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Carlos Nejar

LUNALVA

Se quiserem saber quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se amam
Loucamente

Se quiserem saber do meu destino
- Não sei do meu destino
- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada

Se quiserem saber donde venho
- Não sei donde venho
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas

Não
Não me amem tão depressa
"Não me compreendam tão depressa"
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão cotidiano

O pão que trago comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de beber
Do Fogo e do Sangue

(Poema deixado por Silbion na entrada "dos Infernos".)

(Sélesis, 1960.)

 

QUALIFICAÇÃO

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.

(Danações, 1969.)

 

APREENSÃO

Procederam a apreensão
dos instrumentos seguintes,
encontrados juntos ao réu.

O chapéu
e a velha máscara,
que se gruda contra a cara,
ruga.

As idéias, ostras
na garrafa, impassíveis sob
a aba.

O casaco e a camisa,
a vendarem-lhe o peito,
catapulta de pássaros,
onde o inferno
late, uníssono.

Os livros,
com moscardos sobre a borda.
Neles vagam javalis,
presos à cauda.

E, por fim,
os orifícios dessa fé,
aguçada, calcinada,
mas em pé.

(Danações, 1969.)

 

NO TRIBUNAL

Eu e o tribunal,
e sua fria mudez.
O juiz no centro e no fim,
o rosto girando em mim,
farândola.

Vim, com a escura coragem,
de um réu antigo e selvagem.
O que me prendeu,
lutou comigo e venceu.
Vacilava em me reter,
mas eu que me entregava,
por saber que minha chaga
estava exposta na lei.

Giram as mãos
e os pés atados. O juiz
é um vulto que eu mesmo fiz
com meus esboços. O juiz
no centro, no fim,
no tribunal onde vou,
no tribunal donde vim.

E assim me condenei
a permanecer aqui.

(Danações, 1969.)

 

DO TRATO COM A MORTE

Sempre tratei a morte
como toira pesada.
sempre tratei a morte
na lavrada.

sempre tratei a morte
como um odre.

À vida, a morte me trata
com a cautelosa pata.

II

O morto
como um móvel,
na sala, de perto,
conformado e justo
no bote, coisa
entre coisas.

Seu rosto pendurado
no corpo, engaste,
disciplina férrea
do tronco, ave
empalhada no pouso.

Sempre tratei a morte como toira pesada.

III

O morto
com seus navios
atracados por estrago;
desprovido de companhia
ou casas, anódino,
e que não finge.
no cargo.

O morto
e as ânsias
entupidas na laringe,
moscas.

O morto
e a hortaliça no estômago,
ao reverso de tudo
sem trajeto ou porto.

Sempre tratei a morte
na lavrada.

IV

O morto e seu motor paralisado,
com ferrugem nas correias e peças,
mofo nas hélices.

O morto, troféu sem dono,
dentro do ar se infiltra
e se põe sob a tampa
do acontecido.

Tudo na pele envidra
e o regato ds sentidos
ali, não vinga.

Forço-o
como quem arromba a porta
de um prédio em cinzas.

Sempre tratei a morte
como um odre.
À vida, a morte me trata
com a cautelosa pata.

 

A PAZ

Nunca terás
a paz.
Por mais que a busques,
com ou sem funcho,
brota o quintal.

A paz palmeira
cresce por trás
de uma trincheira.

Pobre de ti
que a procuras.
Bebes o ódio
na tua cuia.
Comes o ódio,
bolo em fatias.
Quem te visita?

O ódio sempre,
adulterino,
bichado dentro:
flor, passarinho.

Palmilhas tantos recintos,
edifícios, labirintos.
Só a paz não te acompanha.
A paz não gera teu filho
e se corrói com tua fama,
com teus talhares, domingos.

Buscas o que te busca.
Escutas a lamúria, sem telégrafo,
dos que a esposam, viúva.

Nunca terás a paz
nos sótãos do tempo,
sob o lençol do sol,
amada escura.
Renascendo, vivendo,
castidade dura,
nem o amor te dará
o seu intento.

(Ordenações, 1969-71.)

 

DAS MEDIDAS

Todos me avaliam, mensuram, somam
os atributos e os glóbulos.
A cabeça e justamente os olhos.

A lucidez me dói
como um revés
de não ser nada disso,
de não levar o chapéu nos comícios,
o chapéu do argumento nítido
que cabe na frase ou na testa.

Medem-me, terreno
a ser comprado e arado
e se o for, o endereço
não será o do amor.

Somaram-me
na regra do sabre
ou na coronha
dos princípios nobres.

Não valho o que me pagam.
Não valho nada. Sou álamo
na praça, asno de encomenda
e para que sirvo
senão ser álamo e asno,
montado, desmontado
pelos deuses que fardo?

Não valho. E não aceito
o que me pagam

(Ordenações, 1969-71.)