Em Alma Cabocla fê-la um instante lírico de vibração cósmica. No Confiteor projetou-a ao infinito, através de figuras e de imagens. Mas a expressão física que ele conseguia dar a cada rosto valia mais do que todo um drama subterrâneo e ignorado. Sente-se a presença mágica, singela, ofegante, do Cristo que ele encontrou no caminho, aquele “Cristo de dois olhos grandes e complacentes”, como se sente a presença quase faiscante das suas criaturas históricas.

Não há veludos nem meias-tintas naquele tropicalismo fantástico. A realidade nos agride pelos ouvidos e pelos olhos. É feita de terra. Espirra orvalho na gente, suja a gente de musgo. Um raio de sol que ele faz entrar no esconderijo do mato brabo é bastante para nos mostrar um quadro humano, em sua rude nudez. Dentro do seu estilo cinemático, ele obtém câmaras lentas admiráveis. Ao mesmo tempo, deixa o chão da Pátria cheio de ecos e atropelos, abrindo todas as portas ao sertão trágico e desenterrando lendas tão “impossíveis” que também parece terem sido inventadas só para que Paulo, um dia, as contasse. Seria eu mais exato se dissesse que a obra do romancista não apenas afirma o visualista que ele era. Mas constitui uma festa para os cinco sentidos. Por isso, as suas concepções artísticas têm o gosto, o cheiro, o rumor, a cor e a aspereza de um mundo vivo, ligado a nós diretamente, como em permanente inauguração. Todos os seus livros são matinais e bulhentos. Não trazem sombra nem silêncio. Não ressumam filosofia nem tortura de pensamento. Não conhecem sofismas nem subterfúgios. Há neles um pomar, onde os frutos pendem, em cachos, ao alcance de nossa mão. Os adjetivos formam uma vegetação luxuriante, na terra cabocla dos substantivos saborosos. Também não há nada que temer, por detrás desses adjetivos. Nenhuma flor maligna se ocultará nessa folhagem tropical. Nem vespas de ironia, nem borboletas traiçoeiras do mimetismo literário...

Mas o sentido visualista de sua obra explicará, até certo ponto, a fascinação que ele exerceu sobre nós.

Somos um povo em cuja literatura rareiam os introvertidos. Ainda estamos descobrindo o mistério e o encantamento da terra. A nossa arte, a que verdadeiramente ficará, é toda um diário de surpresas diante das coisas.

Um diálogo comovido entre a nossa alma e os sortilégios de um mundo criança.

Ensinar, contando

Eis como Paulo nos descreve a partida de uma bandeira:

– Vá com Deus, sô Fernão.

E tudo aquilo, cabos e peões, capitães e frades, mamelucos e cafuzos, índios e minas, tudo aquilo, em massa, se movimenta, serpeia, lá vai no rasto do bandeirante desempenado. Ah! que festa! A manhã azul, toda sol, enche-se de alegrias barulhentas. São estrondos de morteiros, pelouradas, roncos de trabucos, repiques frenéticos de sinos. E a bandeira caminha. Caminha com a flâmula à frente. Vai no rumo das esmeraldas e da prata. Vai no encalço da Serra Verde e da Serra Branca. No encalço das pedras de Tourinho e da prata do Sabarabussu. Acha-las-á? ninguém sabe. Mas a bandeira lá vai, cheia de cálidas esperanças. E afasta-se. E diminui. E caminha ainda. E é quase nada. E some...

A bandeira, assim descrita por Paulo Setúbal, a lápis de cor, abala sertão adentro e o romancista vai com ela.

E cada um de nós vai com ele, porque é ele quem fala por todos nós. Por aqui passou Anhangüera, que ameaçou botar fogo na água dos rios. O fogo da civilização clareando os primeiros atalhos da nacionalidade em meio da escuridão cósmica. Por aqui penetrou Fernão Dias, o poeta supremo das pedras verdes. Por aquele vão de serra passou o pelotão nômade de Pascoal Moreira. No dorso deste rio, Raposo Tavares atravessou as avenidas móveis do Brasil selvagem. Você está vendo aquela serra? É a serra de ouro, atravancando o fundo do horizonte como um montão de sol.

Por aqui passou Borba Gato...

– Mas, Paulo, não teria sido por este outro caminho?
– Não. O Taunay, o Basílio de Magalhães e o Calógeras afirmam que o roteiro é este.

Quando a história já é um romance

– Ali é que certas crônicas localizam uma cidade pré-histórica. E citava Tristão de Araripe. E teretetê... outro documento como uma espécie de pagamento à vista, diante da curiosidade do leitor.

Era a fidelidade na narrativa.

Ele contava, cheio de pontos de exclamação na alma, as suas histórias à luz da grande História. Descrevia, com a sua imaginação e o seu estilo, na exata definição de Hélio Lobo, “algumas das horas mais belas da nacionalidade”. Dava movimento aos seus personagens. Punha-lhes na boca palavras que eles teriam pronunciado. Pintava-os com cores largas e tempestuosas. Sentia um gosto enorme em vê-los marchar para a conquista da terra. Percorria com eles as fronteiras que esses gigantes marcaram caboclamente no mapa da América. Dormia com eles, sob o cobertor azul das estrelas... Testemunhava a glória desses heróis obscuros, fazendo funcionar, dia e noite, a máquina geográfica do continente, em razão da bandeira.

Para uma história que já é um romance, o romance histórico poderia parecer uma redundância.

Se a verdade já não parecia verdadeira de tão bonita, o verdadeiro romance dessa história estaria por força em não repetir simplesmente a História, para que o romancista não se limitasse a ser historiador. Ora, a nossa história, nesse capítulo, é tão bonita que o historiador, por sua vez, fica com receio de fazer romance em vez de contar a história... Esta dificuldade o obrigará a ser seco e frio, como um Mommsen, para não incorrer na tirada de um Swift ou de um Luciano quando este se saiu com a sua “História verdadeira”. Houve escritores que inventaram gigantes: os nossos gigantes, porém, não foi preciso que nenhum escritor os inventasse. A própria vida se incumbiu de os criar, mais interessantes e mais verdadeiros. Não saltam eles de nenhuma história para crianças, mas de uma história para adultos também. Ou melhor, somos todos crianças diante dessas figuras que Paulo Setúbal fez saltar da Geografia e da História. Como se saltassem de dois brinquedos americanos- do-sul, muito sérios. De duas realidades brasileiras que parecem brinquedos, tão fora estão da realidade universal e quotidiana.

Verdade histórica e verdade humana

A gente procura, em vão, fazer uma idéia do que foi cada um desses vultos borrascosos.

Nada mais difícil, entretanto.

Dentro do terrible monde vertical a que alude Luc Durtain, o fenômeno “terrivelmente horizontal” da bandeira chega a ser um despropósito.

Dentro da vida múltipla, simultânea, aglomerada, cheia de “conflitos por falta de espaço”, que caracteriza o mundo moderno, como compreender a bandeira em sua significação violentamente “espacial”?

Se “espacialmente” há essa dificuldade de compreensão, não se pode dizer outra coisa “mecanicamente”. É claro, nos centros de maior civilização, perdeu-se a noção das caminhadas a pé. O que menos importa ao homem da cidade são as suas pernas. Ele não tem necessidade de caminhar, num meio onde a velocidade lhe oferece todos os préstimos e obséquios possíveis e imagináveis. Uma caminhada de trezentas ou quatrocentas léguas, furando mataria cerrada e antropófaga, não acode mais à razão deste mundo friamente mecânico em que as operações de raciocínio são obtidas mediante máquinas de raciocinar, em que os próprios lares se chamam máquinas de morar e em cujo céu o bando desordenado dos pássaros em rodamoinho foi substituído pelo bando geométrico das máquinas de voar.

Como poderia, pois, um cidadão que vem de Friedrischafen ao Brasil em três dias avaliar o sacrifício único dos que caminhavam trezentas ou quatrocentas léguas de sertão trancado e inviolável?

Seria o caso de recorrer à linguagem dos contrastes. Comparo, então, o tamanho do Brasil com o do chamado “planeta que habitamos”. Confronto os homens daquela época, andando a pé pelo chão trancado ou na flotilha tosca das canoas conduzidas pela correnteza das águas, com os homens de hoje voando sobre o Atlântico e comunicando-se a qualquer momento radiotelegraficamente com a terra.

Mas como representar essa realidade que excede ao meu ângulo intelectual e sentimental?

Há uma desproporção física entre o homem normalmente considerado e o tamanho incrível do ato bandeirante que ele praticou. Tal desproporção, é natural, provoca o desequilíbrio entre a realidade e o meio artístico ou histórico de representá-la. Sou obrigado, pois, a aumentar o tamanho físico de cada figura para oito ou dez vezes maior do que a do homem normalmente considerado para poder “sentir” cada cabo de tropa como um gigante de botas de sete léguas, que põe o pé aqui e sai lá, no outro lado do continente. Aumentado o tamanho de cada figura não me afasto, entretanto, da realidade. Ao contrário, aproximo-me dela. É uma deformação necessária, imperiosa, moderna, sentimental, da realidade física em favor da realidade humana. Compreendo, assim, a dificuldade que Paulo Setúbal teria sentido ao marcar essa realidade a golpes precisos. Mas o caso é que ele o conseguiu, como nenhum outro. Ao passo, por exemplo, que o historiador procura separar o que é bonito do que é histórico, por lhe parecer que o bonito estraga o histórico, o autor de O Sonho das Esmeraldas aceita as duas faces da bandeira e tira delas o material dos seus romances, realçando os fatos com a imagem que os ilumina e passando as suas figuras por cinema vivo e rejustador. Point de grand style sans images, car seules les métaphores replongent l’esprit dans le réel, disse Proust; sabiamente citado por Maurois nos seus Magiciens et Logiciens.

Alcântara Machado, com aquela riqueza de observação que é muito sua, disse aqui mesmo, em seu discurso de recepção a Paulo Setúbal, em nome da Academia:

“Ensinais História contando histórias... Perderá com isso forçosamente a verdade? Não acredito. Lá está, no soneto vestibular de L’Aiglon: um sonho é muitas vezes menos mentiroso do que um documento.”

Nem será caso, digo eu agora, de reviver, em torno da judiciosa observação de Alcântara Machado, a debatida questão dos que pensam, como um Fustel de Coulanges, que a História é ciência pura e dos que afirmam o contrário, como Lytton Strachey e Paul Valéry, torcendo apaixonadamente pelo sentido artístico da História.

A ciência de contar a verdade histórica não está, sou dos que pensam assim, em só remoer o fato provado e documentado.

Infeliz do povo que não tem, em meio dos seus arquivos, uma lenda para contar, uma coisa incrível para dizer!

A História não é, por outro lado, o monstro que caminha no tempo, sem que ninguém ouse afeiçoá-la.

Se fosse, teria tido razão de sobra certo escritor ao citar a tristeza de Michelet diante da História. Obrigada a contar o espetáculo do “homem coletivo”, la vie des groupes humains et leurs conflits, ela se tornaria une lecture entre toutes poignante. Não, a História terá que ser escrita por homens sérios, não há dúvida. A tagarelice histórica é insuportável. Nenhum historiador tem o direito de desencantar um povo na magia do seu passado.

Nesta última hipótese, o artista adquire mesmo o direito de corrigir o historiador.

O Brasil, criatura geográfica da bandeira

Em resumo: que culpa teria Paulo Setúbal de nossa História ser mais bonita do que todos os romances até hoje publicados no Brasil? Que culpa temos nós de que a nossa História “continue a ser o nosso poema”? Que culpa terá o historiador de que uma miragem – a miragem das esmeraldas – seja um capítulo de nossa História?

O autor de A Bandeira de Fernão Dias tinha razão, isso sim, em ensinar a História tendo em vista o que a História nos ensina e corrigindo, se fosse preciso, o que nos ensinam os historiadores. Tinha razão ainda em exaltar a bandeira e afirmar o quanto os seus romances contêm de brasilidade. Realmente, foi a bandeira (ou foi a História) que deu, ao Brasil, o perfil geográfico pelo qual, desde meninos de grupo escolar, o reconhecemos no mapa-múndi. Foi ela que lhe deu o sentido sul-americano modelando-o, misteriosamente, à imagem da própria América. O Brasil é a criatura geográfica da bandeira. Ao modelo imposto, preferimos fazer obra de criação. Sim, pela decisão da Coroa, o Brasil seria uma coisa; por nossa própria decisão, ele saiu outra. O Tratado de Tordesilhas lhe dava uma fisionomia antinatural, antiestética, antiamericana-do-sul. Tornando-o natural, estético, sul-americano, fazíamos um Brasil nosso, originalmente nosso. A uma linha arbitrária, que nos daria a feição de um país mutilado, opusemos a sua linha atual que o tornou único e inédito. Linha originalíssima, no dizer de Vicente Licínio Cardoso, e de todo inesperada nos primeiros séculos. O grupo humano original, que modelou essa criatura geográfica, não pode ser enquadrado naquela effrayante zoologie de que nos fala o desiludido dos demais grupos humanos, que escreveram outras histórias à custa de sangue e de morticínio. Diante dos nossos pioneiros, desaparecem os heróis gregos, cujas façanhas perdem o significado e se reduzem a simples proezas literárias. O próprio pioneer americano-no-norte não teve, como bem acentua Rocha Pombo, a função do pioneer americano-do-sul. O Brasil, com sua bandeira, que só o chão da América podia testemunhar, apresentou ao mundo uma verdade humana ainda não conhecida. Obrigou, com isto, a humanidade a fazer a sua própria revisão. Modificou a geografia do mundo moderno e, num sentido econômico, “incrementou o progresso mundial, enriquecendo a Inglaterra e dando a Portugal um século de fartura”.

Qual teria sido, portanto, o destino do Brasil, se o bandeirismo não houvesse corrigido e ampliado, triplicado mesmo, a sua superfície territorial?

Não me parece brasileiro o gesto do historiador caturra que declarou preferir o modelo imposto, para ter evitado a caça ao índio, discutindo fatos que não podem ser mais discutidos porque formam a nossa origem insubstituível e eterna.

Mas o grupo humano que escreveu o primeiro capítulo da nossa História e cujos feitos Paulo Setúbal transformou em páginas fulgurantes teve também, não só pela “criatura geográfica” que lhe saiu das mãos, senão ainda pelo seu “módulo” psíquico e social, imensa significação para o destino brasileiro. Quero dizer: esse grupo humano não traçou apenas a silhueta geográfica do Brasil, não assentou apenas a base física do nosso destino; assentou também a base de nossa formação social e democrática. Não nos deu apenas uma geografia democrática, porque anticentralista; deu-nos também sangue e alma para a rude mas original democracia social que se processaria no Brasil, em seu sentido biológico.

Nossa Democracia e seu fundamento biológico

De fato, onde “nasceu” a bandeira?

Etnicamente, da mestiçagem que nos deu o mameluco.

Socialmente, de um grupo que praticava a pequena propriedade e a policultura, naquelas fazendolas variegadas e típicas que enxameavam no arredor de Piratininga.

As sesmarias nunca passaram de pontos de referência para a fixação do conquistador no mundo desconhecido. A terra como propriedade não podia interessar a homens para os quais uma esmeralda valia mais do que um latifúndio. Se há duas palavras que nunca se encontram juntas, na origem da paisagem social piratiningana, são estas: bandeira (movimento) e propriedade imobiliária de raízes profundas e tentaculosas (aristocracia). O ponto de partida da bandeira era esse, étnica e socialmente. Geograficamente, como também se sabe, era o planalto a cavaleiro do sertão: o planalto dinâmico, incompatível com os latifúndios, mais explicáveis no litoral estático. Em meio da caminhada, posto o grupo humano da bandeira em movimento, para as suas incursões no mato antropófago e tenebroso, ocorrem três fatos admiráveis: a divisão do trabalho em função de cada cor (especialização de funções, como resultado de uma mélange de races); o aproveitamento de todos os elementos humanos, mesmo dos que pareciam inúteis e até prejudiciais; e a classificação social dos mestiços superiores pela posse da terra (como diria Oliveira Viana) ou a hierarquização pelo próprio esforço, pela capacidade de independência a todos acessível que foi o sertão (na luminosa observação de Pedro Calmon.)

O mameluco comanda a tropa, o negro conduz os mantimentos, o índio flecheiro é a polícia da bandeira.

E lá se vão, como nos conta Paulo Setúbal, mamelucos e cafuzos, índios e minas, em massa, no rasto do bandeirante desempenado.

Vão também os mestiços infensos à arianização: os cabras, os capangas, os curibocas, os pardos.

Constituem o séqüito operário, multicor e anônimo, na criação dessa democracia social e biológica.

Contra o caos selvagem a bandeira é, afinal, a ofensiva de um pensamento, de uma ação ordenada, de um ímpeto que tem seu rumo a seguir e seu objetivo a realizar. Em meio dos elementos raciais díspares e inamolgáveis, rebeldes a tudo quanto é poder disciplinador e organizador, ela é geometria viva que tudo enquadra e retifica. Dentro dela tomam sentido útil as aparas e arestas humanas que a miscigenação jogou fora, que a metrópole abandonou sem lei, que os conflitos do meio tropical dispersaram, que a terra deixou de fixar socialmente.

Mas voltemos ao testemunho de Paulo Setúbal:

Tudo aquilo se movimenta, cabos e peões, capitães e frades (democracia social), mamelucos e cafuzos, índios e minas (democracia étnica).

Escravos e livres podiam ser, a um tempo, livres e escravos do sertão accessível ou escravizador.

Pobres e ricos, também, podiam ser ricos e pobres ao mesmo tempo, em face da conquista niveladora e classificadora.

Fome de ouro, para morrer de fome

Potentados? nababos de Piratininga? os fatos desmentem esses palavrões endomingados e canoros. Anhangüera morreu tão miseravelmente sem ouro como Fernão Dias tão enganado pelas esmeraldas. Borba Gato teve que viver entre bugres, para não morrer à míngua. E que dizer dos que, como mostra o ilustre autor de Vida e Morte do Bandeirante, foram encontrados mortos de inanição, “com a sacola abarrotada de grânulos amarelos em uma das mãos e o mísero sabugo de milho, já roído, na outra”?

Mas que fossem potentados... pois cada grânulo de ouro não significava um pedaço de chão para o Brasil? E a cruel expoliação de que foram vítimas não deu origem ao surto nativista, causa primária de nossa independência cujo primeiro grito está na aclamação de Amador Bueno da Veiga para “cabo mayor e defensor da Pátria”?

Houve riqueza de alguns? Também não importa. Pobres morreram quase todos, “mesmo os de maior projeção no setecentismo, que foi a era do ouro”.

O que vale, na História, não são todos os fatos: é a linha predominante dos fatos.

Bandeirismo, Comunismo e Feudalismo

Mas a bandeira não teve apenas um sentido “americano”, em oposição ao sentido “português” pé-de-boi, do litoral, a que alude Gilberto Freyre.

Teve ainda uma função democratizadora, por excelência.

Democracia é movimento social e a bandeira foi o “grupo social mobilíssimo” caminhando por todos os lados em função política “democratizante”.

Contra a propriedade imobiliária, que gera a aristocracia, o seu objetivo era a propriedade mobiliária, que democratiza a riqueza individual. Contra a tendência “vertical” dos núcleos de concentração econômica ela era o ímpeto “horizontal” que nunca os deixaria crescer apenas verticalmente. Contra os quistos étnicos que impossibilitariam a nossa democracia racial, como o da república negra, ela foi a força descêntrica e niveladora. E enquanto se acentuava o regime feudal dos grupos fixos, nas casas-grandes, a bandeira “democratizava” a sociedade colonial, misturando-lhe os elementos e mobilizando-os para a corrida das minas. Nenhum exagero haverá em se dizer que ela não só realizou a sua democracia social e instintiva, dentro de cada agrupamento, como também foi a base democrática do nosso grupo nacional.

Numa palavra: contra o feudalismo do litoral, resultante da monocultura latifundiária e escravocrata, e contra o comunismo tribal do hinterland, a “democratização” do bandeirismo.

A bandeira e o Estado moderno

Mas só um Estado, embora pequenino como o que se locomovia na bandeira, poderia resistir a esse vendaval, conservando-se intacto na sua unidade e na sua estrutura social e moral.

Guardadas as devidas proporções, nenhum Estado moderno realizaria, com toda a sua maquinaria totalitária, coisa semelhante.

A idéia de governo forte lá está, no generalíssimo da tropa, que pratica atos jurídicos em pleno sertão. A da disciplina consciente também: não se discutia a ordem do chefe, em torno de quem se aglomeravam todos os componentes da bandeira. Dessa obediência nasceu, para os seus descendentes, “o espírito de respeito às leis”. Da bandeira caminhando no espaço, desde o início do povoamento, saiu a sociedade que se fixou no interior do país. Da sua fronteira móvel, conduzida para norte, oeste e sul, saiu a fronteira fixa que configura, no mapa, a imagem física do Brasil. Da bandeira caminhando no tempo saiu o grupo nacional democrático, que vem da família, passa pelo clã, torna-se povo e chega até nós pelo sangue e pelo sentimento, como um retrato humano que se viesse reproduzindo através de ampliações sucessivas do original.

A bandeira nos oferece, portanto, na sua rude, mas típica enquadratura política, os lineamentos do Estado moderno, baseado no culto da tradição e do heroísmo: comando seguro (autoridade forte) e disciplina consciente (cooperação de todos os brasileiros, agora irmanados numa só alma, para o mesmo sacrifício e para o mesmo triunfo.)

Pensar brasileiramente

Em toda a obra de Paulo Setúbal o que encontramos é um Brasil puro, sem deformação.

A sua pena não escreveu uma página sequer que não fosse uma afirmação veemente de nacionalismo, para “despertar um pouco mais de entusiasmo e de paixão pelas coisas pátrias”.

Essa a razão por que ele nos obriga a “pensar brasileiramente”.

O Brasil no original

Pensar brasileiramente. Ter o Brasil presente a todos os nossos atos. Defender o Brasil no original.

Por certo que o Brasil se defenderá, principalmente, com a grande e invencível arma da sua originalidade.

Sua originalidade não é, portanto, uma forma neutra de vida.

Quando Keyserling, nas suas Méditations Sud-Américaines, afirmou que nada devemos temer da onda vermelha de russos e asiáticos e que jamais nos tornaremos americanos nos moldes ianques, do mesmo modo que a Grécia antiga jamais se romanizou, foi porque ele confiou em nossa originalidade, que até inconscientemente defendemos quando nos refugiamos em nosso próprio ser.

Acontece, entretanto, que a luta entre o sentimento desprevenido da terra e as idéias diabólicas que não são da terra tomou caráter agudo e decisivo.

Os “ismos” literários de 1922 viraram “ismos” políticos terrivelmente desnacionalizantes em 1937. Não apenas no Brasil, como no mundo, a revolução operada pela técnica determinou uma violenta e descêntrica atividade racionalista, crítica, dispersiva, senão anárquica. As seduções do demagogismo insuflam a “rebelião espiritual” das massas, desarraigando nelas o sentimento da tradição e o apego à idéia da Pátria.

Qual o meio de que dispomos para nos defender desse ataque?

Apelar para focos de cultura desinteressada? Basear-nos na educação, nas formas puramente racionais de esclarecimento ou na “pseudológica” das idéias claras?

Não, o meio será a criação de uma polícia da inteligência, que vele pelos destinos da nacionalidade.

No atual momento, essa polícia consistirá numa doutrina (consciência de pátria, consciência de nossa originalidade no mundo) ou numa ideologia (instinto de legítima defesa em face das demais ideologias que tentam assaltar a todo transe as nossas fronteiras espirituais e morais.)

Originalidade ou morte

Aliás, quando o escritor cumpre o dever de sua inteligência para com a Pátria, está cumprindo um dever para com a sua própria arte; porque não existe arte sem pátria.

Já o Gide de Reflexions sur l’Allemagne havia dito: “Só quando uma literatura se nacionaliza é que ela toma o seu lugar no mundo.” E o seu dito não poderá ser desdito, por ser mais que verdadeiro. A Inglaterra só produziu Shakespeare no momento mais inglês da sua existência. A Itália só produziu Dante no seu minuto mais italiano. A Rússia nos deu Dostoievski no seu momento mais tipicamente russo. A França nos brindou com Descartes no seu instante mais francês. Cervantes só foi universal por ter sido o mais espanhol possível. O escritor, que verdadeiramente o é, não poderá fugir a esse dever para consigo mesmo. O que está em jogo não é um partido, não é uma paixão política. É a defesa do nosso destino, da nossa originalidade no mundo. E as obras mais universais e mais humanas são, na feliz expressão de Maritain, as que trazem mais vivo o sinal da Pátria.

Originalidade ou morte.

Nacionalismo, condição de humanidade

Quando alguém entendeu que le patriotisme exige la haine de l’étranger, foi porque não conhecia o Brasil. Quando outro alguém afirmou a origem pagã e telúrica de todo e qualquer nacionalismo, foi porque não se lembrou de que o Brasil realiza, na sua inédita democracia social e biológica, o anelo total do mundo a que se refere o visionador da “raça cósmica”. O telúrico é, para nós, a assimilação das raças dentro da máxima de Cristo: amai-vos uns aos outros. Cristo abençoaria o telurismo que fez, do Brasil, o refúgio de todos os oprimidos, a libertação de todos os preconceitos sociais ou de classe, a fusão de todas as cores étnicas para o mais belo milagre humano da sua doutrina.

Democracia e democracias

Nosso nacionalismo significa, pois, humanidade. Defesa do Brasil para que ele se conserve Brasil, a fim de continuar o seu papel de redenção e humanização.

Quanto mais Brasil ele for, mais humano ele será.

E que dizer, agora, da obrigação do escritor, em face da democracia brasileira?

Não há mais democracia, o que há são democracias. O reajustamento do mundo partiu a palavra em muitas palavras, que parecem iguais mas que são muito diferentes: democracia imperial, democracia igualitária, democracia liberal.

Não obstante a confusão propositada, o conceito de democracia, no Brasil, não pode sofrer deturpação alguma.

Por ser o caso de uma “democracia social” tipicamente nossa.

Nascida em circunstâncias que não ocorrem, absolutamente, em outros países do mundo.

Se a lei não lhe vinha correspondendo ao sentido exato, o caminho a seguir, então, não havia de ser, como não foi, o de ir buscar lá fora o remédio. Nem o de recorrer à cópia de meios violentos que não correspondem à índole do nosso povo e ao ritmo de nossa História. Seria, muito ao contrário, reajustar a democracia brasileira dentro da nova concepção de Estado triunfante em toda a parte. Mas dentro, também, do seu sentido irremediavelmente brasileiro. Ou dentro de um Brasil irremediavelmente democrático. Tudo entrou nessa democracia que é um fenômeno climático (somos um país tropical), que é um fenômeno étnico (a mistura de raças), que é um fenômeno geográfico (a terra niveladora, anticentralista), que é um fenômeno social (o operário de hoje é o patrão de amanhã), que é um fenômeno psicológico (a bondade na sua acepção brasileira, tipicamente democrática). É uma democracia “ser vivo”.

É uma democracia que, antes de ser uma realização político-liberal, é uma razão brasileira de humanidade.

Arte é democracia

Mas qual a democracia que interessa aos escritores?

Ora, todo artista é necessariamente individualista.

Arte é democracia, porque democracia é individualismo.

Admitir como “desumanas” as sociedades onde o homem procede, “não como pessoa, mas como indivíduo”, é coisa que não tem fundamento em nossa democracia social e biológica.

O individualismo das comédias eleitorais nada tem que ver com o individualismo criador de beleza e de riqueza para o Brasil.

Em certos países, inventou-se que o mal do individualismo podia ser curado com o coletivismo. Em outros, o remédio estaria no estatismo, desindividualizador, feroz. Uma teoria engenhosa lançou mão de outro corretivo: o neo-individualismo. Falou-se muito num remédio espiritual bem-intencionado: o personalismo.

No Brasil, onde o individualismo é condição de aventura criadora, o interesse social está justamente em que o indivíduo “se realize” o mais possível, para realizar mais. Mesmo porque o nosso individualismo tem, na bondade típica do brasileiro, o seu corretivo natural. Claro que não me refiro à bondade (é indispensável frisar este ponto) no seu sentido de cordialidade. Não me refiro ao “homem cordial” de Ribeiro Couto e de Sérgio Buarque de Holanda. Refiro-me a uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora; uma bondade que nada tem que ver com o “homem cordial” dos aperitivos nem com as “cordiais saudações” que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas. Força secreta e invisível que tudo domina, e que tudo submete com doçura. Fazendo mais do que todas as técnicas de violência, que dividem os homens e que só os submetem à custa de sangue. Poder-se-ia dizer que se trata, como já fiz ver alhures, de uma bondade que se defende sempre, mesmo quando parece submeter-se. A função desse material afetivo difere muito da que cabe à bondade em sua acepção hospitaleira, liberal ou lírica. Está longe de confundir-se com a daquela outra bondade que certo historiador carão denominou “incapacidade de realizar o mal, por indolência”. Também não se confunde com a “bondade natural”, que Afonso Arinos de Melo Franco, em recente e brilhante ensaio, fez entrar, como contribuição do índio brasileiro, nas origens da teoria de Rousseau. Também não se enquadra na espécie de bondade que tanto interessou a Stefan Zweig e que é a do “faça o favor de entrar”; bondade de sala de visitas. Que encanta, mas brilha falso.

Bertrand Russel, não faz muito, em seu Ícaro o el porvenir de la ciencia, exclamava que “só a bondade salvará o mundo”. Seria preciso “fabricar” bondade. Não haverá jeito de se instituir uma junta secreta de fisiólogos, para se descobrir o meio de “criar” bondade? Como arranjar um remédio que torne os homens menos ferozes? A biologia oficial de certos países que procure responder, a seu modo, a pergunta angustiada e trágica.

Nós, não.

No país da bondade não existe o individualismo negativista e anarquizador. Tal individualismo, se existiu, foi amamentado pela politicagem profissional interesseira e particulista. Suprimida esta, o nosso individualismo voltará a ter o seu sentido exato, necessário, que não é o do individualismo burguês dos liberais incorrigíveis, que não é o do “personalismo” neutro e incolor de um Denis de Rougemont, que talvez não seja o do “neo-individualismo” yankee de um Overstreet, e sim um individualismo que, antes de ser corrigido pelo Estado ou por qualquer teoria, já o tinha sido pela bondade biológica do brasileiro. Bondade original e única. Fenômeno humano, sociológico, que não depende de nenhum decreto, senão do decreto de Deus que a instituiu no coração de todos nós. E haverá, no biológico, alguma coisa de pagão e de anticristão? Não. Não temos culpa da própria vida nos haver reservado, neste trecho da paisagem humana que é o Brasil, o milagre telúrico do Cristianismo pela fusão de todas as raças que se irmanam, sem preconceito de cor nem de origem, debaixo do mesmo céu. Em nosso clima humano não há como funcionar aquela máquina que estandartiza, nivela os homens e só os não numera porque teriam todos o mesmo número moral e econômico. Aqui, felizmente, não se fez mister ainda comprimir os indivíduos para os fazer solidários. Solidários à força, isto é, mais do que seria necessário. Nem foi preciso reduzi-los a pessoas, para inventar uma espécie de solidariedade passiva e igualitária. Nosso individualismo cria a interdependência, que é solidariedade ativa e confraternizadora. No amanhecer do nosso destino, enquanto a pessoa ficava em casa, o indivíduo é que saía para as suas aventuras gloriosas. Se abolíssemos o indivíduo e deixássemos apenas as pessoas, o Brasil estaria paralisado. Faltaria o movimento que leva os homens a abrir caminhos novos e a procurar novas fórmulas de vida e de beleza. Nem é caso de maldizer tanto o indivíduo quando ele é a nossa última esperança contra os regimes de compressão. Se o mundo fosse um paraíso, só existiriam pessoas singelas e harmoniosas, e não indivíduos inquietos e dissonantes. Mas inquietude e dissonância ainda são alimentos do mundo que precisa viver. Não me parecem desumanas, pois, as sociedades onde o homem procede como indivíduo mas aquelas onde a pessoa humana não se realiza por falta do indivíduo que a realize.

Muitas vezes é o próprio indivíduo que luta contra a liberdade: que me adianta ser livre, se ninguém me vem garantir o gosto de ser livre? Que me adianta ser livre, se me falta capacidade para ser livre?

O direito moderno de tornar o indivíduo “menos livre” impõe, entretanto, a obrigação moderna de fazê-lo “mais feliz”.

Demonstrando o seu horror ao “homem coletivo”, Duhamel teve esta afirmação oportuna: é o homem individual que nos deu, nos tem dado e nos dará ainda os mestres, os sábios e os santos. Seria preciso ter caído numa desgraça imensa para pensar que sábios, santos e mestres não existirão mais.

Tudo está indicando, portanto, a posição do artista em face da nossa democracia.

Não só para defender uma “forma de ser” vinculada ao “ser brasileiro” como também para não sacrificar seu individualismo nos altares da violência.

Se arte é necessidade de expressão, se o artista não cria para si mas para transmitir a outros a sua emoção, claro é que arte é democracia.

Já disse o próprio Breton: não há cultura nem arte que não tenham mergulhadas, no povo, as suas raízes.

E disse a verdade.

Na encruzilhada

Em face do Estado novo, e neste elogio a Paulo Setúbal, não estou fazendo outra coisa senão reafirmar as idéias pelas quais sempre me bati, ao lado de outros escritores, desde a campanha “verdamarela” até ao movimento cultural e nacionalista do grupo Bandeira.

Na campanha “verdamarela”, pugnando por “uma mentalidade mais apropriada à realização do nosso destino”. No grupo Bandeira, pugnando por um “Brasil no original”, “contra as ideologias forasteiras e infecções culturais dissolventes da nacionalidade”.

Só um governo forte, dizia eu (O Brasil no Original, p. 262) entrincheirado em leis vivas, e não em ficções jurídicas que se vão tornando cada vez mais inoperantes, onerosas e ridículas, poderá “realizar” a democracia em seu sentido brasileiro.

Comunismo, a matéria esmagando o espírito; mal mortal. Democracia liberal, regime que não nos defendia; omissão mortal. Totalitarismo, violência anticristã e antibrasileira; remédio mortal.

Única solução: democracia brasileira em estado de legítima defesa.

Não nos arrastou, ainda, o drama que obriga o homem moderno a tomar, irremediavelmente, um dos dois rumos: o da direita ou o da esquerda.

Aquela inquietação a que alude o autor da “Carta sobre a independência” quando diz que muitos aspiram, e com razão, a sobrepor-se a esses dois mundos de prejuízos e de ilusões (coisa que não é fácil porque esquerda e direita têm, ainda, além do seu sentido político, um sentido fisiológico) não se verifica no Brasil. Aqui, felizmente, ainda podemos dizer que não somos nem da direita nem da esquerda, sem incorrer na covardia da neutralidade, antinatural e imoral. Não será neutro, pois, quem deixar de seguir um desses caminhos porque poderá dizer: a idéia de governo forte, entre nós, não é uma invenção de última hora, mas um fato histórico sem o qual o Brasil não teria existido. Não foi preciso pedir de empréstimo aos países totalitários a enquadratura de um regime que estava, sem tirar nem pôr, na origem do nosso destino. Antes de haver fascismo europeu ou qualquer outro “ismo” já o bandeirismo era a revelação instintiva do esquema político original do nosso País, dentro das linhas estruturais que hoje condicionam o Estado moderno: comando seguro e fraterna solidariedade dos indivíduos obedientes à firme unidade do comando. Nossa democracia, por seu turno, e antes de ser uma descoberta legal, é um ser vivo que aqui nasceu, aqui se desenvolveu através da História, desde que o nosso primeiro grupo humano entrou pela terra atrás das pedras verdes, lutando contra o comunismo tribal e contra a aristocracia latifundiária que ficara encastelada no litoral. Com o sangue desse “ser vivo” operou-se o milagre da raça nova, elidiram-se todos os preconceitos de cor, de credo e de origem. Com o solo imenso em que cresceu esse “ser vivo” se fez o seu habitat intransferível: uma geografia democrática, antitotalitária, violentamente contrária ao imperialismo que tem fome de espaço porque estabeleceu justamente nossa luta contra o excesso de espaço. Com a alma desse “ser vivo” realizou o brasileiro alguma coisa de mais íntimo e de mais profundo, para a correção do individualismo pela solidariedade social: é a bondade, com a sua função social e humana.

Sou por essa democracia, porque essa é a verdadeira democracia cristã. Quando Deus disse: é preciso que a mão esquerda não saiba o que a direita faz, foi porque não deu preferência a nenhuma das duas. Se o coração está colocado mais à esquerda do que à direita, é simplesmente para corrigir o que a mão direita faz. Pouco importa que uns povos se coloquem ao lado esquerdo de Deus, e outros se coloquem ao seu lado direito. Quando chegar a hora suprema, isto é, quando todos os povos tiverem que responder perante Deus, todos estarão colocados à sua frente, para que Ele os possa ver a todos, na mesma compostura.

Haverá quem prefira ser neutro...

A obra de Paulo Setúbal, no capítulo bandeira, tinha que me despertar, forçosamente, tais reflexões.

Sem ser político, ninguém foi mais pela democracia do que ele. Amigo dos humildes, sensível a todas as desigualdades sociais, votando verdadeiro horror à violência, dotado de um sentimento de bondade tipicamente brasileiro, só poderia conceber um regime de fraternidade e compreender, como dissera certo filósofo, que a onipotência é um vinho muito forte para a natureza humana.

Sob a capa de não-conformista ideológico haverá, entretanto, quem prefira ser neutro.

Mas Chesterton diz, e muito bem: não há nada mais perigoso do que o homem que se declara neutro, o homem que não tem idéias. Ele adotará a primeira que lhe subir à cabeça, como o vinho que sobe à cabeça do abstinente absoluto. Quando alguém rejeita toda e qualquer doutrina, quando se recusa a aderir a algum sistema, quando declara que já passou a época das definições, quando não acredita na finalidade do esforço humano, quando em sua própria imaginação essa pessoa se instala como um Deus, observando todas as formas de crença, sem pertencer a nenhuma, é porque voltou ao estado dos animais errantes ou das árvores inconscientes. E ainda é Chesterton quem, citando Os Três Soldados, de Kipling, o Herói e o Soldado, de Shaw, e A Máquina do Tempo, de Wells, diz que todos eles são didatas inveterados. Quando precisamos de elemento doutrinário, temos que apelar para os grandes artistas.

Bem sei que o tema é delicado, dizia acertadamente Cândido Motta Filho, em seu discurso de recepção na Academia Paulista de Letras. Bem sei que o tema é delicado, e que, debatido pelos doutos, continua a debater-se. Mas não sabemos, então, que desde Sófocles até hoje os artistas se destacaram pelos seus esforços políticos? Anatole France, em tudo um céptico piedoso e sorridente, não o era nesse ponto, quando dizia a Haurecourt: “É necessário, meu caro, que tomemos um partido. Na maior parte das vezes, política e literatura se confundem.” E relembrava o doce Virgílio fazendo a propaganda de Augusto. O autor do Cid combatendo Richelieu. Molière, campeão do rei e da burguesia laboriosa, contra a fidalguia agitada e descontente. A ironia de Voltaire, a sensibilidade de Diderot, a penetração de Montesquieu, a aspereza de Rousseau, Victor Hugo em face de Napoleão III. Pierre Brisson e Julien Benda discutem a mesma tese, e este último, para sustentar a neutralidade do escritor, que desejaria pairasse acima do tumulto radioso que é a vida. Pertencendo à pior casta de gente, que é a constituída por aqueles homens perigosos de que nos fala Chesterton (homens que não têm opinião e que não tomam partido) o autor de La Trahison des Cleres coloca o nacionalismo entre as paixões políticas que mais combate. Jacques de Lacretelle entra na discussão, citando Abel Hermant e Duhamel. Poder-se-ia reduzir o pensamento, pergunta Jean Sclumberger, num dos últimos números de La Revue Française, a l’office tout impartial de la balance?

Henri Massis, em seu L’Honneur de Servir, exclama: “nenhum escritor pode escapar ao serviço do mundo, pois é a própria vida do espírito quem o exige”. E, citando Gide, repete-lhe as palavras: “o homem que pensa, mas que encontra sua finalidade em si mesmo, souffre d’une vacance abominable.”

Quando um povo nasce, quem é que lhe anuncia a madrugada?

É o artista, são os cancioneiros anônimos que cantam como aqueles cojubins que nasceram só pra cantar ao amanhecer.

Quando um povo sofre, qual é a primeira voz que lhe anuncia o sofrimento?

É a do artista. A do poeta perdido na multidão, e que se serve da sua arte para exprimir antecipadamente o que os outros exprimirão mais tarde, pela palavra ou pela ação. Palavra e ação que nada seriam se não as condicionasse o sentimento que é o segredo de todas as forças, de todas as revoltas e de todos os triunfos.

Se há, portanto, alguém impossibilitado de ser neutro, na hora atual, é o escritor. Não direi o intelectual, que consegue fugir pela porta da inteligência, para viver contra a própria vida. Mas o artista, o pensador – aquele que mais sofre nas horas de sofrimento coletivo. Aquele que anuncia a madrugada, quando vem amanhecendo uma nova época no destino de um povo.

Em conclusão

Senhores acadêmicos.

Estais no planalto da cultura brasileira.

Obscuro bandeirante, vim até aqui.

Ousei subir até onde estais.

Não apenas para colaborar convosco em vossa imensa obra de brasilidade como também para reconhecer que sois o reduto supremo em que se apóia, neste instante, a nossa soberania de espírito e de sentimento.

E também por acreditar que a defesa do Brasil, em sua originalidade, nunca foi tanto, como agora, uma função espiritual.

A grande história da Cadeira que, com o vosso consagrador sufrágio, me concedestes, está ligada à pequena história da minha sensibilidade.

Luís Guimarães Júnior, cuja “Visita à casa paterna” vivi declamando em menino, é o poeta que primeiro entrou em minha formação sentimental. João Ribeiro foi quem me distinguiu com o maior elogio a que eu pudesse aspirar na vida, chamando-me “brasileiro até à medula dos ossos”. E Paulo Setúbal? É aquele em cuja obra de escritor, em cujo entusiasmo pelos feitos de nossa gente e pelas coisas de nossa terra, irei sempre buscar inspiração segura para o meu nacionalismo, que é minha razão brasileira de humanidade. Faltava-me ainda, para redourar tão bonito sonho, agora transformado em mágica realidade, fosse eu recebido por Guilherme de Almeida: pois nem isso me faltou à emoção desta noite.

Senhores acadêmicos:

Quis o destino que houvesse vinte e uma formas de servir ao Brasil. Deu-me uma delas. Estou satisfeito com a forma que me coube nessa partilha fraterna, nessa divisão geográfica de trabalho para um só objetivo histórico.

Mas, bandeirante obscuro, ia eu dizendo, vim até ao planalto onde estais vós, e onde guardais, viva como nunca, a chama sagrada do espírito brasileiro. Sopram ventos maus, lá fora. Aqui dentro, porém, esta chama simbólica estará sempre acesa. Porque Pátria é espírito. E o espírito da Pátria é imortal.

Venho de Piratininga, senhores acadêmicos.

Só não trago esmeraldas.