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Discurso oficial do 122º Aniversário de Fundação da ABL

A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS E A CULTURA BRASILEIRA

​No aniversário de 122 anos da Academia Brasileira de Letras, convidado pelo Presidente Marco Lucchesi a fazer uso da palavra pretendo desenvolver uma proposição simples: a de que a ABL sempre soube e saberá sintonizar-se com a cultura brasileira. 

​  Em boa lógica é uma proposição afirmativa - não contingente nem hipotética - quando se refere aos anos que passaram. E penso que deva ser uma proposição categórica em se tratando do futuro, do tipo “todos os homens são mortais”. À luz do que já se fez, creio que o imperativo se justifica e, mais que isso, nos obriga a cumprir nosso papel de partes transitórias de um ente que se desdobra no tempo, fiel a seu ethos e por isso mesmo recorrentemente atualizado. Essa é a ideia, senhor Presidente, senhoras e senhores acadêmicos, em relação a qual espero ser suficientemente convincente.

​Em relação ao passado, é desnecessário fazer um retrospecto empírico evidenciando exemplos dessa sintonia ao longo de seus 122 anos de existência. A vitalidade e o reconhecimento público da instituição são autoexplicativos e surgem em qualquer ponto dessa linha do tempo.

​Prefiro conduzir o argumento em outro sentido, o de que a Academia nasceu e se transformou em íntima conexão com a realidade brasileira e por extensão com sua cultura. Nasceu, ou brotou, como um fruto sazonado dessa cultura. Dois axiomas da Ciência Nova de Vico, onde talvez não falte alguma ironia, são eloquentes a esse respeito:

​“A ordem das ideias deve proceder segundo a ordem das coisas.

​A ordem das coisas humanas procedeu assim: primeiro foram as selvas, depois as cabanas, a seguir os povoados, logo após as cidades e, por último, as academias.”

​A “íntima conexão” com o Brasil e a cultura brasileira exercita-se de diferentes maneiras e explicita-se por outras tantas.    Haverá um guia seguro para identificar seus traços substanciais? 

​Opto, sem hesitar, por Machado de Assis, que nos seus 180 anos recém completados em 21 de junho, será nosso Virgílio para este fim.  Ele refletiu sobre a cultura brasileira em diversos momentos ao longo de mais de 3 décadas, e por fim sobre a própria ABL. Buscou traços da nacionalidade no que hoje denominaríamos elementos constitutivos da identidade cultural.

​A partir dessas referências podemos encontrar não apenas seu pensamento sobre a cultura, mas alguns aspectos reveladores da “íntima conexão” entre a Academia e essa realidade.

A começar pela própria questão da identidade brasileira. Diz Machado que “há um modo de ver e sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas”.   Ver e sentir, mentes e corações que percebem e agem em função de alguns valores, com ideias, crenças e comportamentos deles decorrentes e que são próprios de sua cultura. 

A expressão cultura é mais apropriada a nossa atitude, derivada das ciências sociais, embora o autor fale em “nacionalidade”, ecoando o espírito oitocentista, até porque o conceito foi mencionado a propósito da obra de Alencar, na qual explicitamente se visava tal objetivo.

​O despertar da consciência para uma cultura brasileira foi “outra independência”, afirma no Instinto de nacionalidade, “sem Sete de Setembro”, mas feita pausadamente para ser duradoura, envolvendo não uma geração ou duas, mas muitas. 

​A ideia de um Volksgeist elaborado pela experiência histórica das sociedades, secularmente gestado, estava disseminada no século XIX. Fundava-se na comunhão da língua, dos usos e costumes (ou seja, do direito), da poesia edos valores. Todos esses fatores seriam capazes de, numasinergia que hoje chamamos cultural, construir aquela “nota íntima da nacionalidade” da definição machadiana. No Brasil pelos anos 1860/1870 era uma tônica da sensibilidade da opinião e Capistrano de Abreu a denominaria a propósito da literatura e da arte em geral “emoção de superioridade”em relação à antiga metrópole, referindo-se justamente àquela independência de Portugal e à construção de uma identidade brasileira. 

​Muitos intelectuais, nesse espírito, talvez entendessemque em determinado momento a criação de uma Academia poderia corresponder a essa identidade. No futuro, não em sua época. Pelo menos todos nos lembramos da crônica na qual Machado, três anos antes da fundação comentara, com o ceticismo habitual, que possivelmente haveria “aí por 1950, uma Academia Brasileira”. Mas o fato é que em 1897 fundou-se a instituição com o que havia de representativo na vida intelectual do país. E, mais que isso, foi possível fixar um quadro de patronos que de certa forma cumpriu o papel de percorrer as “muitas gerações” por ele preconizadas.

​Questão decorrente da identidade cultural, especialmente se associada à afirmação da nacionalidade, é a dicotomia entre o local e o global. Tema que esteve presente ao longo da história da Academia e que em tempos de globalismo e antiglobalismo como o nosso,  se acentua.

​Machado já refletira sobre o assunto. Manifestou-se contra aqueles que só reconheciam “espírito nacional” nas obras que tratavam de assuntos locais, já que elas pertenciam a toda a humanidade, “cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores” exprimiam. E indagava: “Shakespeare não é um gênio universal, além de poeta genuinamente inglês?” Lembrando-nos do universo que Machado criou, sua palavra certamente não deve ser limitada ao plano estético. A criação, conquanto localizada, era uma expressão do todo humano e a ele revertia – pelo menos era este o significado dominante no Oitocentos sobre o conceito de humanidade. Certamente a maioria dos fundadores, senão todos, assim pensavam.

O local, o nacional e o global convivem e convergem, eventualmente conflitam. 

Sabemos que a hegemonia do local gera um provincianismo limitador. Que a hegemonia do nacional gera a xenofobia e um reducionismo atrofiador sobre o local. Que a hegemonia do globalismo pode provocar uma pasteurização e a diluição das diferenças. Portanto, o problema não está no local, no nacional ou no global, mas na hegemonia de um sobre os demais. Não aprendemos com a lógica aristotélica que existem fenômenos singulares, particulares e universais perfeitamente compatíveis nos diferentes enunciados? Por que não aproveitar a experiência histórica dos dois últimos séculos, dolorosa, sangrenta e tão desperdiçadora de vidas e esperanças, para extrair do local, do nacional e do global aquilo que acresce e enriquece, em lugar do que divide e conflita?

A lição machadiana não foi esquecida pela Academia. Ela prima pela convivência inteligente e perspectivista entre os três níveis.

Se a geração de Machado via um “instinto de nacionalidade” coexistindo com as criações regionais, as que se lhes seguiram não fizeram diferente, não contrapondo regional e nacional, antes buscando naquele a inspiração unificadora. A atitude se encontra disseminada desde fins do século XIX dentro e fora da Academia e representa uma constante em nossa cultura. No extremo, vale lembrar o ambicioso projeto de Villa-Lobos e Gilberto Freire, frustrado pela morte do compositor. Segundo Freire, “reconhecendo a importância do regional para a interpretação do Brasil”, a ideia de Villa-Lobos era que ambos realizassem uma “síntese litero-musical da cultura brasileira”, no que “seria uma aliança da música interpretativa com a literatura interpretativa”. 

Sem entrar no mérito do que talvez seja um exercício demasiado voluntarista, podemos lembrar, no universo acadêmico, o que há de profundamente local, nacional, e simultaneamente universal, no próprio Machado, em Graça Aranha, Gilberto Amado, Guimarães Rosa, João Cabral, Afonso Arinos de Melo Franco e tantos outros acadêmicos. De qualquer modo, quem melhor que o primeiro presidente da ABL, fiel à sua concepção, para descrever a cor local do Rio de Janeiro imperial e proto-republicano, o tônus“nacional” da sociedade brasileira que Faoro reconstituiu por meio de sua obra e a universalidade do humano? Monteiro Lobato, em carta de 1915 a Godofredo Rangel sintetizou, a meu juízo, melhor que ninguém este últimoponto:

​“Ontem li Histórias sem data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo que é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura.”

​A língua mais pura... Outra magna questão, sempre enfrentada pela Academia ao largo das gerações.

​No aspecto da língua, a Academia desde sua origem é tributária, como boa parte do século XIX, da tradição herderiana.   Isaiah Berlin dizia que “todo o efeito (do pensamento de Herder) foi sentido quando o movimento romântico, no auge de sua violência, intentou derrubar a autoridade da razão e do dogma no que se apoiava a velha ordem”. 

​Sabemos como o “movimento romântico” a que Berlin se refere valorizava a variedade e a singularidade das culturas, sua história, sua identidade nacional e o elo comunicacional que as línguas representavam. 

Mas é preciso lembrar que entre a formulação teórica do Ensaio sobre a origem da linguagem de Herder, em 1772, e o apogeu do romantismo como se manifestou no Brasilocorreu a ação nacionalista de tornar a língua fator de unidade nacional, pela universalização da educação, pelos meios de comunicação e pela oficialização do trabalho dos gramáticos, muitas vezes hostilizando, ou mesmo excluindo, expressões linguísticas concorrentes.

​Em Herder “a linguagem expressa a experiência coletiva do grupo”. Enunciada a sentença, indagou:

“Terá alguma nação coisa mais preciosa? Partindo do estudo das literaturas nativas, temos aprendido a conhecer épocas e povos mais profundamente que ao longo do triste e decepcionante caminho da história política e militar.” 

​O que era a proposição de uma abordagem intelectual,reconhecendo a espontaneidade do processo cultural,tornou-se leitmotiv para uma ação política sistemática quando se construiu o Estado nacional, não obstante exemplos europeus e extra europeus em sentido contrário, com experiências nacionais plurilinguísticas.

​Em meados do século XIX entretanto, parecia irresistível a tendência a afirmar a unidade linguística como argamassa da unidade política. Se a integração territorial da monarquia absoluta se fez sob o dístico “um rei, uma lei, uma fé”, o jargão unitário correspondente  no clima posterior a Revolução Francesa,  nação, povo e território pressupunha o elemento identitário da língua, facilitador da consciência histórica e da auto identidade, mesmo quando esta fosse mais ou menos inventada. 

​Esse foi o momento de Machado de Assis.  Com o espírito superior de sempre, aproximou-se da percepçãooriginal de Herder e não se identificou com a instrumentalização ideológica da língua pela via estatal. Sempre moderado, reconheceu as novas realidades do português da América, mas lembrava que estas não deveriam provocar “alterações de linguagem... que destroem as leis de sintaxe e a essencial pureza do idioma”.Criticava no romance, na poesia e no teatro a presença de solecismos e a excessiva influência francesa, mas não defendia o engessamento do idioma no passado.

Seria, diz ele, um “anacronismo insuportável” escrever como os antigos. Contudo, “estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas”, “não me parece se deva desprezar”.

​Em síntese e afastando-se de qualquer recidiva da querela barroca, dizia que

​“Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. 

​Palavras de 1873, proferidas por um intelectual sem nenhum compromisso institucional, cujas ideias reaparecem em 1897, na fala da sessão de encerramento da recém fundada Academia Brasileira de Letras. Atribuía-lhe então a missão de “guarda da nossa língua – defendê-la do que não vêm das forças legítimas – povo e escritores (...) não confundindo a moda que perece, com o moderno que vivifica.”

​Talvez não confiando na força da alegoria paulina, tornou-se didático:

​“Guardar não é impor nem decretar fórmulas; nenhum de vós dirigia-se aos acadêmicos tem para si que a Academia decrete fórmulas. E depois para guardar uma língua, é preciso que ela se guarde também a si mesma, e o melhor dos processos é ainda a composição e a conservação das obras clássicas.”  

​ Essa lição, que tem a força das ideias claras e distintas,foi incorporada pela Academia ao longo de sua história, conservando os clássicos, reconhecendo os novos clássicos e aplicando-a a muitas de suas realizações, inclusive o Vocabulário Ortográfico. Para o futuro certamente prosseguirá no bom caminho, inclusive elaborando o grande dicionário da língua.

​Nesse movimento de conservação e criação está a dinâmica da Academia, como de todas as instituições dessa natureza que não apenas sobrevivem, mas mantém sua contemporaneidade em relação aos diferentes tempos.Realiza assim o que nosso guia virgiliano considerava a necessidade da constância e da tradição, passando de sucessores a sucessores “a vontade inicial” cujo espírito, entretanto não era imobilista, mas o de conciliar “estabilidade e progresso”. E isso, podemos afirmá-lo sem nenhuma jactância, ela tem feito seguindo tal orientação, de modo a cumprir o voto do discurso inaugural, o de que “a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira.” 

​ Uma última questão, senhor Presidente, senhoras e senhores acadêmicos, ilustres convidados, entre tantas outras que ilustram a tese da perene atualidade da Academia. Por sua relevância, talvez pudéssemos considerá-la a questão-síntese, glosando uma ideia dos anos 1950 sobre o planejamento nacional – a questão da diversidade, ou da pluralidade.

​Para tanto seria possível nos inspirarmos numa curta sentença do discurso inaugural proferido em 20 de julho de 1897: “o vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária”.

​Fazia sentido a lembrança política. Nesse final do governo de Prudente de Morais a engenharia federativaainda não estava inteiramente definida do ponto de vista pragmático, embora o estivesse do ponto de vista formal na constituição promulgada anos antes – problema que o novo presidente Campos Sales procuraria resolver com uma fórmula que acabou se estendendo por décadas. Mas quaisquer que fossem as opções da federação política, envolviam algum grau de diferenciação e por sobre ela Machado afirma a unidade literária.

​Utilizemos o pressuposto – a unidade na diversidade, ou na pluralidade - e teremos o espírito da Casa.

Diversidade e pluralidade regional, por suposto, num país das dimensões do Brasil, com expressões ricas e diversificadas nas tantas “regiões culturais” estudadas por Manuel Diegues Junior a partir de suas “etnias e culturas” e que se refletiram ao longo do tempo na geografia da representação acadêmica.

Diversidade e pluralidade de áreas do conhecimento, de formas de expressão e de gêneros literários, que têm como cerne o Brasil, mas cuja essência é o humano. Dessa forma, houve e há acadêmicos de campos diversos da criatividade e se lamentamos que algumas expressões da cultura brasileira aqui não tenham tido assento, estendendo a larga cadeira número 41, ainda assim temos de admitir que o resultado honra a esperança e as expectativas dos fundadores.

Diversidade e pluralidade de pensamento, com perspectivas filosóficas, científicas e estéticas extremamente diferenciadas, que acompanharam ao longo desses 122 anos o movimento das ideias e da sensibilidade, não sem polêmicas, mas sabendo observar a ética do relacionamento intelectual e tendo consciência de que contrastar concepções não é contrapor pessoas.  

​A comunhão de espíritos vem não apenas das gerações presentes em 1897 – do veterano presidente ao jovem Magalhães de Azeredo – mas de seus sucessores em cada uma das cadeiras. E de seus antecessores, se considerarmos a escolha que os fundadores fizeram dos patronos, buscando o fio condutor que traduzisse um modo brasileiro de produzir cultura. E essa comunhão de espíritos tem garantido e continuará garantindo a sintonia entre a Academia Brasileira de Letras e cada momento da vida brasileira.

​Ainda Machado,

Na sessão de encerramento de 1897, ele não hesitou em citar Napoleão, que no Instituto de França, cem anos antes, dissera que “a ocupação mais honrosa e útil dos homens” é“trabalhar pela extensão das ideias humanas”.

​Mais de cem anos depois não parece ser diferente a tarefa.

 

Acadêmico relacionado : 
Arno Wehling