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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso Arinos

RESPOSTA DO SR. AFONSO ARINOS

Exmo. Sr. Presidente da República, minhas senhoras, meus senhores:

Tendes razão, Almirante, em supor que na vossa eleição quis a Academia render culto à Armada Nacional e ao patriotismo. E não preciso dizer-vos quanto vos honra o serdes escolhido como expressão daquela homenagem e deste sentimento.
O nosso objetivo é fazer da Academia Brasileira, quanto em nós couber, o que chamais “a quinta-essência da raça brasileira”, até para evitarmos o escolha apontado nestas palavras de um pensador:

“As academias são o refúgio das idéias e do gosto da era precedente; ao mesmo tempo que um homem de ciência chega à superioridade em qualquer de seus ramos, torna-se neste um obstáculo, porque guardará decerto os erros em voga durante a sua mocidade e que a nova geração já tem refutados.”

E Haeckel, na sustentação e propaganda da teoria evolucionista, confirma aquele conceito a propósito dos obstáculos que lhe ergueu no caminho a autoridade científica do sábio Virchow.
Onde, porém, vos enganais, é crendo que na vossa obra escrita faleçam as condições indispensáveis à vossa admissão neste grêmio. Quanto a isso, vós mesmo vos refutais no correr do vosso discurso, onde provais, também, que na marinha militar da todo o mundo florescem aptidões literárias casadas com as aptidões científicas e técnicas. Além disso, conheceis perfeitamente que entre os grandes monumentos literários da humanidade estão inscritas obras de militares como vós, que aliaram aos louros de seus feitos na guerra, a glória de os terem sabido transmitir ao futuro pela mais perfeita forma da delicada arte. A Anábase, de Xenofonte, os Comentários, de César, mais modernamente as memórias de Montluc, as de Joinville e o tão celebrado Memorial de Santa Helena, são considerados entre os monumentos acima referidos, confirmando, aliás, o que Luís de Camões já tinha sabido exprimir nos conhecidos versos.

Provastes, do modo mais concludente, que nunca houve antagonismo entre as virtudes militares e o gosto literário; como exemplo desta aliança narrastes as peripécias da campanha em que fostes parte, dando-nos, ao menos quanto eu saiba, o único trabalho crítico até então existente, no ponto de vista militar e nas nossas letras, sobre a guerra do Paraguai.
Estas mesmas cadeiras da Academia não nos evocam a figura inolvidanda de Taunay, sussurrando-nos o nome tão cavalheiresco daquele soldado-escritor, que deixou de um dos mais dramáticos episódios da sua vida militar e da mesma campanha, esta recordação imperecível, a Retirada da Laguna?
Não foi ele, decerto, o primeiro, nem o último, a sair das escolas militares para as letras, a política, a diplomacia.

Notastes a singularidade da sorte que vem colocar o autor da Guerra do Paraguai, o intrépido comandante do Barroso, na cadeira de Casimiro de Abreu, o meigo e sentido poeta das Primaveras; na mesma cadeira de Teixeira de Melo, o suave poeta das Sombras e Sonhos! Parece um contraste proposital.

Casimiro de Abreu, o magoado intérprete de tantas mágoas do povo, o malogrado cantor das próprias desditas, que, tendo morrido aos 23 anos com a alma torturada pela dureza de um pai incapaz de compreendê-lo, pela crueza de um morbo fatal e pelas amarguras do exílio, renova a sua paixão no eterno ramadã dos sofrimentos alheios, sempre novos e sempre os mesmos; Teixeira de Melo, o singelo e tímido cantor do sepulcro de si mesmo,
Eu sou como o sepulcro de mim mesmo.

O modesto e infatigável obreiro das Efemérides e de tantos outros subsídios históricos que dormem nos Anais da Biblioteca Nacional, de que foi diretor, e no Dicionário Bibliográfico; Casimiro de Abreu e Teixeira de Melo, dois elegíacos, dois poetas líricos, que tinham medo de magoar as pétalas de uma flor – sucedidos nesta mesmíssima cadeira pelo cabo-de-guerra que repeliu a canhão e a fio de espada a abordagem, que passou impávido sobre torpedos e à boca de baterias ululantes!

Mas há talvez nesse contraste uma lição sutil. Na mente e no coração das massas andam associados os grandes engenhos que idealizam e executam. À tona das civilizações flutuam confundidos poetas e guerreiros. E foi decerto por isso que, entre os celtas do Norte e escandinavos, os bardos eram como sacerdotes, sem cuja prece não podiam começar as batalhas e sem cuja bênção as almas errantes dos guerreiros mortos não podiam ter o repouso da sepultura na terra nem a glorificação no paraíso.

A façanha do guerreiro só pode brilhar intensa nas páginas do poeta. Homero e Aquiles completam-se: um não poderia existir sem o outro. E as duas faculdades extremas, a imaginação criadora do sonho e o talento positivo fundador da realidade, embora não possam reunir-se em determinado indivíduo no mesmo grau de intensidade – não se repelem fundamentalmente.

Já Lord Rosebery notou no seu Napoleão, Última fase, que a imaginação ardente é um dos característicos dos grandes homens de ação. Sem ela o jovem vencedor de Marengo e das Pirâmides não teria criado aquelas frases lapidares, que, sintetizando em forma intensa um pensamento, soavam como clarins e valiam vitórias.
Tomemos o mais antigo dos diários militares conhecido, cujo autor é o mesmo comandante da expedição que descreve.

No pronto de vista militar é ainda um modelo, no dizer do seu tradutor, aos generais e oficiais de todas as eras, quaisquer que sejam as mudanças sobrevindas na tática; literariamente é a memória onde o autor deixa falar os acontecimentos sem visar a efeito, dá a cada personagem vida, movimento, interesse; apresenta-se-nos tal qual é, sem orgulho nem falsa modéstia, contando com perfeita naturalidade o que fez, não cuidando de tomar na narração nem mais nem menos lugar do que teve na expedição, falando de si mesmo na terceira pessoa e com tanta simplicidade e indiferença, como se de outrem tratara.

Acode-nos a propósito o tão famoso episódio daquele capítulo em que a tropa, tendo atravessado a cidade de Gímnias, cujo arconte lhe forneceu um guia para, sob pena de morte, levá-la em cinco dias ao Monte Sagrado – executa as últimas das 215 marchas, nas quais venceu os 5.800 quilômetros de seu percurso por terra inimiga combatendo sem cessar. Ei-la que entesta com a famosa montanha ao cabo do quinto dia. Momentos depois um alarido selvagem atroa os ares. É decerto a vanguarda assaltada pelo inimigo. A cavalaria, abalada após o chefe, perlonga o flanco da coluna em marcha para levar socorro aos camaradas da frente. Mas a grita cresce. Infantes, cavaleiros, retaguarda, trem de equipagens, tudo se reúne no alto – e um clamor gigantesco enche a multidão: “O mar! O mar!” Então atiram-se uns aos outros: os soldados saltam ous pescoços dos capitães e generais, beijando-os com os olhos arrasados de lágrimas. E, sem que ninguém soubesse como, nem por ordem de quem, surgiu de repente um monumento tosco, feito de pedrouços e escudos despedaçados, para guardar a memória daquela data.

Na alegria com que vos recebe este grêmio, Almirante, há alguma cousa do entusiasmo dos gregos de Xenofonte – hoplitas, peltastas, cavaleiros – quando, ao vingarem o Teques, descortinaram o mar. E eu não faço aqui outra coisa senão, como aqueles soldados, ajuntar as pedras do monte e cobri-Ias de escudos rotos, para erguer um padrão que comemore a entrada da Marinha Nacional no primeiro grêmio literário do Brasil.

O mar! Ele representava para os gregos, como para todos os homens civilizados, um dos sentimentos em que fostes buscar, Almirante, o motivo de vossa admissão na Academia – o da Pátria. Era-lhes a imagem dela quando, a seus olhares nostálgicos de filhos ofegantes da ânsia de revê-la, aflorou na amplidão azulada o que o seu poeta chamava “o sorriso infinito das ondas”. Bem sentimos, bem compreendemos a crepitosa alegria daquele bando êxul de praieiros, habituados à vastidão e ao frescor da planura marinha, quando, depois de tresmalhados por mais de um ano, lograram escapar ao âmbito estreito de um continente hostil, por onde erravam marrando com os cerro e os penhascos. Bem compreendemos, bem sentimos aqueles gritos da exultação quando se deparou à coluna pugnaz dos quase prisioneiros dos bárbaros o caminho da pátria no esteiro das naves lobrigadas ao frol das águas e no vôo das gaivotas, aladas umas e outras, evocando-lhes ao vivo imagens longo tempo afagadas e acenando-lhes com esperanças há tanto acalentadas em vão.

Este não era decerto aquele mar nevoento dos poemas de Ossian, onde os elfos, vestidos de trevas, derramam a traição e a morte; nem aquele cujo terror fechou por milênios as nossas plagas ao convívio da Europa ocidental; foi, sim, aquele onde a arte, planta nativa, medrou e desentranhou-se em flores, como nos lagos dos nossos jardins medraram e florescem os nenúfares.

O seu poder mágico, nós o estamos sentindo agora, sentiu-o o homem sempre, porque o mar, na sua amplitude e na sua mobilidade, é a mais larga e potente expressão da eterna e incessante aspiração humana para a liberdade. Sendo ele, com efeito, a mais vasta porção da superfície da Terra, é também a que nunca pôde, nem poderá ser dominada, nem possuída por nenhuma aglomeração humana. E assim condenado pela natureza a uma neutralidade perpétua, estrada sempre livre e sempre grande, ele concretiza a idéia de logradouro comum de todas as raças, o ideal nunca atingido, mas nunca esquecido, da solidariedade humana.

Afora a faixa da população que orla o nosso litoral, nós somos, a mor parte de nós brasileiros, um povo intracontinental. Pois bem: é no mais longínquo habitador de nossos sertões, na mais remota cafua de caipira ou de matuto, que mais veemente encontramos a misteriosa nostalgia do mar, mais forte que a fascinação do monstro. Quantas vezes, a mim, que nasci a 1.200 quilômetros da costa e numa terra onde ainda hoje o ponto mais próximo de estrada de ferro fica a mais de 300 quilômetros aquém; a mim mesmo quantas vezes não se depararam patrícios cujo anelo supremo era poderem, como os gregos, subir o Monte Sagrado para embeberem o olhar no infinito azul do oceano!

E é talvez no nosso vocabulário do sertão que mais se guardam os termos marítimos. Navegar, no sentido de transitar freqüente¬mente por um ponto; exemplo: – as tropas navegam por este caminho; tolete, no sentido de pauzinho roliço, como aquele a que se prendem os remos; arribada, no sentido de voltar atrás; à toa, correr a coxia, à riba, de riba, amarrar e mil outros – são vocábulos náuticos de uso diário no sertão. Muitas vezes, à saudação: “Como vai?”, a resposta é: “Vou remando”, para significar que se vai mansamente, mediocremente, sem vantagens, mas também sem obstáculos.

Ora, essa atração instintiva pelo canto da sereia, cujas lendas, uabstratum da poesia popular milenária do Luso, existem tão vivas entre os sertanejos, vem justificar a seu modo a observação científica de Lapparent.
Este, tratando da morfologia terrestre, assegura que o desenvolvimento e a civilização de cada país são o resultado da proporção entre a extensão da linha da costa e a massa do mesmo país.
Quanto maior é a linha da costa em relação à massa, maior é a facilidade de desenvolvimento e civilização. Assim, na Grécia, a cada 83 quilômetros quadrados de território corresponde um quilômetro de costa; no Peloponeso, considerado à parte, a cada 20 quilômetros quadrados de superfície corresponde um quilômetro de costa; mas a proporção segue neste crescendo:

Por quilômetro de costa:

Europa                                            280 quilômetros de território
América do Norte                           407      ”              ”         ”
Austrália                                          584     ”               ”         ”
América do Sul                                689     ”               ”         ”
Ásia                                                 763     ”               ”         ”
África                                           1.420     ”                ”         ”

De sorte que a África, sendo dos continentes o menos favorecido quanto à extensão das costas, proporcionalmente à massa do território, é também o mais atrasado.
Vedes, pois, Almirante, que elevando em vossa pessoa o homem do mar, a Academia não honrou somente o patriotismo, mas rendeu também homenagem ao sentimento de solidariedade humana, à idéia de civilização e de liberdade.

Somos uma nação nascida do mar. A lenda do Caramuru é como o símbolo da nossa origem, da origem da nessa força e da força dos nossos destinos. Como aquele Diogo Álvares que surgiu diante dos olhos assombrados dos tupinambás escorrendo água marinha, é do mar que emergimos para a História.
Vós mesmo nos referis em vossa conscienciosa e documentada Formação da Armada Brasileira

“De todas colônias americanas a única que, por ocasião de emancipar-se, possuiu elementos para lutar contra o poder naval da metrópole, foi o Brasil, circunstância esta ainda não notada explicitamente por nenhum historiador, mas que talvez tenha sido a que influiu mais poderosamente para abreviar a nossa independência.”

De fato, a 11 de março de 1808, logo depois de aportar às nossas plagas a família real, foi o Visconde de Anadia confirmado no cargo, que já exercia na metrópole, de Ministro e Secretário de Estado da Marinha, sendo criadas as repartições do Quartel-General da Marinha, da Intendência, da Contadoria, a Academia de Marinha, o Conselho Superior Militar e o Hospital de Marinha, “não se tendo”, acrescentais, “omitido até a regulamentação do corte de madeiras próprias para construções navais”.

A proclamação da independência deu-nos um respeitável núcleo de armada com os navios da marinha real portuguesa surtos no porto do Rio, aos quais Martim Francisco, o Ministro da Fazenda de então, veio ajuntar os adquiridos com o produto da subscrição nacional, para a defesa da extensa costa do país. E foi esta esquadra que não só nos garantiu a unidade nacional na guerra da independência, impedindo, à ação enérgica do nosso primeiro almirante, Lord Cochrane, a separação das províncias do Norte, como ainda nos deu a supremacia do mar na guerra do nascente Império, de 1825 a 1828, contra os Estados do Prata.

Essa guerra foi a primeira e mais eficaz escola dos marujos, como no-lo assegura o Ministro da Marinha Melo e Alvim, no rela¬tório de 1829, apresentado à Assembléia Geral e citado em vossa obra:

“Eu sinto a satisfação de poder afirmar que a nação possui, atualmente, com pequenas exceções, um corpo de excelentes oficiais de marinha, os quais, tanto pela sua perícia em tudo que respeita a profissão naval, como seu valor e prática de guerra, adquirida no fogo dos combates, se acham habilitados a prestar os mais relevantes serviços à nação.

E não faltou, no postrídio da nossa independência para sagrar a Armada brasileira ainda infante, uma façanha homérica: o episódio da fragata Niterói, que, sozinha, perseguiu, desde a Bahia até a foz do Tejo, a armada real retirante, com um comboio de 84 navios, dando-lhe caça e apresando-lhe embarcações, até poder, como primeira, desfraldar ufana, do penol da gávea, às brisas do Velho Mundo, o novo pavilhão brasileiro.

Depois, narrais todas as vicissitudes da adaptação do vapor à esquadra, desde 1830, em que a nossa marinha adquiriu o primeiro, para vendê-lo no ano seguinte por ter falecido o engenheiro encarregado da máquina e não se encontrar outro para substituí-lo. Entrementes, os nossos estaleiros não cessaram de fabricar navios, comprávamos outros ao estrangeiro, para atender à repressão das discórdias civis e à dificílima e acidentada repressão do nefando trafico dos negros, em que nos empenhamos, vós o reconheceis, com verdadeiro afinco e a máxima sinceridade.

Em 1847 tínhamos apenas cinco naviozinhos a vapor, empregados no serviço dos correios e no policiamento da costa contra o tráfico escravo. Foi então que Holanda Cavalcanti encomendou na Inglaterra o D. Afonso, que devia celebrizar o futuro Tamandaré. À construção do D. Afonso seguiu-se aqui mesmo, na Ponta da Areia e no Arsenal, a do Pedro II, Paraense e Recife. Em seguida fazíamos vir da Inglaterra o célebre Amazonas e pela mesma época o Almirante Greenfell executava a passagem de Tonelero, a primeira ação naval em que tomaram parte navios brasileiros a vapor.

Em 1853 expedíamos pela primeira vez um vaso da Armada em viagem de longo curso, a corveta Baiana, sob o comando de Francisco Manuel Barroso, o herói de Riachuelo.
Em 1857 seguia a Imperial Marinheiro, na nossa primeira viagem de instrução, pelos mares da Europa, sob o comando de Torres Alvim, futuro Barão de Iguatemi. Mas, já então o nosso zelo amor¬tecera e a guerra do Paraguai nos encontrou quase desarmados, conforme o testemunho dos sobreviventes da campanha, os depoimentos respeitáveis do preclaro brasileiro Visconde de Ouro Preto, na Marinha de Outrora, e de Joaquim Nabuco, no seu Um Estadista do Império, além da palavra oficial, que citais, do Ministro da Marinha de então, Araújo Brusque.
Ora, este fato, ao lado de tantas outras razões, deveria eximir-nos da culpa que nos irroga ilustre e respeitável compatriota,  dizendo que “vistas ambiciosas de absorção eram os verdadeiros móveis da política do Brasil nessa época”, e que “a falta de elevação mental e moral do governo do ex-Imperador nos conduziu a uma calamitosa guerra entre povos irmãos”.

Menos injusto para conosco foi aquele autor anônimo de um panfleto da época, Maquinaciones del Brasil, pois este busca uma causa natural mais alta – embora igualmente falsa – do que os simples manejos da política ou a falta de elevação mental de um governo: o próprio instinto de conservação, a necessidade inelutável de território ao sul para a raça branca colonizadora, que perece no esbraseamento das nossas terras tropicais. Para o interessante anônimo platino, o Brasil é a África americana.

Mas, deixando de parte todos os argumentos que poderíamos invocar contra semelhante asserto do nosso compatriota; não falando no testemunho insuspeito de contemporâneos estrangeiros, nem na desproporção entre o exército paraguaio e os dos demais países sul-americanos, inclusive o nosso, reduzido a 9.000 homens, quando aquele, robusto, aguerrido, adestrado, instruído, chamado até “formoso” por um ministro estrangeiro, foi avaliado por Mastermann, pelo ministro inglês Gould, o Coronel Francisco Martínez, o Tenente-Coronel de artilharia Lucas Corrillo, o General Caballero e o Coronel austríaco Wiesner, entre os extremos de 55.000 e 100.000 homens, como se vê na obra monumental A Guerra da Tríplice Aliança,  anotada com extraordinária riqueza de documentação, sagacidade e critério pela altíssima competência do Barão do Rio Branco; não falando na necessidade iniludível da nossa intervenção armada na Banda Oriental, que López tomou como causa da guerra, intervenção tardia em vista do permanente estado de discórdias no território vizinho, onde foram muitas vezes depredadas estâncias de patrícios nossos e trucidados nossos cidadãos, e tudo sem punição legal possível por falta da ação de um governo regular no país, dividido entre as forcas rivais de Venâncio Flores e de Aguirre; deixando ainda de parte os documentos oficiais da missão brilhantíssima do Visconde do Rio Branco e do Conselheiro Saraiva; o apresamento do Marquês de Olinda e o conseqüente e longo martírio de Carneiro de Campos com seus companheiros de infortúnio; pondo finalmente de parte a própria invasão de Mato Grosso com a hecatombe de famílias brasileiras – basta-nos apontar uma causa geral e profunda para o rompimento da guerra: o choque inevitável entre duas correntes de civilização, uma oriental e teocrática, sobrevivência da tradição, ou última vaga a quebrar-se ali, da dominação inca e das reduções jesuíticas; outra leiga, industrial, democrática, meio anárquica, européia enfim.
A primeira, quiçá a mais própria e a mais consentânea com a grande massa da população indígena, só podia subsistir dentro de si mesma com o mais rigoroso isolamento do mundo.

Praticou-a superiormente o sombrio Francia, que por 26 anos, de 1814 a 1840, foi ao mesmo tempo – Licurgo de alma cabocla – o supremo governo, o supremo agricultor, o primeiro negociante, o primeiro professor, o papa do Paraguai. E nem faltou a.esse tipo faraônico de ditador sul-americano o cenário empolgante das velhas reduções jesuíticas descrito por Chateaubriand, nem o culto da população, que, reza a lenda, prostrada por terra nas ruas, se não tinha tempo de recolher-se às casas, escondia o rosto nas mãos, quando o sino grande da catedral anunciava aos quatro ventos o passeio do seu senhor.

O isolamento, absolutamente necessário a essa forma oriental de governo, é-o a todas as sociedades, povos ou nações, cuja constituição moral ainda não se fortificou pela ação secular ininterrupta da disciplina. Esta disciplina secular, isto é, a vigência de uma lei durável, de um núcleo de instituições e costumes, a conquista, enfim, do que Bagehot chama a “fibra legal” – é o primeiro passo da civilização. O segundo passo é poder quebrar, sem destruir, os velhos usos conservadores, por atingir alguma cousa de melhor. Todo o segredo da força e da grandeza das nações está neste equilíbrio – a capacidade de variarem dentro de si mesmas. Ele traduz a propriedade fundamental dos organismos – a dupla tendência que cada descendente revela, ao mesmo tempo, de assemelhar-se ao ascendente e de diferir dele ou, numa frase, a tendência das semelhanças e dos contrastes. O “característico de uma civilização parada é matar as variedades na infância”. E o grande obstáculo que a história encontroou na marcha das civilizações, assegura-nos o já citado autor, não foi o que as deteve no primeiro passo, mas o que lhes retardou o segundo.

O regímen de Francia sobreviveu a seu executor, cujo governo continuou da fato após a morte, mesmo sem intervenção da máxima – os mortos governam os vivos: pois, é sabido, só depois de cinco dias do falecimento do ditador, quando a decomposição do cadáver naquela terra tropical nem sombra de dúvida podia deixar nos mais descrentes, foi que se animaram a penetrar no aposento do grão-mestre do Paraguai. Subsistiu ainda sob Carlos López e só no governo de Francisco Solano López, que seu pai fizera viajar a Europa, de onde lhe veio decerto a idéia de um ensaio de colonização francesa na sua Nueva Burdeus, foi que se desvirtuou n sistema de Francia e, quebrado o encanto à intervenção intempestiva de López II na política do Prata, soçobrou mais uma vez na América do Sul, onde ficou definitivamente estabelecida, com as línguas da Europa e suas instituições, a supremacia da sua raça e das sub-raças filiadas naquele tronco.

Tais conflitos, pois, têm as mesmas raízes profundas das leis cósmicas, que restabelecem a harmonia dos mundos.
A nossa pobre ciência não pode conhecer-lhes as causas, senão quando constatar-lhes os efeitos. Nós os encontramos a cada passo, na nossa natureza. Nunca me há de esquecer, por exemplo, um quadro de campo de batalha que me impressionou a alma nos dias de minha meninice. Era uma luta entra insetos. À sombra de uma árvore, no chão limpo, um companheiro de campo mostrou-me uma infinidade de pequeninos corpos de abelhas; no galho, acima, a colmeia salteada, rota, vazia de mel e de viventes, manifestava no mudo e modesto abandono a dupla devastação do saque e da morte. Mas o enxame de corpozinhos que juncavam o solo embaixo, narrava com a mais sentida eloqüência o heroísmo da defesa.

Não! Atribuir a causa de tão dura guerra à falta de elevação mental e moral de um governo é, ou amesquinhar o povo, ou exagerar a importância de um homem. Não foi decerto devido a política nem a governo que, mais de dois. séculos antes, o regímen que Francia tentou personificar, ampliando-o e unificando-o, sofreu o rude embate dos mamelucos de São Paulo. É deveras brutal a cena, que nos refere o Padre Montoya,  da entrada dos 140 paulistas com 150 índios tupis na redução de Jesus Maria, águas da lagoa dos Patos, todos muito bem armados de escopetas, vestidos de escupis, ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, que os cobria dos pés à cabeça, marchando ao som de caixa, bandeira tendida e ordem militar. Invadiram o povoado sem esperar razões, – dispararam os mosquetes, acometeram a Igreja e pelejaram seis horas seguidas, das oito da manhã às duas da tarde, queimando, esquartejando, arrasando. Passava-se isto no dia de São Francisco Xavier da era de 1637.

É bárbaro, convenhamos. Mas foram esses homens que nos deram o território e a fronteira da pátria; foram eles, na sua aparente incoerência, os instrumentos da civilização.
E nesta terra de América, tão misteriosa ainda, onde a arqueologia guarda tantas surpresas para o futuro, conflitos como aquele entre correntes contrárias de civilização existem na história pré-colombiana: os Incas de Tuiuantsuiu, desde Manco-Capac até Huascar, já encontraram aqui os Aimarás, representando uns e outros costumes, línguas, religião e instituições diversas que se entrebateram, reagiram umas contra as outras, misturaram-se, repeliram-se até se acamarem dentro dos dilatados limites de um império, à forte ação de um regímen pacientemente firmado pela autoridade aos Incas.

A viagem de Colombo veio apenas reatar na América uma civilização interrompida por milênios de isolamento. Quem sabe se os nossos selvagens não eram, eles mesmos, ruínas de velhas civilizações, ou, no dizer de Martius,  resíduos de muito antiga, posto que perdida história?
Joseph de Maistre  esboça a teoria de que o selvagem não é senão o vestígio do antigo homem civilizado. Será por isso que na cerâmica de Marajó há um quê da pureza das formas e da harmonia de linhas dos artistas da África? Será também por isso que o velho Montaigne, escrevendo há três séculos de nós, achou numa canção tupinambá, que mandou traduzir, um sabor anacreôntico?

Do fato mesmo de serem inevitáveis tais conflitos, quaisquer que sejam as causas ainda não reveladas pela ciência; a despeito de todo o esforço pela manutenção da paz no mundo – a ironia das cousas fez com que as sessões da Conferência de Haia tenham como salvas regimentais o canhoneio dos marroquinos!
Por isso, tendes mais uma vez razão, Almirante, de arredar-vos da escola que qualifica o patriotismo de sentimento estreito e bárbaro.
Por muito tempo ainda será digna de ser praticada a máxima de Cromwell: “Tem fé em Deus, e conserva seca a pólvora.”

“Os progressos da arte militar constituem”, assegura um pensador, “o fato mais notável – eu ia dizer o mais brilhante – da historia humana. A força militar da raça humana tem constante e invariavelmente aumentado e tende a concentrar-se nos grupos que chamamos as nações civilizadas.”
Abrindo as portas aos generais, a Academia proclama não só a necessidade das instituições que eles representam, como aparelho indispensável à vida nacional, mas também o incessante aperfeiçoamento das mesmas, como condição indispensável à nossa civilização.

Trazeis-nos, pois, algo de novo e forte. A vossa pessoa não evoca simplesmente o livro, mas a ação. O engenho que urdiu a vossa obra literária conduziu primeiro o Barroso através das correntes do Paraguai, sob a descarga dos possantes canhões alinhados nos cinco quilômetros de barrancos de Humaitá. Antes de escrever as vossas páginas de história, vós fizestes, vós vivestes estas mesmas páginas. Deixai pois que o olhar afetuoso de quem dá as boas-vindas ao novo confrade considere ao longe o marujo nas tintas suaves do passado, que, segundo a belíssima frase de Guilherme de Humboldt, é eterno e imutável como a morte, tendo contudo o calor e o interesse da vida. Deixai que eu traga a este salão o jovem oficial, com o rosto fulgorizado pela dupla madrugada da mocidade e da vitória.

Evocais também uma era, representais uma geração; vindes trazer-nos fidalgamente e disparzir por entre estas tranqüilas poltronas onde tanto nos entretivemos com questões de Gramática os louros das batalhas.
Recebendo-vos, como bem o adivinhastes, não simplesmente é mais um consócio ilustre a vir sentar-se a nosso lado e tomar parte em nossas deliberações: vemos em vossa pessoa não só o autor da Missão do Oficial de Marinha, traduzida e louvada em revistas estrangeiras, o narrador singelo, vivo e empolgante da Guerra do Paraguai, não só o relator consciencioso e finamente observador da Primeira Missão à China, não ainda o expositor claro e persuasivo da Organização Naval, o escritor tão sincero e por vezes tão eloqüente do Dever do Momento, mas também o “Barão da Frente” dos versos de José Bonifácio e da jornada de 19 de fevereiro de 1868:

Foste o primeiro – sim! o teu navio
Abriu caminho à lúcida carreira:
Se te esqueceram – pouco importa! A glória
Brilha inda mais se a lembram derradeira.
 ............................................................................
Foste o primeiro – sim! Ali teu vulto
A muralha de ferro ergueu fremente!
Já não tarda o porvir; as trevas fogem!...
Serás entre os barões – Barão da Frente!

Barão da Frente... é o grito da justiça,
Há de sê-lo também da História um dia!
Repetem-no, ao sussurro da tormenta,
O som do mar e a voz da ventania!

Assistimos a vosso lado todos os precedentes do tremendo passo, pela viva e quente narrativa que dele fazeis.  Temos a visão do Brasil de quarenta anos atrás. Palpitamos nos anseios da multidão, esbravejamos nas discussões da Câmara diante da protelação da guerra e daquele como estarrecimento aos pés da grande Esfinge de Humaitá. Tomamos parte na atividade e energia do Ministro Pinto Lima, que dos nossos estaleiros e dos europeus arranca encouraçados prontos para a ação; teimamos com Inhaúma em não arriscar a esquadra a uma perda certa ou a uma façanha que ele reputava inútil, quando, em carta ao General Mitre, dizia cinco meses antes:

“Não farei a vontade, quero antes um conselho de guerra, para o qual me estou preparando; tenho-lhes mostrado que não temos as balas, que nos perigos estou sempre na frente; o que não posso é fazer impossíveis – transpor um passo cheio de perigos naturais e artificiais, defendido por mais de 80 peças de grosso calibre, com uma esquadra de dez navios maus, estragados, além disso, por três combates, é um impossível...”

Sofremos, durante os seis meses do assédio, todas as angústias e privações daquela esquadra “internada no continente sul-americano a 1.000 milhas do mar”,  esfogueada, em dias de calor ardente, dentro do bojo dos couraçados, alvejada pela pontaria dos canhões inimigos e pelos assaltos, mais cruéis, sem dúvida, das febres, do beribéri, do cólera.
Vibramos nas enérgicas injunções do jovem Ministro da Marinha Afonso Celso, quando menos de dois meses antes do feito determinava ao Almirante:

“Quanto posso julgar, é chegada a ocasião de verificar a passagem. Não se desconhecem as dificuldades, mas não há feito distinto sem empresa arriscada. E precisamos desse feito não tanto pela glória como pela necessidade de concluir.”

Ponderamos todas as dificuldades da empresa, comparando-a com a que executara Farragut na subida do Mississippi – e dessa comparação resultava, à evidência, o engrandecimento do nosso perigo. As correntes cruzadas no rio Paraguai, a grande muralha natural vestida de mato onde se escondiam os canhões, formada pelo barranco de 30 pés de altura sobre o nível médio do rio, embaixo da qual teriam de passar os nossos navios; a volta apertada que aí faz o rio e, da margem oposta, a mais de um terço da sua largura total, não excedente a 300 braças, um parcel ameaçador; as correntes suspensas, os torpedos subaquáticos, “os traidores remansos onde se neutraliza a ação do leme” e, nas pontas da volta, os fogos convergentes das baterias inimigas.

Para vencer tudo isso tínhamos um material insuficiente, Mas, eis chegam os monitores que Afonso Celso, o Ministro da Marinha, utilizando-se da experiência da guerra nos rios, com o seu patriótico vigor e grande capacidade de trabalho, envia ao teatro da ação. A esquadra exulta na iminência da decisão final. Caxias, prudente, refletido, mas resoluto e firme, vence as últimas hesitações na visita à capitania, em 1 de fevereiro de 1868, decidindo a passagem de Humaitá como operação complementar ao assalto pelas forças de terra ao reduto do Estabelecimento.

O nome do Barroso, e do jovem paulista, seu comandante, foram já indicados pelo generalíssimo nessa memorável visita.
As águas do rio haviam crescido e com elas a ansiedade da esquadra. Formava-se a divisão para a investida: na frente o Barroso, sob o comando de Artur Silveira da Mota, e o monitor Rio Grande, sob o comando de Antônio Joaquim; no centro, o Bahia e o Alagoas, aquele com a insígnia do Chefe Delfim de Carvalho e sob o comando de Pereira dos Santos, este sob as ordens de Cordovil Mauriti; fechariam a coluna o Tamandaré, com Pires de Miranda, e o Pará, sob Custódio de Melo. Neto de Mendonça, o comandante do couraçado Mariz e Barros, chorava por ter sido excluído do número daquelas seis vedetas da morte e o guarda-marinha Mascarenhas desobedecia a ordens e. arrostava castigos para entrar na guarnição dos navios da frente.

O prático-mor Etchebarne fizera os últimos reconhecimentos. Chega alfim a noite da batalha. “Agora, avante, meus bravos!” são as palavras do recipiendário de hoje na hora da ação. “Em Curupaiti, de dia, apenas recebemos cinco balas, quando outros receberam cinqüenta; pois bem, em Humaitá, de noite, arranjaremos isso por menos. Confiai em vosso comandante como ele confia em vós.”

E seguiu-se a batalha e raiou a vitória. Édipo, mais uma vez, decifrara o segredo da Esfinge.

A ação foi digna de nós e assim o foi a guerra. Justificava-a o passado, exigiu-a o presente e não a condena agora o futuro. É certo que não podemos, sem horror, assistir ao exício de um povo heróico, nem verificar, sem admiração, a bravura dos batalhões paraguaios, a disciplina daqueles soldados, que chamavam pai (Taitá) os superiores e eram por estes tratados de filhos. Respeitamos, como os que mais respeitam, o heroísmo daquela resistência – certos de que essas virtudes não pereceram naquela terra e hão de elevá-la no futuro, como a honraram no passado. Não podemos, porém, diante daquele infortúnio, calar os nossos grandes sacrifícios e esquecer o mais generoso do nossa sangue ali derramado. A guerra explodiu como uma erupção para nós e ninguém poderá jamais negar-nos o supremo direito de vida, expresso nas palavras de Gambetta, gravadas no pedestal de sua estátua: “Dai ao mundo o espetáculo de um povo que não quer perecer!”

Para glória do nome brasileiro, nem a tenacidade da resistência, nem a embriaguez do triunfo nos fizeram esquecer o que devemos a nós mesmos e à humanidade – a independência do Paraguai, pela qual nos batêramos antes com tanto ardor, não foi desrespeitada e nenhuma porção do seu rico território veio aumentar o nosso. Demos na guerra exemplos eloqüentes de sentimentos humanitários e nunca mais se apagará da nossa história a ação pessoal do Imperador em Uruguaiana, participando dos perigos e das privações, por querer viajar como o último dos oficiais,  percorrendo a cavalo toda a frente da linha de ataque e, após a capitulação, desvelando-se no bom tratamento dos enfermos e dos prisioneiros. Numa ordem do dia há esta frase: “Soldados! em nome do Imperador, o general-chefe do Exército Imperial vos saúda e vos conjura a que respeiteis a desgraça do inimigo vencido.”

Isto, depois da hecatombe de Mato Grosso e do trucidamento dos prisioneiros, provado pelos documentos do quartel-general de López, que, com a vitória de Lomas Valentinas, caíram em poder de Caxias.
Era assim a falta de elevação moral do governo do Imperador!

Mas, esses cinco anos de combates formam um episódio apenas da grande batalha que nos tem sido a posse e desenvolvimento do Brasil.
Estamos habituados – é um dos traços da gente brasileira – a maravilhar-nos diante da opulência de nossas terras, de suas belezas sem conta – e raro nos lembram os inauditos sacrifícios, a luta formidável e incessante que nos custou e nos custa a sua conquista e ocupação. Elevamos exageradamente a terra e apoucamos exageradamente o homem. Entretanto – há de verificar-se um dia – em toda a História não haverá nada mais grandioso do que a colonização do Brasil e a criação dessa nacionalidade pelo povo português. Nenhum outro seria capaz de tamanha obra; só ele, pela sua pertinácia, a sua espantosa resistência aos climas cruéis, a sua pujança procriadora, a facilidade de cruzar-se sem anular as qualidades dominantes do tipo primitivo – só ele seria capaz de fazer o Brasil. Todos os outros que o tentaram tinham mais homens, riquezas e esquadras e não o conseguiram.

Os ingleses, com Edward Fenton, um dos vencedores da Invencível Armada, com Cavendish, com Withrington Lancaster, tomam e saqueiam Santos, assolam a Bahia, salteiam Recife; os holandeses ocupam pontos do Amazonas, criam aí feitorias, apoderam-se do Maranhão, do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, e, ao cabo de mais de vinte anos de ocupação, são forçados a abandonar a presa; os franceses criam com Villegaignon a França Antártica, tomam duas vezes o Rio de Janeiro, fortificam-se no Maranhão. Por que não ficaram aqui e contentaram-se, entanto, com as nesgas de território chamadas Guianas, ao norte deste continente?
A terra, o clima, o meio enfim, exigiam outra semente. E ela começou a germinar, já afeiçoada às novas circunstâncias, quando criou nas colinas de Piratininga esse rijo e audaz mameluco que devia ser um dos primeiros instrumentos da unificação do Brasil. O europeu, ainda mesmo o português, não poderia sem o cruza¬mento subjugar a brutal aspereza desse território colossal. A terra brasileira era fundamentalmente nativista; para entregar-se, ela exigiu um tipo de sub-raça gerado e crescido.

Aos primeiros europeus desembarcados que, numa expressão da época, apenas arranhavam nas costas do continente como caranguejos, ela apontou, ao longe, perdida num espaço desconhecido, a crista de oiro da serra Brilhante. As primeiras levas de forasteiros que, incendidos de ambição, avançaram para a conquista do velocino, desapareceram sem deixar vestígios.

Foi então que a raça colonizadora uniu-se à indígena no primeiro abraço de amor; surgiu o mameluco e, como por encanto, a floresta hostil não teve mais traições de Caapora para os homens “de olhos brunos, cheios de fogo e afoiteza, cabelo forte, preto e liso”, musculatura reforçada e impávidos no perigo. Menos de um século após a descoberta já eles penetravam o sertão arrastando consigo os índios, cujo sangue lhes corria nas veias e cuja língua falavam.
E começa assim o nosso Ramaiana – o duelo titânico entre o homem e a natureza.
Ah! Nunca se medirá a extensão desse esforço! Os seus vestígios estão alastrados aqui e acolá, como os seixos do caminho em toda a extensão dos nossos oito e meio milhões de quilômetros quadrados de superfície.

Essas florestas que os nossos poetas pintam como bosques virgilianos, cheias de frescor e perfume, ou como verdejantes catedrais, onde as ramagens se entrelaçam em arcos de triunfo, tinham filtros mortais para quem as devassasse; esses campos, onde corre o vento, livre como o veado, tinham ardências e sequidões, que matam o vivente à fome e à sede.
Nessa escalada do sertão, temerária como a do Olimpo, entraram isoladamente e a espaços filhos de todas as demais raças européias de onde nos veio o maior número das obras escritas sobre a nossa natureza. E modesto, tenaz, abnegado, precedendo a todos na expansão e no sacrifício – o jesuíta velejou pelo sertão, como as caravelas pelo Mar Tenebroso, tendo impressa no pano a cruz.

A luta foi apurando as energias e a necessidade foi criando os meios de corrompê-la. O vaqueiro, o barqueiro, o tropeiro, o faiscador e o seringueiro foram aparecendo e labutando e trançando-se ao mesmo passo que o braço robusto do africano, na zona mais próxima da costa, e onde era fácil o transporte, foi substituindo a mata selvagem pelo canavial e os cafeeiros.

Foram os rios estradas preferidas e o pintor nacional Almeida Júnior pôde dar vida a uma das cenas freqüentes da época e perpetuá-la na Partida da Monção. Só conhece as suas traições quem por elas navegou: o salto, a corredeira, a cascata, o varadouro, a enchente e, após, na descida das águas, as sezões. Mas, o homem insiste. A alguns tenho encontrado à beira da água, pálidos, rotos, os olhos embaciados, aproveitando a remitência dos acessos febris para empunhar o machado e rasgar clareiras ao sol saneante e às searas nutrizes. A morte não os esquece: não tarda o dia em que tombam deixando em torno da palhoça, a brincarem com os cachorros e os bacorinhos, os herdeiras de suas labutas. E mais ano, menos ano, a terra onde penou a família que ninguém conhece, nem chora, nem auxilia; o chão fecundado com os suores das sezões, vem ajuntar-se, limpo de miasmas e rico de messes, à porção pagante das nossas despesas.

Também esses são soldados sem soldo, da nossa defesa e civilização.
A guerra três vezes secular contra as inclemências da natureza, a conquista e ocupação do solo nacional continua ainda sem tréguas. Os jornais não dão os nomes dos vencedores, nem conhecem os terrenos dos combatentes. É no vale e no monte, no rio e na floresta, por toda a extensão do Brasil. Eles vão varando chapadões, tangendo boladas com os boiadeiros, pousando nos ranchos com os tropeiros, guiando montarias ou equipando lanchas no Amazonas, metendo o varejão no São Francisco, remando no Araguaia. Eles viajam a pé de norte a sul, carregam malas do Correio, roçam capoeiras e derriçam cafezais em São Paulo; eles são romeiros no Muquém; eles desfraldam também suas bandeiras – a bandeira do divino – e marcham em folia cantando e pedindo em cada porta; eles também montam canoas e jangadas na costa, abrem vendas à beira da estrada, acompanham, como camaradas, os viajantes do comércio, envergam a farda do soldado, a blusa do marujo e cingem o refle do polícia.

Eles também são conquistadores, pois deles era aquele cujo nome não foi esquecido na Retirada da Laguna, José Francisco Lopes, mineiro do Piauí, que explorara toda a região entre o Paraná e o Paraguai, pisando lugares não tocados por pé humano e chantando uma cruz com as iniciais gravadas do soberano para tomar passe de uma floresta imensa.
Eles são descobridores: e de sul a norte e de norte a sul acompanham aquele grande canal de mais de 1.500 léguas feito pela natureza para comunicar o Amazonas com o Rio da Prata, esbarrando no estreitíssimo istmo de menos de uma légua, por onde o governador Luís Pinto de Sousa, no ano de 1772, fez varar uma embarcação de carga de seis remos por banda.
Deles foi Joaquim Ribeiro, o grande e desconhecido descobridor do caucho, o extraordinário patrício que, em 1862, no departamento de Loreto, próximo a Iquitos, possuía e administrava sua fazenda admirável, onde pela primeira vez, naquelas alturas, se introduziram maquinismos para a fabricação do álcool.

Eles são colonizadores como aquele Pedro de Oliveira, que com um punhado de companheiros, descendo arrojadamente o Ucaiale e o Pachitea, velo fundar Puerto-Vitoria, na terra dos Cashibos ou bebedores de sangue, onde as próprias forças do governo peruano foram topar a morte nas mãos dos selvagens.

Eles são professores. Não me pode esquecer uma pobre escola primária, encravada na garganta de Tapanhoacanga, velho arraial mineiro de Fernão Dias Pais Leme, o caçador de esmeraldas. Numa casinha rústica, sombreada de laranjeiras, a meninada afinava a sua voz cantando a tabuada, com os melros do brejo, de plumagem aurinegra. Aquelas mãozinhas que ao pino do meio-dia esfolhavam os livros escolares, já tinham pela manhã ordenhado as vacas leiteiras ou empunhado o cabo da foice nas roçadas.

Aqueles obscuros lutadores são também magistrados paupérrimos e carregados de família, que, com magros ordenados e grandes atrasos no percebê-los, mantêm heroicamente a honra de sua toga diante da prepotência de mandões locais no meio das terríveis e por vezes sanguinolentas querelas de aldeia.

Eles são pobres vigários da roça, engenheiros intrépidos – todos enfim que, sem prêmio, nem garantia, nem fama, nem glória, trabalham silenciosamente pela pátria. Às vezes a história os surpreende em plena ação e dá-nos uma página épica, como a da resistência de Antônio João, em Dourados, ao exército paraguaio de Resquín. Não se perdeu felizmente aquela resposta espartana do comandante de dez homens trucidados todos na defesa de um posto brasileiro contra uma força inimiga sessenta vezes maior!

Não! O nosso povo não é flácido e negligente como assegura o preconceito vulgar. Mas, tudo que ele conseguiu, tudo o que nós conseguimos, foi à custa de fadigas, de penas, de sacrifícios.
Sabei, pois, manejar o instrumento, que ele produzirá surpreendentes resultados e concorrerá, Almirante, do modo mais eficaz para o aperfeiçoamento do Exército e da Marinha, que o Brasil espera dos seus generais.

O próprio indígena, hoje desprezado e abandonado, deu provas não só de aptidão, mas de gosto pela vida militar e o colorido dos uniformes. Um militar eminente, que foi um dos heróis da ocupação e aproveitamento dos nossos sertões, o Coronel Guido Tomás Marlière, francês de nação, conseguiu prodígios dos Nacnenuques do rio Doce, militarizando-os e distribuindo postos aos que o mereciam.  Perto de um século depois de Marlière, ilustre general do nosso Exército, em missão recentíssima, o Sr. Belarmino de Mendonça,  faz tão sincero quão eloqüente apelo aos poderes públicos em prol dos primitivos povoadores, desses descobridores de tantos hoje grandes artigos de indústria, qual o cautchu, e das virtudes de tantas plantas que curam; desses, cujas raças livraram da morte à fome os usurpadores do seu solo; desses indígenas em que agora o nosso operoso compatriota encontrou, estudando-os na bacia do Juruá, o mesmo pendor militar que o Coronel Marlière aproveitou, organizando-os na bacia do rio Doce.

Olhemos para nós, estudemo-nos, busquemos em nós mesmos o segredo da nossa força, sem imitar apressadamente o que a experiência alheia indicou a outros, em meio estranho.

Uma pequena parte, apenas, dos nossos feitos pode a história recolher: perde-se o resto nesse anonimato que é a vala comum dos simples e dos pobres. Por isso, Almirante, eu não posso abolir a legenda, que é a única história dos pequeninos. Não creio, porém, que o ódio possa criar a legenda: ela é obra exclusiva do amor.
A história documentada, a história erudita, será em todos os tempos privilégio de um núcleo de eleitos, como vós. Para o resto, a história real não é a que sucede, mas a que se cria. E no fim dos tempos, é esta a única definitiva, porque paira sobre o formigueiro humano como uma poeira de astros. É ela que se infiltra nas massas, repassa os corações, germina, desabrocha, folga nos folguedos, canta nos cantares e chora na dor e no luto.
Ela se irmana com os homens e os seres, ela irradia, eteriza-se, brilha no astro, recende na flor.
Ela é, finalmente, a história pela poesia, a única história capaz de vulgarizar-se e de ser possuída pelo povo.

Poetas são os que sabem exprimir o ideal que a imaginação do povo acaricia; heróis os que podem realizar esse ideal. E entre esses dois pólos da verdadeira grandeza, da única bastante para desafiar as eras, há uma influência recíproca: o ideal incita à realidade brilhante ou à façanha – o poeta provoca o aparecimento do herói; a façanha excita o ideal e o sonho – o herói faz nascer o poeta.
Sem a legenda, como poderíamos evocar a angústia do mísero ou perpetuar o heroísmo do pequenino?

Se o negro e o índio deram à nossa história, para a qual tanto fizeram, apenas os tipos dominantes de Camarão e Henrique Dias, quantos deles, cujo heroísmo não teve assistência ilustre nem palco de gambiarras – vão povoar de sonhos e de esperanças e de consolos os simples e os aflitos!
A história apoderou-se do negro Henrique Dias, mas a lenda pôs um halo místico em torno do negro Jesus, o corneta da Morte dos versos do poeta, que, no Paraguai, a marche-marche, tocando a investida perde um braço à explosão de uma bomba, segura o clarim com o braço que lhe resta e mais forte e mais alto faz vibrar as notas vitoriosas. A lenda santificou o pardo Isidoro, o garimpeiro do Tijuco, o mártir da liberdade do comércio e da abolição do cativeiro.
“Tudo quanto há de eterno e de heróico no homem e em sua vida incorpora-se à Eternidade, transformando-se, para todo o sempre, numa nova porção divina da essência das cousas.”

A legenda tem os seus símbolos inconscientes. Não será um destes a festa popular de Santa Cruz? Em nenhum outro país do mundo a temos visto como entre nós. Por isso, consideramo-la a festa nacional da fundação do Brasil, aliada pelo povo ao culto do símbolo que sagrou a descoberta, a conquista do nosso território e presidiu à nossa civilização.
Em cada crista de monte, em cada chã de morro que domine um povoado, lá está plantada a Cruz, abrindo os negros braços batidos de sol, lavados de chuva, lascados não raro pelo raio e sacudidos pela ventania. O viajor a divisa de longe, acenando-lhe com o descanso no povoado.

Outras surgem nas curvas da estrada, nos barrancos, nas encruzilhadas, marcando o trespasse de um caminhante; estas têm como soco um monte de pedras soltas e cada pedra assinala uma prece que o passageiro eleva a Deus por alma do finado. É a caridade tocante do pobre a seu irmão desconhecido.

A 3 de maio, desde os cruzeiros grandes, obras custosas de carpintaria, em cujo madeiro estão gravados os instrumentos da paixão e em cujo cimo o galo gira ao sopro do vento, até as cruzinhas de pau roliço, trêmulas na sua cova, desconjuntadas, comidas de cupim – todas as cruzes das serras, das colinas, das estradas, dos adros das igrejas – todas amanhecem coroadas de grinaldas de flores. Nas vésperas, cada trilho de encosta, cada estrada carreira, cada vereda de gado, conduz bandos de mulheres com os braços atulhados de ramagem e de flores.

É decerto por força do símbolo que nas travessias do Atlântico, quando a quilha vem rasgando serenamente as ondas em demanda das terras do Sul, tantas vezes, na aproximação da linha, nós brasileiros abandonávamos os serões de música e nos precipitávamos sobre a amurada, para contemplarmos ao longe, erguida sobre a massa escura do oceano, a constelação do Cruzeiro.

Outras vezes, no coração deste continente, quando, em rancho aberto, estirado num couro, repousava das fadigas da jornada, noite adentro, vagando os olhos insones pelo espaço, aconteceu-me pensar que todos aqueles seixos dos pés das cruzes – preces ferventes dos desconhecidos – cristalizavam-se nos mil pontinhos luminosos do Cruzeiro e vinham estender sobre os milhões de anseios do nosso atormentado mundo, como um pálio etéreo, a suprema carícia de uma bênção.