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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso Arinos de Melo Franco

A Academia, ao sufragar, sem oposição, o vosso nome, incorporou ao seu quadro uma das mais lúcidas inteligências do Brasil contemporâneo, infatigável operário da Cultura Nacional.

Sois um brasileiro representativo: nascestes no Rio de Janeiro, a mais brasileira das metrópoles, como filho de pais imigrantes, o que representa a outra face do vosso autêntico brasileirismo. Os descendentes dos velhos troncos coloniais, como alguns colegas que diviso desta tribuna, são historicamente brasileiros, mas aqueles que, como vós, não trazem nas veias nenhuma gota do sangue dos fundadores, são brasileiros sociologicamente. E se a obra dos fundadores tornou possível a união nacional, a integração dos imigrantes é que faz, em grande parte, o desenvolvimento do País. De resto, nós, os descendentes dos lusos, espanhóis, flamengos ou franceses da Pátria velha, que somos, senão originários de imigrações mais antigas?

No Brasil, as instituições sociais sempre foram mais democráticas que as instituições políticas. O povo demonstrou, através de toda a nossa história, um sentimento mais fraterno de amparo e convivência que os governantes.

As oposições sociais só se exacerbam até à crueldade, entre nós, quando adquirem conotação política. E, entre as instituições sociais mais genuínas do Brasil, está esta, do povo não dar nenhuma importância à desinência de um apelido ou à cor de uma tez.

Sempre repito que o problema racial no Brasil, embora seja sensível, é extremamente benigno, em comparação com outros países, ditos civilizados. A civilização não se confunde com progresso. Digamos que a civilização é o progresso interno, e não externo, do homem.

No Brasil, o racismo existe em certos grupos reduzidos de falsa elite, muitos deles não brancos, nem cristãos velhos, mas não existe no povo, ao contrário de outras nações, onde, desgraçadamente, o racismo está mais no povo do que nas elites.

Conservemo-nos, pois, fiéis depositários da memória do primeiro Rio Branco, neste ano do centenário da sua gloriosa lei.

Vossa formação, Sr. Antônio Houaiss, foi também representativamente brasileira, quero dizer, carioca e popular. Toda vossa instrução foi feita neste Estado, único onde todos os brasileiros se sentem como no seu próprio Estado. Cumpristes o vosso primário na escola pública; o curso de contador em instituto oficial da Cidade-Estado; e o Superior na antiga Universidade do Distrito Federal e, em seguida, na Universidade do Brasil.

Nascido em meio sociologicamente integrado, e na cidade nacional por excelência, vosso forte aparelho cultural se aprimorou com as oportunidades oferecidas pelo poder público. Essa formação, tanto quanto possível desligada de influências privatistas, contribuiu para serdes um brasileiro representativo, um espírito cultivado fora de pressões setoriais, portanto propenso ao objetivismo e à liberdade.

Cumpre não esquecer que a liberdade é, também, florão e destino cariocas. O Rio não é apenas cidade, no sentido urbano, mas também a civitas, a polis, ou seja, a condensação da consciência cívica, que, como nas Cidades-
-Estados helênicas, existe porque é livre. Toda a nossa história política mostra que, no Rio, a liberdade nunca se curvou à tirania. Tem sido suprimida, mas nunca conformada.

O fator pessoal interveio na vossa formação, graças ao primoroso engenho com que Deus vos favoreceu. Desde muito jovem, adolescente quase, tivestes o ensejo de seguir a melhor escola do aprendizado, que é o Ensino. Todos nós, professores, sabemos que a única forma verdadeira de aprender é ensinar. O mestre que não aprende, continuamente, vai deixando progressivamente de ensinar. A alegria dos velhos professores é sentirem-se mais estudiosos, mais curiosos intelectualmente, que os estudantes. A parada, na capacidade de absorver ensinamentos, é o início fatal do declínio, na capacidade de transmiti-los.

Vós aprendestes sempre, até hoje, porque sempre ensinastes, mestre Antônio Houaiss, pela voz ou pelo escrito. Antes dos vinte anos, já vossos estudos de Línguas e Letras eram feitos em comum com os vossos alunos de colégios particulares. Conheço meninos de então, hoje homens feitos, que nunca esqueceram as lições exatas, conscienciosas, abundantes, daquele mestre pouco mais idoso do que eles.

Professor, por concurso, do Ensino Secundário oficial, aos 23 anos, ensinastes até os trinta, e, também, como professor visitante em Montevidéu. Foi nesse ambiente de professor-aluno, no ano preciso do vosso licenciamento em Letras Clássicas, que vos juntastes a Ruth, vossa dedicada esposa e companheira, que disfarçava então, sob a graça de moça baiana, a sisudez da professora de Latim.

Abandonastes o Magistério para ingressar no Corpo Diplomático, em cujas funções tive oportunidade de conhecer-vos e de chefiar-vos, durante a minha missão nas Nações Unidas. Meu depoimento sobre vossa atuação é simplesmente o de que nunca encontrei, no exercício das funções, colaborador mais competente, mais devotado e mais dedicado aos interesses do Brasil e do nosso povo. Ali, também, vossos informes e relatórios eram lições.

Vossa folha de serviços e vossos trabalhos encontram-se nos arquivos do Itamaraty para comprovarem o que venho de afirmar.

A súbita aposentadoria no Serviço Público restituiu-vos à exclusiva atividade intelectual da vossa juventude, e foi um bem para a Cultura brasileira. E provável que, dedicado ao serviço público como éreis, só muito mais tarde vos sobrasse tempo para os esforços absorventes a que hoje vos entregais. E não sei se, entre uma carreira e um destino, não ganhastes, e, convosco, o Brasil.

Sois, essencialmente, o homem do livro. Talvez não exista, na atual geração, ninguém mais ligado a ele do que vós, porque viveis para o livro, tanto na sua forma, como no seu conteúdo. A forma perfeita do livro não se limita ao primor da edição, ao material escolhido, ao gosto apurado da composição gráfica e iconográfica. A forma do livro diz respeito, também, à ordenação técnica do texto. Sobre todos estes complexos provimentos de Ciência Editorial é que escrevestes o vosso temível Elementos de Bibliologia, em dois volumes, apurado ensaio científico sobre a Ecdótica. Para os que, ignorantes como eu, se espantarem com esta enigmática palavra, ajuntarei que Ecdótica quer dizer a Ciência e Arte de Editar. Ainda na mesma linha de realizações, fizestes a consolidação das 14 mil instruções de serviço do Ministério das Relações Exteriores, ajustando-as no Manual que ainda hoje prevalece, e fostes orientador da publicação dos 83 volumes de documentos da presidência Juscelino Kubitschek.

Quanto à substância e à essência dos livros, vossa especialização é, por igual, primorosa. Inaugurastes vossos trabalhos, nesse gênero, com o nosso companheiro Francisco de Assis Barbosa e o saudoso Cavalcanti Proença, ao fazerdes a edição crítica das obras de Lima Barreto, com estudo sobre a linguagem do grande e desditoso escritor.

Trabalhos semelhantes, todos de alta categoria, dedicastes à poesia de Silva Alvarenga, Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos, e ao Brás Cubas de Machado de Assis. Gostando de percorrer os píncaros, estudastes agudamente a poesia de Drummond e empreendestes, com laborioso êxito, a aventura de traduzir Ulysses, de James Joyce.
Mas as dificuldades da tarefa, quando aumentam, são para vós desafios e não obstáculos. Construístes um dicionário das línguas portuguesa e inglesa, em dois volumes, que vos coloca em paridade com nossos grandes dicionaristas, tais Antenor Nascentes, Aurélio Buarque de Holanda e Luís da Câmara Cascudo. E, de algum tempo a esta parte, vindes-vos especializando nesta surpreendente profissão, que é a de coordenar enciclopédias.

A última forma da Delta-Larousse, que dirigistes, honra a nossa geração, pela sua aparência e categoria. Seus senões, existentes em todas as obras do tipo, são ressaltadas por aqueles que não querem confessar as suas qualidades. Na verdade, é o mais vasto e o melhor repositório existente sobre o Brasil e os brasileiros.

Depois da Delta-Larousse, lançastes-vos em nova construção monumental, a obra temática que planejastes, em Português, para a Enciclopédia Britânica, na qual tantos de nós nos honramos em colaborar.

Pelo método inovador de sua confecção, que vos é devido; pelas intenções com que foi planejada e pelos trabalhos em curso, é certo que, quando pronta, esta obra coletiva da presente geração se projetará no futuro, fornecendo às classes dirigentes uma visão global e profunda da nossa realidade, dentro da realidade mundial, visão que facilitará a tarefa de repensar o Brasil, preliminar inafastável para o nosso desenvolvimento em liberdade.

Mas, além de urbanista, sois também arquiteto da inteligência. Além das enciclopédias, cidades da Cultura que planejais, também projetais e construís livros, ensaios, estudos, que saem de vossas mãos como pequenos ou grandes edifícios. O Dicionário Português-Inglês, e os dois tomos de Bibliologia são os de maior repercussão, até agora, mas outros podem e devem ser lembrados, especialmente os de Crítica Literária e Linguística, as duas preocupações especiais do vosso espírito, desde a mocidade.

Os modismos e a pronúncia do Português carioca provocaram-vos estudo que passou a ser utilizado em outras áreas não especializadas. As reflexões sobre uma política da língua nacional mereceram acolhida do Instituto Nacional do Livro, que também publicou vosso plano do Dicionário de Machado de Assis. A estes trabalhos, podem-se acrescentar vosso admirável prefácio à tradução de Joyce, vossa profunda introdução crítico-científica à poesia reunida de Carlos Drummond de Andrade e o vosso forte ensaio de Filosofia Literária, a respeito de Crítica e Estruturalismo.

Toda essa obra, aparentemente vária e diversa, revela, quando observada mais meditadamente, uma constante coerência interna. A crítica é o elemento de coesão substancial de vossa obra de escritor, dicionarista e enciclopedista. Quando digo crítica, não desejo referir-me, aqui, à atividade valorativa e julgadora, que certos escritores exercem com vistas às obras alheias, tal como fazia o vosso ilustre antecessor nesta Casa. Desejo referir-me à crítica, como meio de aquisição do conhecimento. A consciência crítica, já o dizia Descartes, é que unifica, para o conhecimento, a infinita variedade do mundo exterior ao eu.

Não existe saber sem crítica. O julgamento crítico funciona, soberanamente, no processo de ordenação e seleção dos dados apreendidos pela experiência imediata da consciência. A presença constante do elemento racional é que transforma em saber orientado o que seria, sem ele, uma acumulação incoerente de noções.

Mas, em vós, a crítica se acentua e revigora com o estudo da linguagem. Sem uma percepção adequada do valor significativo das palavras e, em conjunto, das regras do seu manejo, que formam as línguas, o pensamento criador não teria veículos e a própria razão humana não subsistiria. Por isto é que um certo estudo da linguagem transcende da Ciência Filológica.

Certo é que as explorações do subconsciente, e a importância dos seus resultados para o conhecimento do homem, abalaram profundamente a inamovibilidade dos valores lógicos da linguagem. Freud mostrou que a luz da consciência fulge na superfície de vasta e fecunda escuridão. Desde o Surrealismo, a Literatura apossou-se dos territórios do subconsciente, para a criação de mundos de estranha beleza. A Poesia moderna, linguagem desdenhosa, revela por iluminações, mas não descreve nem raciocina, e nos arrasta, mesmo assim, ou por isto mesmo, no seu flexível mistério. No Brasil, a própria prosa – e Guimarães Rosa é o grande exemplo disto – criou mundos de um realismo irreal, mais por causa da língua do que da imaginação.

Mas a verdade é que toda essa ausência de lógica e, até, de pensamento, que do Surrealismo veio ao hermetismo poético, da prosa sistematicamente antivernácula ao abstracionismo da Pintura, só se tornam significativos através de um processo de racionalização crítica. O pensamento acaba sempre sendo o banho químico, que revela as formas obscuras recolhidas nas películas do inconsciente.

Todas as voltas ao mundo das sombras tendem a servir de matéria-prima, a ser fundida em uma nova realidade inteligível. É sempre a razão crítica que identifica e recolhe a que existe de positivo, em tais negativos da razão. Um louco não faria os poemas de Aragon, nem os contos finais de Guimarães Rosa. A pintura dos loucos é, via de regra, tristemente racional.

Por tudo isto é que, para mim, vossa obra de investigação e pesquisa, na Literatura e na Filologia, junta-se harmoniosamente, pela Crítica, em uma espécie de síntese, que vai se definindo melhor, à medida que os diversos trabalhos se sucedem. Objetiva e livremente, a vossa obra, abrangendo sempre temas estranhos à vossa pessoa, vai revelando, no entanto, a vossa personalidade.

Vossa obra representa, toda ela, uma ascensão contínua da inteligência para o saber, da experiência para o conhecimento.

Vossa personalidade corresponde aos fatores evolutivos de vossa formação.

Creio que foi Epiteto quem disse que a espiga cheia de grãos inclina-se, enquanto a vazia ergue-se no ar. Assim a modéstia do sabedor, diante da leve empáfia do insciente.

Como quem muito sabe, sois modesto, mas livre, a meu ver talvez demasiadamente livre, pois confiais excessivamente na chave da razão, para abrir as portas do mistério. A verdade é que tal chave só pode encontrar o nada, atrás daquela porta, e o nada não é resposta a coisa nenhuma. Responder com o nada é contraditório para a própria razão e, assim, o melhor é que ela passe a chave a outrem, à fé talvez, ou, quem sabe, à esperança. Este é o meu antigo ponto de dúvida para com a vossa modéstia. Sejamos modestos e não confiantes, como pareceis ser, diante da porta fechada.

Sr. Antônio Houaiss, encontrai-vos inteiramente em família nesta Casa, no ambiente que sempre vos foi familiar, de escritores, de livros e de ideias. Aqui vos recebemos fraternalmente.

27/8/1971